A aldeia gaulesa que pensa no que está a fazer
A chegada às salas de A Fábrica de Nada é o corolário de um ano de luxo para a Terratreme Filmes, colectivo de produção que acredita no cinema fora de gavetas e na relação com as pessoas mais do que com os projectos
Poucos filmes assumirão a sua costela de “projecto colectivo” como A Fábrica de Nada o faz. Não apenas pela dimensão ferozmente colectivista da história que se conta, mas também no modo como o filme é apresentado no genérico: “Um filme de João Matos, Leonor Noivo, Luísa Homem, Pedro Pinho, Tiago Hespanha, realizado por Pedro Pinho, produzido por João Matos, Susana Nobre”. Os seis nomes mencionados são os seis fundadores da lisboeta Terratreme Filmes, que, mais do que uma produtora, é uma pequena “unidade colectiva de produção” – uma “aldeia gaulesa” que resiste, ainda e sempre, ao invasor mas recebe toda a gente de portas abertas no espaço aberto e convivial da antiga livraria Lácio, no Campo Grande, para onde se mudou há poucos meses. “Tentamos ter uma estrutura que funcione”, explica João Matos, que esta tarde fala em nome do colectivo, “porque à medida que vamos fazendo mais filmes, e que os filmes envolvem mais dinheiro e mais burocracias, uma estrutura mais 'carola' não dá resposta. Aqui no escritório, para além dos sócios, temos cinco pessoas que têm prazer em trabalhar aqui, que sentem a estrutura como sua também. E isso permite-nos dar resposta às exigências, mantendo ao mesmo tempo esse espírito mais engajado.”
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Poucos filmes assumirão a sua costela de “projecto colectivo” como A Fábrica de Nada o faz. Não apenas pela dimensão ferozmente colectivista da história que se conta, mas também no modo como o filme é apresentado no genérico: “Um filme de João Matos, Leonor Noivo, Luísa Homem, Pedro Pinho, Tiago Hespanha, realizado por Pedro Pinho, produzido por João Matos, Susana Nobre”. Os seis nomes mencionados são os seis fundadores da lisboeta Terratreme Filmes, que, mais do que uma produtora, é uma pequena “unidade colectiva de produção” – uma “aldeia gaulesa” que resiste, ainda e sempre, ao invasor mas recebe toda a gente de portas abertas no espaço aberto e convivial da antiga livraria Lácio, no Campo Grande, para onde se mudou há poucos meses. “Tentamos ter uma estrutura que funcione”, explica João Matos, que esta tarde fala em nome do colectivo, “porque à medida que vamos fazendo mais filmes, e que os filmes envolvem mais dinheiro e mais burocracias, uma estrutura mais 'carola' não dá resposta. Aqui no escritório, para além dos sócios, temos cinco pessoas que têm prazer em trabalhar aqui, que sentem a estrutura como sua também. E isso permite-nos dar resposta às exigências, mantendo ao mesmo tempo esse espírito mais engajado.”
Engajado, sim, mas no sentido activista mais do que político ou panfletário do termo. Mesmo que a produtora tenha o mesmo nome do clássico neo-realista de Luchino Visconti A Terra Treme (sobre o esforço de pescadores sicilianos para tomarem nas mãos o seu próprio destino). “O gesto do cinema é sempre político. É verdade que, se formos a olhar para os títulos da Terratreme, bem mais de metade têm alguma dimensão política. Mas não temos uma linha editorial, nem temos mesmo uma ideia de fazer filmes politicamente implicados. É mais questionar o mundo do que propriamente resolvê-lo; vamos lá parar e pensar no que estamos a fazer e no que faz sentido. Pessoalmente, relaciono-me mais com as pessoas do que com os projectos. Evidentemente que a ideia do filme que se quer fazer é fundamental, mas na minha relação de trabalho, são as pessoas em si que se aproximam. E acho que todos aqui somos assim.”
Essa relação pessoal apenas sublinha a dimensão artist-friendly do colectivo e a sua abertura a experiências formais de todo o tipo. “Tentámos criar um espaço de liberdade onde uma série de realizadores jovens com percursos mais pequenos sentissem que a casa os acolhia com liberdade, com vontade, com desejo. Isso levou a que estivessem reunidas as condições para um autor poder fazer um filme com liberdade artística. Os filmes que produzimos são bastante diversos, porque o cinema deve ser diverso, diversificado, e as formas de o fazer também.”
Uma diversidade que é uma das marcas registadas do cinema que se faz em Portugal, mesmo que Matos partilhe da ideia de não existir “um” cinema português. “Não se pode falar de uma cinematografia lusitana”, diz. “Os cineastas portugueses são bastante diversos, mas sente-se de facto uma energia e uma coisa artesanal que faz com que sejamos bastante reconhecidos lá fora. Mesmo que isso às vezes me irrite um pouco – já é um pouco uma 'gaveta', que pode funcionar mal para realizadores que não querem fazer um cinema assim e também têm direito a fazê-lo...”
A estreia portuguesa de A Fábrica de Nada, depois de um aclamado périplo por festivais internacionais iniciado na Quinzena dos Realizadores em Cannes, é apenas o mais recente “prémio” ao entusiasmo de uma produtora com uma década de existência formal e mais de 80 filmes em carteira entre curtas e longas, documentários e ficções (alguns títulos: Ama-San, de Cláudia Varejão, Ascensão, de Pedro Peralta, Lacrau, de João Vladimiro, Linha Vermelha, de José Filipe Costa, Vida Activa e Provas, Exorcismos, de Susana Nobre…). Em Fevereiro, a curta Nyo Vweta Nafta, de Ico Costa, estreou em Roterdão antes de sair vencedora do prémio de Melhor Curta no festival parisiense Cinémas du Réel, em Abril; ainda em Fevereiro, Altas Cidades de Ossadas, de João Salaviza, teve estreia na mesma competição de curtas de Berlim que deu o prémio máximo a Cidade Pequena, de Diogo Costa Amarante.
