Vírus quimera em ratinhos poderá ajudar a tratar cancros humanos
Equipa portuguesa e norte-americana conseguiu criar no ratinho um vírus com os genes que dão origem a uma proteína que causa certos cancros nos humanos. Este vírus quimera será usado para encontrar novas formas de inibir essa proteína.
O vírus associado ao sarcoma de Kaposi (um dos vírus herpes) produz uma proteína chamada “LANA” que causa certos cancros nos seres humanos. Os ratinhos têm um vírus homólogo com proteína LANA que, não sendo igual, é muito parecida com a do vírus humano. Agora, a pensar na relação entre os dois vírus e proteínas, uma equipa de cientistas de Portugal e dos Estados Unidos conseguiu substituir o gene que codifica a proteína do vírus humano no vírus do ratinho. Criou-se assim um vírus quimera, que poderá ajudar no tratamento de cancros humanos provocados pela infecção de vírus associado ao sarcoma de Kaposi, segundo conta um artigo científico na revista PlosPathogens.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
O vírus associado ao sarcoma de Kaposi (um dos vírus herpes) produz uma proteína chamada “LANA” que causa certos cancros nos seres humanos. Os ratinhos têm um vírus homólogo com proteína LANA que, não sendo igual, é muito parecida com a do vírus humano. Agora, a pensar na relação entre os dois vírus e proteínas, uma equipa de cientistas de Portugal e dos Estados Unidos conseguiu substituir o gene que codifica a proteína do vírus humano no vírus do ratinho. Criou-se assim um vírus quimera, que poderá ajudar no tratamento de cancros humanos provocados pela infecção de vírus associado ao sarcoma de Kaposi, segundo conta um artigo científico na revista PlosPathogens.
Tudo começou em 2010 com o programa Harvard Medical School Portugal desenvolvido entre os dois países. Do lado português está uma equipa do Instituto de Medicina Molecular da Universidade de Lisboa, coordenada por Pedro Simas, especialista no vírus do ratinho (o homólogo do vírus associado ao sarcoma de Kaposi) e no modelo animal. Nos Estados Unidos está a equipa da Faculdade de Medicina de Harvard, liderada por Kenneth Kaye, responsável pelo estudo do vírus associado ao sarcoma de Kaposi e pelos ensaios in vitro. “É uma verdadeira colaboração sinergética”, caracteriza Pedro Simas. Apesar de este programa ter terminado em 2013, as equipas continuaram a trabalhar em conjunto.
Vejamos então um dos assuntos que esteve no centro desta colaboração: o vírus humano associado ao sarcoma de Kaposi. O que é? É um vírus herpes, ou melhor, um dos vírus herpes. Isto porque há vários vírus herpes, tais como o do herpes simplex, o da varicela, o Epstein-Barr (ocorre por transferência oral de saliva) e o tal vírus associado ao sarcoma Kaposi. Uma das suas principais características é que quando infecta uma pessoa permanece nela para o resto da vida. “Intermitentemente, ao longo da vida da pessoa, ele vai reactivando. Essa reactivação pode ser feita com manifestação de lesão ou sem manifestação de lesão”, explica Pedro Simas. Um exemplo é o vírus herpes simplex que quando reactiva faz com que surjam aftas orais.
Mas foquemo-nos no vírus associado ao sarcoma de Kaposi, o protagonista deste trabalho. A infecção deste vírus pode causar cancro, nomeadamente o sarcoma de Kaposi e linfoma. Está ligado ao sistema imunitário e quando entra em células imunitárias – os linfócitos B – provoca a sua proliferação. “Identificámos e temos trabalhado com uma proteína que é responsável pela sobrevivência do vírus dentro das células em proliferação, uma proteína que que se chama LANA”, indica Pedro Simas. “Se inibirmos esta proteína, conseguimos eliminar o vírus. Uma das características destes linfomas e destes cancros associados a estas infecções é que não estando lá o vírus, o cancro deixa de proliferar.”
Ora, os cientistas sabiam que o vírus nos ratinhos também tinha a tal proteína LANA. “As proteínas não são iguais, são primas, e têm alguns modos de funcionamento diferentes”, avisa Pedro Simas. Afinal, há mais de 60 milhões de anos de divergência evolutiva entre o vírus associado ao sarcoma de Kaposi humano e o seu equivalente nos ratinhos. Por isso mesmo, sempre se pensou que o processo não iria funcionar se substituísse uma proteína por outra. “O problema é que muitas vezes é difícil encontrar modelos in vitro que reproduzam as condições in vivo”, refere o investigador. Mas os testes in vitro mostraram o contrário e as proteínas funcionaram. Este foi então o impulso suficiente para que se fizesse a experiência no modelo animal.
Um modelo de ratinho humanizado
“Conseguimos retirar o gene que codifica o vírus humano – da [proteína] LANA – , transferi-lo para o vírus do ratinho, substituindo assim o gene do vírus do ratinho”, explica Pedro Simas. “Testámos se esse vírus era viável ou não. Ou seja, se esse vírus [do ratinho] com a proteína LANA do vírus humano conseguia estabelecer infecção em linfócitos B no vírus do ratinho. E consegue, para nossa felicidade.” Criou-se assim um vírus quimera, ou seja, um organismo vivo que tem origens genéticas diferentes. “Agora temos um modelo intermédio, um modelo de ratinho que está de certa forma humanizado.”
Este vírus quimera poderá assim iniciar projectos em duas frentes. A primeira será no estudo de moléculas que inibam a proteína LANA humana a partir deste modelo animal. Assim será possível tratar as infecções causadas pelo vírus associado ao sarcoma de Kaposi e os cancros que lhes estão associados nos seres humanos. A segunda frente é continuar a estudar a proteína LANA e definir alvos terapêuticos, ou seja, funções da proteína.
Além disso, o tipo de estratégia da criação de um vírus quimera pode ser utilizado também noutros vírus que usam proteínas equivalentes à LANA, como o vírus Epstein-Barr ou o vírus do papiloma humano (que causa cancro do colo do útero).
Para quando os testes em pessoas? “Sei que é sempre o mesmo cliché de que é mais um passo, mas a verdade é que estamos cada vez mais próximos”, considera Pedro Simas. “Temos um modelo animal que é muito mais fisiológico para se poder testar este tipo de moléculas que são potenciais medicamentos.”
Quanto à colaboração entre Portugal e os Estados Unidos, mesmo que o programa já tenha terminado em 2013, Pedro Simas tem uma certeza: “Vamos continuar.”