Um poema pela nossa “colossal desumanidade” com os refugiados

Depois de ver o pequeno Aylan Kurdi morto numa praia turca, Vanessa Redgrave sentiu que tinha de fazer alguma coisa. Com Sea Sorrow, a actriz passou a realizadora, mas manteve o activismo que marca a sua vida.

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Alfred Dubs e Vanessa Redgrave em Lisboa Rui Gaudêncio/PÚBLICO

Não há banda sonora em Sea Sorrow, apenas um constante barulho de uma vaga de água que vai e vem. Será isto que os milhares de refugiados ouvem durante as penosas travessias do Mar Mediterrâneo que concluem a longa jornada entre os países de onde fogem e a Europa onde esperam ser acolhidos.

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Não há banda sonora em Sea Sorrow, apenas um constante barulho de uma vaga de água que vai e vem. Será isto que os milhares de refugiados ouvem durante as penosas travessias do Mar Mediterrâneo que concluem a longa jornada entre os países de onde fogem e a Europa onde esperam ser acolhidos.

O documentário – que foi exibido no Festival de Cannes e estreia esta semana em Portugal – é um filme “modesto”, admite o próprio produtor, Carlo Nero. Mais que um filme ou um documentário, estamos perante a defesa de uma causa. “Fazer parte de algo como isto é uma lição de humildade”, diz Nero, durante a conferência de imprensa de apresentação de Sea Sorrow, esta terça-feira em Lisboa. “Este filme é uma espécie de poema, podem vê-lo como uma elegia”, diz a actriz Vanessa Redgrave, que, aos 80 anos, se estreia como realizadora.

Há dois anos, as imagens do menino sírio Aylan Kurdi, de três anos, caído sem vida numa praia na Turquia, depois de o barco onde seguia se ter afundado no Mediterrâneo, chocaram a Europa e chamaram a atenção do planeta para o drama dos refugiados. Vanessa Redgrave foi uma das pessoas que se sentiu particularmente atingida com a tragédia.

“Tal como a maioria das pessoas, eu fiquei horrorizada que este bebé e a sua mãe e irmã tenham morrido por não terem encontrado uma passagem legal e segura através do mar para obter asilo”, escreve Redgrave na declaração de apresentação do documentário. Sea Sorrow poderia ser mais um capítulo na história de activismo da actriz, que é embaixadora da UNICEF, foi apoiante da perestroika, uma crítica acérrima da invasão do Iraque e defende a independência da Palestina. Mas parece haver agora uma urgência diferente no discurso de Redgrave. Uma das suas últimas intervenções na conferência de imprensa deixa uma sombra perturbadora: “Tenho lido muito sobre os anos 30 e sinto as vozes dos mortos a tentarem ser ouvidas.”

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Militância e testemunho

A força de Sea Sorrow assenta nas histórias de vida de Redgrave e do antigo deputado e membro da Câmara dos Lordes, Alfred Dubs. Ambos são grandes críticos da inoperância dos governos europeus perante a crise dos refugiados, que se amontoam em campos de detenção em Itália ou na Grécia, ou morrem afogados no Mediterrâneo, e o documentário pode ser visto como mais um acto da sua militância. Mas do seu lado têm o testemunho pessoal de situações-limite como aquelas pelas quais passam hoje milhares de pessoas que fogem da guerra, da opressão e da pobreza dos seus países.

Dubs nasceu na Checoslováquia e, com seis anos, foi uma das dez mil crianças da Europa Central que foram acolhidas pelo Reino Unido em 1939, poucos meses antes do início da II Guerra Mundial. São essas memórias que são agora trazidas para Sea Sorrow, quando Dubs lembra os aplausos e gritos de alegria das crianças mais velhas assim que o comboio entrou na Holanda – o que significava o abandono do território controlado pela Alemanha nazi.

Vanessa Redgrave também vai buscar as suas memórias da II Guerra Mundial, quando foi levada pelos pais para longe de Londres nas vésperas do blitz da Luftwaffen, em 1940. “Éramos aquilo que hoje se chamaria de ‘pessoas deslocadas internamente’, éramos refugiados no nosso próprio país”, diz a realizadora durante o filme. A memória mais vívida é o avistamento ao longe da cidade de Coventry sob uma coluna de fumo e fogo.

