Nos comícios do AfD, Merkel é uma "traidora do povo alemão"
Uma acção de campanha do Pegida e do partido Alternativa para a Alemanha tem pessoas zangadas, com cara fechada, bandeiras. A chanceler “não perguntou a ninguém se queríamos receber todos aqueles estrangeiros”, dizem.
As duas coisas acontecem mais ou menos ao mesmo tempo. Numa praça há medo e bandeiras, num teatro há abertura e música. De um lado, o movimento que diz que a Alemanha está a ser islamizada e quer lutar contra isso; do outro, uma iniciativa de encontro entre refugiados e habitantes de Dresden.
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As duas coisas acontecem mais ou menos ao mesmo tempo. Numa praça há medo e bandeiras, num teatro há abertura e música. De um lado, o movimento que diz que a Alemanha está a ser islamizada e quer lutar contra isso; do outro, uma iniciativa de encontro entre refugiados e habitantes de Dresden.
Comecemos pelo lado que fala mais alto: o comício do Pegida – Patriotas contra a Islamização da Alemanha – em conjunto com o partido Alternativa para a Alemanha (AfD), que têm em comum o medo do islão e a defesa de uma Alemanha para os alemães. O que se vê na audiência são pessoas zangadas, com cara fechada, bandeiras, numa posição de desafio. Muitas mais velhas. A dada altura passa uma mulher num andarilho que serve ainda de estandarte para uma bandeira alemã, adornada com uma corrente de luzinhas.
“Ouça, esta é a opinião do povo”, diz uma das poucas pessoas que aceita falar com uma jornalista e, claro, sem ser identificada (do palco surgem palavras de ordem contra a “imprensa mentirosa”). A chanceler, Angela Merkel, “traiu o povo alemão”, defende, “não perguntou a ninguém se queríamos receber todos aqueles estrangeiros”. Apoiante do Pegida desde a primeira hora, os olhos brilham ao dizer que vai votar AfD: “Eles vão lá a Berlim mostrar o que o povo pensa! Isso é democracia.” Mas este habitante de Dresden acredita, no entanto, viver num sistema diferente. “Estamos numa ditadura, estão a fazer tudo à revelia do povo alemão.”
Sublinhando esta ideia, a multidão grita de vez em quando: “Resistência! Resistência!”
Sol e conversa
A meia hora de caminho, do outro lado do rio Elba, o pátio da segunda sala do teatro da cidade está cheio de boa disposição, com pessoas a aproveitar os últimos raios de sol de Outono, a jogar pingue-pongue, ou a pôr a conversa em dia, alemães e refugiados.
É que todas as segundas-feiras há aqui o Montagscafé, “café de segunda-feira”, uma iniciativa da responsável do Bürgerbühne, literalmente o palco dos cidadãos, Miriam Tscholl. Neste palco actores amadores, cidadãos de Dresden, fazem teatro profissional, e os clássicos mostram problemas modernos: em Romeu e Julieta havia uma família árabe e uma alemã.
O objectivo do café de segunda-feira foi criar um ponto de encontro entre os habitantes de Dresden e os refugiados que tinham acabado de chegar em 2015. “Esperávamos meia dúzia de pessoas, apareceram umas 300”, conta Wanja Saatkamp, a actual responsável do Montagscafé. Dois terços refugiados, um terço de habitantes de Dresden. Agora, há uma média de 160 pessoas cada segunda-feira, mas muitas já criaram laços que continuam fora do teatro, o que faz com que não estejam presentes todas as semanas. “As pessoas aqui empenharam-se muito na questão dos refugiados”, nota Wanja Saatkamp. Mas o outro lado, que grita na praça, é o mais ouvido.
Medo do futuro
No entanto, vendo o comício conjunto do Pegida e da AfD fica-se com uma sensação talvez estereotipada de quem vai votar no partido. Richard Hilmer, director do centro de investigação Policy Matters, fez um estudo sobre os eleitores da AfD e ficou, ele próprio, surpreendido com os resultados: “É muito interessante porque encontramos pessoas em situação precária, sim, mas também há muitas com um nível de educação alto, e rendimentos altos também”, diz, por telefone, ao PÚBLICO.
O principal factor que leva ao voto na AfD é “o medo do futuro”: “Estas pessoas vêem muito mais problemas do que os outros, sentem-se muito mais inseguros”, diz. Estão bem, mas têm medo de deixar de estar.
“E há outra coisa: sentem que perderam o controlo da sua vida, e que a Alemanha está a perder o controlo”, nota. “Sentem que não são ouvidos e que a sua vida é decidida de um modo em que não participam.”
Intoxicar debates
Se é certo que a extrema-direita da AfD vai entrar no Parlamento, é preciso notar as diferenças em relação a outros países europeus, sublinha Joerg Forbrig, analista do German Marshall Fund em Berlim. Tem entre 9 e 12% nas sondagens mas longe de qualquer possibilidade de participar em qualquer governo.
No entanto, “ter este partido no Parlamento vai ser um choque”, admite. Porque o partido tem duas facetas, e uma apresenta um lado respeitável (até engraçado, como, nota, o cartaz dizendo: “Burkas? Nós preferimos bikinis”), mas a outra “é definitivamente uma parte nazi”.
Eleger deputados para o Parlamento nacional, algo que vários partidos de extrema-direita nunca conseguiram na história da Alemanha do pós-guerra, vai tornar este partido “numa estrutura permanente”.
Por outro lado, Forbrig nota que o Bundestag alemão não é o britânico Westminster, palco de grandes discussões. É um Parlamento em que o trabalho é feito sobretudo em comissões, e será muito difícil para a AfD mostrar competência aí, já que é fraco em termos de conteúdo. “Em todos os estados-federados em que estão representados [14 dos 16 Länder] têm sido um desastre.”
A questão mais importante, considera Joerg Forbrig, é ver como irá “intoxicar o debate público – já o fizeram com os refugiados e o islão”, defende. “E como isso pode encorajar mais acções violentas contra certos grupos. É esse o perigo.”
De uma pequena aldeia no Norte da Alemanha, Birgit e Horst Lohmeyer, um casal que vive entre dez famílias neonazis na localidade de Jamel, opondo-se à extrema-direita, contam, por email, que já notaram algum efeito desde que o partido tem representação no Parlamento do estado-federado em que vivem. “Os neonazis que vivem perto de nós estão mais provocadores, directos, insultuosos, a procurar confronto.”