Aliens, Dementors e palhaços: como desenhar os monstros dos nossos dias?
Rob Bliss é ilustrador e concept artist e esteve em Tróia para falar sobre as criaturas que introduziu nos universos Harry Potter e Batman, mas também sobre como trabalhar hoje em Hollywood.
Rob Bliss tem mais de 20 grandes filmes no currículo, mas o público, impaciente, pede: “Pode mostrar os Dementors?”. O medo é irresistível e o ilustrador e concept artist britânico é especialista em desenhar os monstros das últimas duas décadas. Passou grande parte da carreira no mundo Harry Potter, de onde vêm os Dementors que a audiência do festival Trojan Horse was a Unicorn (THU) quer tanto ver, mas também desenhou palhaços da corte de Joker em O Cavaleiro das Trevas e tentou a sua sorte com Alien: Covenant. “Tenho um estilo naturalmente assustador”, disse ao PÚBLICO em Tróia. E nós, com ele, somos fascinados pelo medo porque “sentir algo horrível num lugar seguro é uma coisa muito divertida”.
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Rob Bliss tem mais de 20 grandes filmes no currículo, mas o público, impaciente, pede: “Pode mostrar os Dementors?”. O medo é irresistível e o ilustrador e concept artist britânico é especialista em desenhar os monstros das últimas duas décadas. Passou grande parte da carreira no mundo Harry Potter, de onde vêm os Dementors que a audiência do festival Trojan Horse was a Unicorn (THU) quer tanto ver, mas também desenhou palhaços da corte de Joker em O Cavaleiro das Trevas e tentou a sua sorte com Alien: Covenant. “Tenho um estilo naturalmente assustador”, disse ao PÚBLICO em Tróia. E nós, com ele, somos fascinados pelo medo porque “sentir algo horrível num lugar seguro é uma coisa muito divertida”.
É aquela altura do ano outra vez, em que centenas de artistas e candidatos a artistas de todo o mundo confluem em Tróia para, pelo quinto ano consecutivo, assistirem a palestras, trocarem ideias, pedirem conselhos ou concorrerem a um emprego. Com um número recorde de oradores e mais de 700 participantes, a primeira manhã de conferências manteve a tradição – muitas formas de entretenimento representadas, da animação de Vaiana aos efeitos visuais, passando pelos comics ou pela construção de personagens e actuação. Na sala onde Rob Bliss fez o seu trabalho deslizar no ecrã, esboço após esboço e com alguns inéditos à mistura, estavam sobretudo artistas e ilustradores que querem trabalhar em cinema. “Podem usar-se técnicas antigas no mercado de hoje?”; “Os realizadores conseguem dizer por que não gostam de um desenho?”; “Como se desenha algo que já existe?”, foram perguntando.
O tal universo Harry Potter que também tem o seu dedo é um dos franchises mais valiosos do mundo e um essencial para a geração (talvez já mais do que uma) que cresceu com os respectivos livros e os filmes. Que também foram “importantíssimos para a indústria cinematográfica britânica”, defendeu Bliss, que trabalha sobretudo com Hollywood: a força actual do cinema do seu país, diz, “deve-se muito a J.K. Rowling”. Demorou-se então sobre Dobby, o torturado elfo da saga literária e cinematográfica a que deu forma e que o realizador Chris Columbus incorporou no filme Harry Potter e a Câmara dos Segredos (2002), mas o público queria monstros menos simpáticos. Foi passando imagens. Dobby com um cãozinho, Dobby com ar inebriado, Dobby de nariz de elefante. E depois: “Tem um aspecto suficientemente maldoso?”, perguntou Rob Bliss sobre as imagens do vilão Voldemort e a sua evolução, de conceito em conceito. Silêncio encantado.
Medo no edredão
“Davam-me sempre as coisas assustadoras”, comentou, sempre impassível, enquanto passava imagens de 19 anos de uma carreira que foi do comic 2000AD para cartas de jogos e videojogos até Tomb Raider (2001), primeiro, e Harry Potter, depois, lhe baterem à porta. Como concept artist – profissional cujo trabalho serve de base a realizadores e departamentos de efeitos especiais, de caracterização e de direcção de arte –, ajudaria a definir a imagem cinematográfica da série, mas no início nada sabia sobre ela. Fã de H.R. Giger e de Simon Bisley, lá fez então entrar no THU os desejados Dementors e os Devoradores da Morte, dois símbolos espectrais do mal na saga de J.K. Rowling.