Há uma óbvia tentativa de Redgrave estabelecer um paralelo entre o êxodo das populações perseguidas pelos nazis que procuravam acolhimento junto dos “poderes democráticos” da época, e os milhares de refugiados que hoje procuram a Europa. A grande diferença, como assinala em várias ocasiões o documentário, é que depois do flagelo da II Guerra Mundial, o mundo dotou-se de instrumentos que asseguram princípios básicos que se querem universais, como é o caso da Declaração Universal dos Direitos do Homem. É isso que falha, dizem Redgrave e Dubs.

“A Europa está a ser testada – e está a falhar”, diz o ex-deputado trabalhista. A actriz recusa, porém, em falar de um retrocesso civilizacional. “Há sempre mais gente a querer receber refugiados, mas também há mais hostilidade por parte dos governos, não só por ignorância mas também por causa da burocracia”, afirma.

O documentário cruza testemunhos de refugiados e imagens de resgates no Mediterrâneo com aparições de actores a recitar textos literários que tocam o tema. De súbito, ouvimos a voz de Ralph Fiennes a interpretar o papel de Prospero, personagem da peça A Tempestade de Shakespeare, enquanto explica à filha porque estão exilados numa ilha remota. “Senta-te e escuta a última das nossas histórias de sofrimento no mar” (sea sorrow, no original). Noutra cena, escutamos as palavras de Thomas More, através da obra de Shakespeare sobre a vida do filósofo, que tenta apelar à compaixão dos seus compatriotas em relação aos estrangeiros, pedindo-lhes que se ponham no seu lugar. “É esta a vossa colossal desumanidade”, conclui.

A luta de um ex-refugiado

Grande parte de Sea Sorrow é passada em Calais, onde durante anos milhares de requerentes de asilo edificaram uma autêntica cidade de tendas enquanto esperavam por uma oportunidade para atravessar o Canal da Mancha e entrar no Reino Unido – na maioria das vezes para se juntarem a familiares que já lá estavam. O campo, conhecido como a “Selva”, foi demolido pelas autoridades francesas no ano passado. Nas suas visitas, Redgrave diz ter ficado com sensações contraditórias: uma revolta contra os governos que recusam acolher pessoas em situações degradantes, mas também uma felicidade ao ver o trabalho das dezenas de voluntários que tentam apoiar os refugiados.

A resposta da sociedade civil perante a incapacidade, ou a recusa, dos políticos em prestar auxílio parece ser uma constante histórica. Em Sea Sorrow, a actriz Emma Thompson lê uma carta da feminista Sylvia Pankhurst no Manchester Guardian horrorizada com os relatos sobre a “Noite de Cristal” – o massacre de milhares de judeus na Alemanha nazi, em 1938 – e em que apela ao Governo britânico que abra as portas aos refugiados que fogem da perseguição. “Já na altura havia quem se preocupasse”, diz Dubs durante o filme.

A história parece repetir-se, e hoje, a grande batalha do ex-deputado trabalhista é garantir que o Governo britânico acolha crianças refugiadas.

Dubs propôs na Câmara dos Lordes uma proposta de alteração à Lei da Imigração para que o Reino Unido receba três mil menores que tenham chegado à Europa desacompanhados de adultos. Apenas 200 crianças foram ainda recebidas e o Governo conservador anunciou que irá apenas conceder vistos de residência a mais 150, naquilo que Dubs diz ser “um recuo vergonhoso”. A ministra do Interior, Amber Rudd, defende que o plano de Dubs encoraja mais jovens e crianças a tentar chegar à Europa, tornando-se presas fáceis para as redes de tráfico de seres humanos. Em Maio, a UNICEF dizia que 170 mil crianças desacompanhadas fizeram pedidos de asilo em países europeus.

O objectivo de Dubs, Redgrave e de todos aqueles que ajudaram a conceber Sea Sorrow não passa pelo filme em si mesmo, mas pela conquista do apoio da opinião pública. A realizadora espera conseguir exibir o documentário nas escolas do Reino Unido e no maior número de países possível. Contra si têm os inimigos de sempre: a inoperância, a burocracia, a ignorância e a falta de empatia. Mas há esperança, diz Dubs, cuja vida é prova disso mesmo. “Tudo o que façamos não é suficiente. Mas se uma vida for salva, já valeu a pena.”