Em Maio, A Fábrica de Nada causou sensação na Quinzena dos Realizadores, vencendo o prémio FIPRESCI da Associação Internacional de Críticos de Cinema; e, em Agosto, os três filmes Terratreme que foram a Locarno foram todos premiados. A curta de Cristina Hanes António e Catarina venceu o Pardino d’Oro, prémio máximo da curta-metragem; Milla, de Valérie Massadian, co-produção da Terratreme com as francesas Gaijin e Cinema Defacto, venceu o Grande Prémio do Júri no concurso Cineasti del Presente; e Era uma Vez Brasília, de Adirley Queirós, produção da brasileira Cinco da Norte que teve fotografia da portuguesa Joana Pimenta e apoio à finalização da Terratreme, levou uma menção especial na competição Signs of Life (e vai encerrar o Doclisboa em Outubro).
Tudo, claro, um acaso do calendário, derivado à “sorte de trabalhar com projectos e realizadores cujos resultados pegaram”. Sem ilusões, Matos diz: “O máximo que uma produtora que tenha alguma presença no mercado pode pretender é conseguir criar o espaço para que o filme seja visto com atenção. Pode ser um pouco ingénuo ainda achar que é a qualidade que faz o percurso deles, mas no fim de contas é o filme que impacta.” E insiste na dimensão acidental da situação 2017. “A boa carreira que estes filmes estão a ter não é uma surpresa, mas é uma alegria. E é uma alegria porque são filmes que podiam ter ficado à porta dos festivais, como já nos aconteceu noutros anos. Mas como ficaram dentro, isso vai permitir-nos continuar a trabalhar, cria-nos condições para podermos conseguir parceiros e apoios de forma mais consolidada.”
O elástico e a pastilha
O 2017 da Terratreme é, por isso, também um reconhecimento de um trabalho feito a longo prazo. “Progressivamente, os nossos anos têm corrido um pouco melhor,” explica Matos, único dos seis fundadores a trabalhar exclusivamente como produtor. “O ano passado estreámos o Ama-san da Cláudia Varejão, que correu bastante bem [perto de 2500 espectadores em sala]; tivemos uma curta em Cannes [Ascensão, de Pedro Peralta], duas em Locarno [Um Campo de Aviação, de Joana Pimenta, e Setembro, de Leonor Noivo]… Mas este ano aconteceu que algumas das longas em que estávamos a trabalhar 'rebentaram' todas [ao mesmo tempo]. Isso cria algumas questões, porque para o ano não vamos ter tantos filmes. Mas ao mesmo tempo foi importante para consolidar o nome que já tínhamos no estrangeiro. É um ano de ouro, sim, mas são filmes em que já estamos a trabalhar há muito tempo.”
Esse prolongamento no tempo é uma das questões-chave da Terratreme – a produtora acredita ser necessário o tempo para que os filmes atinjam o “ponto certo”. “O Revolução Industrial [2014, Frederico Lobo e Tiago Hespanha], por exemplo, levou cinco anos a fazer. Não faz sentido um filme de 70 minutos levar cinco anos a fazer, mas foi o que demorou. Às vezes os filmes emperram: é o caso do Linha Vermelha [2011], que era originalmente um projecto completamente diferente, e ao fim de três meses o José Filipe Costa diz 'desculpem lá, mas não é nada disto que eu queria fazer'. A nossa atitude podia ser 'agora acabou'… Mas não, fazia todo o sentido. Tivemos de arranjar engenharias financeiras para o fazer, mas refizemos o filme.”
Essa dimensão muito portuguesa do “desenrascanço” (“com um elástico e uma pastilha, com um alfinete a gente resolve isso”) é também uma das forças da Terratreme. “Temos recursos, somos despachados, temos um escritório mais ou menos robusto no sentido de ter as valências para receber filmes às vezes até sem condições.” E, de caminho, João Matos desmonta o mito do filme feito por meia dúzia de tostões. “Não existem filmes feitos sem dinheiro”, sublinha, “No sentido em que, mesmo que não tenhas apoios nem parceiros, há sempre um investimento grande, e sempre tentámos acolher filmes difíceis de comunicar para ver de que forma podíamos organizar as coisas para que o filme acontecesse. Em termos de sustentabilidade, e não apenas no sentido puramente financeiro, é complicado às vezes funcionar só com Portugal, que é o pais que é. O que temos feito é procurado encontrar lá fora parceiros que nos ajudem a sustentar uma produção regular. E isso não traz só encontros felizes, como com a Valérie ou o Adirley; permite extravasar os filmes financeiramente, e trabalhar em termos de distribuição com outros horizontes.”
Nos horizontes da Terratreme, para já, estão uma série de projectos: em pós-produção, a primeira longa de ficção de Susana Nobre e a primeira longa da dupla Filipa Reis/João Miller Guerra, “filmes que esperamos ter prontos este ano para estrear só para o ano”; em montagem, o novo documentário de Tiago Hespanha, a par de uma longa de Ico Costa e dos próximos filmes de Adirley Queirós e Joana Pimenta. “São processos longos, com várias fases. Acreditamos que o ano que vem vai correr bem. Mas se for menos excessivo que este, também é normal.”