Doclisboa, um festival para não ficarmos sozinhos em casa

O 15.º aniversário do certame documental é apresentado hoje em Lisboa. A edição 2017 abre com uma ficção, Ramiro, de Manuel Mozos, e continua a explorar as fronteiras do cinema do real, entre o pessoal e o político.

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Ramiro de Manuel Mozos dr

“Há uma frase que repetimos imensas vezes entre nós”, diz Cíntia Gil entre gargalhadas. “Perante o abismo, só se pode é dar um passo em frente. Até brincamos com isso!” Isto porque o Doclisboa — cuja 15.ª edição, de 19 a 29 de Outubro, é apresentada esta manhã em Lisboa — continua a ser um festival de aventuras, de desafios, que propõe aos espectadores riscos como poucos outros festivais. “Mas o que nos dá gozo não é ir ao limite”, continua a programadora, directora do Doclisboa desde 2012. “É preparar o caminho para lá chegar. O nosso desafio é criar sempre pontes do público para os filmes, mostrar às pessoas que este é um lugar onde as coisas podem estar em diálogo umas com as outras. Mostrar que o cinema nos permite fazer caminhos que nos levam a zonas de desconforto onde podemos ensaiar-nos enquanto sociedade.” Ou, como diz do outro lado do sofá da Culturgest Davide Oberto, um dos programadores do Doclisboa, “este é um festival para não ficarmos sozinhos em casa, para virmos falar das coisas em público”.

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“Há uma frase que repetimos imensas vezes entre nós”, diz Cíntia Gil entre gargalhadas. “Perante o abismo, só se pode é dar um passo em frente. Até brincamos com isso!” Isto porque o Doclisboa — cuja 15.ª edição, de 19 a 29 de Outubro, é apresentada esta manhã em Lisboa — continua a ser um festival de aventuras, de desafios, que propõe aos espectadores riscos como poucos outros festivais. “Mas o que nos dá gozo não é ir ao limite”, continua a programadora, directora do Doclisboa desde 2012. “É preparar o caminho para lá chegar. O nosso desafio é criar sempre pontes do público para os filmes, mostrar às pessoas que este é um lugar onde as coisas podem estar em diálogo umas com as outras. Mostrar que o cinema nos permite fazer caminhos que nos levam a zonas de desconforto onde podemos ensaiar-nos enquanto sociedade.” Ou, como diz do outro lado do sofá da Culturgest Davide Oberto, um dos programadores do Doclisboa, “este é um festival para não ficarmos sozinhos em casa, para virmos falar das coisas em público”.

Algumas das linhas da programação 2017, mostrada nas “casas” habituais do Doc (Culturgest, São Jorge, Cinemateca Portuguesa e Ideal), já eram conhecidas: duas grandes retrospectivas, dedicadas à cineasta checa Vera Chytilova (1929-2014) e ao cinema documental do Quebeque canadiano (que começou por ser pensada para 15 sessões “e acabou com 32 e ainda deixámos imensos filmes de fora”); a programação das secções paralelas Heartbeat (música, teatro, artes performativas) e Da Terra à Lua (“panorama” do que de melhor se tem feito no documentário mundial); o fecho com Era Uma Vez Brasília, de Adirley Queirós, visão radical distópica do Brasil moderno, e a abertura com a estreia mundial do novo filme de Manuel Mozos, Ramiro.

Esta manhã apresenta-se na Culturgest a programação por completo, preenchendo as “vagas” até aqui por anunciar, mas o que já se sabia deixava questões importantes sobre a direcção da programação deste ano. Vera Chytilova é uma cineasta que filmou primordialmente ficção, e o filme de abertura, Ramiro, é também uma ficção. Num festival de cinema documental e cinema do real, mesmo que atento a filmes na fronteira da ficção, é válido perguntar o porquê destas escolhas. Cíntia Gil concorda que esse é um ponto central do debate que norteia o festival: “A questão do cinema do real, ou em forte relação com a realidade, interessa-nos muito mais do ponto de vista do espectador: como é que o espectador se relaciona com o real que é mostrado no ecrã”, diz. “Muitas vezes interessa-nos mais o olhar documental sobre a ficção. Por outro lado, o cinema do real parece estar cada vez mais a adoptar e a apropriar-se de metodologias que não vêm do documentário tradicional — antes da performance, da tradição da arte povera ou do faça-você-mesmo, e isso tem muito que ver com a entrada dos artistas visuais, dos performers, neste processo. Se calhar, essa apropriação de outros códigos, de outras relações com o público, fazem com que seja muito mais complexo — e, sinceramente, cada vez menos interessante — identificar se um filme é um documentário ou uma ficção.”