O seu trabalho neste tipo de projectos passa por “tentar transformar uma descrição verbal em algo que funcione visualmente”, respeitando o livro, mas também procurando “encontrar o último lugar no parque de estacionamento” num universo visual já tão sobrelotado de referências. Não ajuda quando "há 500 milhões de versões”, diz sobre figuras como o monstro de Alien, “mas procuram-se e exploram-se as falhas": "Tenta-se ver o que falta e o que podemos trazer."
Para criar os Dementors, humanóides sem forma que sugam com o seu beijo as boas emoções e recordações das vítimas, viu-se em apuros. “Achei que não havia ali nada para desenhar, eram só uma capa." Acabou por pedir aos escultores do filme de Alfonso Cuáron que criassem uma espécie de esqueleto e depois cobriu-o de panos que tingiu e ensopou em água fumegante. A operação resultou nos trapos esquálidos e fantasmagóricos que o cinema conhece, mas hoje duvida que tal fosse feito – os efeitos digitais dominam a imaginação.
Pondera com a sua audiência, que fala tantas línguas e às vezes desenha enquanto o ouve, os limites do horror enquanto género, o encanto de deixar a mente do espectador preencher os espaços em branco. “Os efeitos digitais podem empurrar a coisa para a aventura e não para o horror”, dirá mais perto do fim, ao falar dos desenhos que fez para o novo Alien: Covenant. O público pediu por Alien e O Cavaleiro das Trevas (2008), mesmo não sendo o seu trabalho mais profícuo – os neomorfos do novo Alien de Ridley Scott ficaram no estirador (ou no tablet: “Desenho melhor digitalmente, não tenho saudades de desenhar em papel”) e só um dos seus palhaços do bando do Joker de Heath Ledger foi usado (mas ainda assim a cicatriz do vilão que rasga o rosto num sorriso é em parte obra sua). A cultura actual continua cheia de zombies, de palhaços assassinos, de sobrenatural e alienígenas.
Onde reside o seu fascínio, e o dos jovens adultos que pediram para ver especialmente aquelas imagens, chamando pelos monstros dos nossos dias? “É visceral: um bom ou mau filme de terror podem ser sempre apreciados, é um género que nos recompensa imediatamente”, defende ao PÚBLICO. “E acho que é algo que vem da infância – gostávamos de ter medo quando éramos miúdos.” Mas Alien ou O Cavaleiro das Trevas de Christopher Nolan, ou mesmo o Batman de Alan Moore ou Frank Miller, não são histórias para crianças e foram sendo carregados de significados e até de política: “Acho que gostamos de ter medo num ambiente seguro. Se alguém nos atacar com um faca, isso é horripilante. Mas se pudermos apreciar [esse acto] a partir da segurança do nosso edredão, é entusiasmante. E isso estende-se a outros géneros – à comédia, por exemplo, àquela comédia que nos faz torcer e que se desenvolveu nos últimos 20 anos", argumenta. Menciona Ricky Gervais e O Escritório original. “Conseguir sentir esse desconforto mental enquanto estamos seguros em casa é uma sensação óptima.”
Mesmo num mundo que parece tudo menos seguro? Rob Bliss responde que “não há qualquer comentário” no seu trabalho, nos monstros que desenha e que, na esmagadora maioria dos casos, foram pensados, e escritos, por outros. “Sou simplesmente capaz de desenhar coisas assustadoras, quer eu queira, quer não.” Rejeita a racionalização do medo nesse aspecto do seu trabalho, tal como diz tentar não carregar as personagens de significados. Nas mãos tem, ou terá no futuro, figuras que claramente apaixonam. Fez a arte conceptual para a Maléfica (2014) de Angelina Jolie, desenhou o gigantesco Kong de Ilha da Caveira (2017) e está a trabalhar na sequela de Monstros Fantásticos e Onde Encontrá-los (2016), também baseado na obra de J.K. Rowling. O THU continua até sábado em Tróia, estando em cima da mesa, à beira da sua sexta edição, a possibilidade de se mudar para Malta em 2018.