É por aí, então, que deve ser vista grande parte do programa, como explica a directora. “É verdade que a Vera Chytilova fez sobretudo ficções, inclusive de género, mas há questões na obra dela que têm que ver com linguagens, experimentações, metodologias de produção, que importa trazer à discussão. A mesma coisa acontece na retrospectiva do Quebeque, que se inicia com filmes dos finais dos anos 1950, onde encontramos ao mesmo tempo cinema directo e ficção filmada como se fosse cinema directo. Esses cineastas não fizeram uma passagem do documentário à ficção, as duas coisas existiram ao mesmo tempo, construíram-se em paralelo. Muitas vezes temos a ideia de que existe uma separação entre documentário e ficção, e que essas indefinições só existem no cinema contemporâneo. O que esta retrospectiva nos mostra é que isso não é verdade, que nunca o foi.”

Quanto a abrir o festival com uma ficção, Cíntia sorri. “O Ramiro é um retrato muito comovente e muito desempoeirado do meio artístico em Portugal. Achámos piada abrir o festival com um momento de auto-ironia em que nos vemos um bocadinho ao espelho. Além disso, passámos [a direcção do Doclisboa e a direcção da “casa-mãe” Apordoc] o ano todo numa luta política à volta do ICA e das escolhas de júris, que outros procuraram constantemente encaixar na luta entre o cinema de autor e o cinema comercial. E pareceu-nos genial abrir o festival com uma comédia popular muito bem feita, muito inteligente, que remete para um posicionamento sobre o cinema português hoje, e sobre uma questão política que ainda não está resolvida. Como são os 15 anos do Doc, achámos que podíamos dar-nos ao luxo de um atrevimento destes!”

No resto, a programação continua a procurar o equilíbrio entre o pessoal e o político, embora Cíntia faça questão de notar: “Um festival engajado, comprometido, não é necessariamente um festival que mostre só filmes sobre problemas! É muito importante pôr lado a lado o filme que denuncia a experiência dos sírios na actualidade e o filme que propõe uma visão poética do mundo.” A directora do certame fala de duas linhas mestras transversais a todas as secções: de um lado, “filmes que têm que ver com questões de colonização, pós-colonialismo, arqueologia das relações de poder territorial”; do outro, “filmes sobre emoções e afectos essenciais, que falam de relações emocionais simples entre seres humanos”. Mas, sobretudo, “há vários filmes que estão nesse lugar em que não se percebe se são ficção ou documentário, auto-retrato ou construção”.

As competições, momento nobre de qualquer festival, são este ano particularmente desafiadoras: 18 títulos de 16 países na competição internacional, entre os quais seis estreias mundiais; 11 títulos na competição portuguesa, dez dos quais em estreia mundial. Não se encontrarão entre eles muitos dos títulos que têm estado nas bocas do circuito de festivais, porque o Doclisboa “não quer ser um simples best of dos festivais”. Cíntia: “Somos os primeiros a reconhecer que há filmes óptimos que adoramos e que não programámos, porque não queremos estar sempre a falar dos mesmos filmes. Temos de fazer um equilíbrio entre tentar apresentar ao público aquilo que entendemos que é fundamental mostrar aqui e agora, e usar o poder específico que um festival tem para trazer novos realizadores à discussão. Não há coisa mais perversa do que a repetição, do que fazer sempre a história com os mesmos nomes.”