Advocacia livre: por quem os sinos dobram
O sigilo profissional dos advogados não é privilégio destes. É direito fundamental dos cidadãos.
A advocacia sempre se reconheceu como uma profissão intrinsecamente livre — a mais livre das profissões — da qual a independência e a isenção constituíam atributos naturais, por isso erigidos em deveres matriciais do advogado pelas normas estatutárias que ao longo dos tempos foram constituindo o Estatuto da Ordem dos Advogados.
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A advocacia sempre se reconheceu como uma profissão intrinsecamente livre — a mais livre das profissões — da qual a independência e a isenção constituíam atributos naturais, por isso erigidos em deveres matriciais do advogado pelas normas estatutárias que ao longo dos tempos foram constituindo o Estatuto da Ordem dos Advogados.
O advogado serve o Direito. E, por isso, a relação profissional que estabelece com quem procura os seus serviços repousa na confiança e lealdade recíprocas, garantidas pelo sigilo profissional.
O dever de guardar sigilo profissional impõe-se ao advogado, quanto a todos os factos que o mesmo conheça no âmbito da relação de representação e a todos os documentos que os corporizem, sendo apenas derrogável em situações excepcionais, devidamente descritas na lei, mediante autorização dos órgãos competentes da Ordem dos Advogados, sindicável apenas quanto à sua legalidade pelos tribunais administrativos.
O sigilo profissional não se reconduz, porém, a um privilégio do advogado. Serve a cidadania livre. Constitui uma garantia desta. Só a protecção do conteúdo da relação estabelecida entre o advogado e constituinte permite ao cidadão/constituinte agir em sociedade, exercendo cabal e plenamente os direitos e legítimos interesses de que seja portador de forma inteiramente livre e esclarecida, nos limites da lei e do Direito.
Pois bem. Este sistema, matriz da advocacia em Portugal, garante do respeito e da dignidade dos cidadãos derruiu sob o impacto das alterações que emergem da Lei n.º 83/2017, de 18/08, que veio estabelecer medidas de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo, e que entrará em vigor no próximo dia 18 de Setembro.
Não se ignora que o branqueamento de capitais constitui actividade socialmente nociva, porque instrumental à prática de crimes de elevada gravidade e que o terrorismo constitui, porventura, a mais séria ameaça às sociedades livres, nem se ignora que a prevenção e combate a tais fenómenos exigem medidas singulares.
Porém, e a pretexto do combate a esses fenómenos, o legislador desferiu um ataque directo ao coração da advocacia livre, subvertendo por completo o paradigma centenário da relação entre advogado e cliente, impondo aos advogados, designadamente, a obrigação de denúncia dos seus clientes, a colaboração forçada com as polícias e o Ministério Público quando, no exercício da sua profissão, venham a ocorrer suspeitas que certos fundos ou bens, independentemente do seu montante ou valor envolvido, provenham de actividades criminosas ou estejam relacionados com terrorismo, abrangendo esse dever quer as operações que lhes sejam propostas, quer as executadas ou em execução.
Não é fenómeno circunscrito a grandes sociedades de advogados. A amplitude do dever legal de comunicação torna-o transversal a toda a advocacia.
Agrava o sistema a imposição do dever de quebra da lealdade perante o constituinte, pois a lei proíbe o advogado de informá-lo de que o denunciou e que entregou, ou entregará, todos os elementos que o mesmo lhe haja fornecido, estejam na sua posse e possam estar relacionados com o potencial ilícito.
A centenária ética profissional do advogado impede-o, sob pena de pesada sanção disciplinar, de praticar ou participar na prática de actos tipificados na lei como crime, pelo que, em circunstâncias em que suspeite que a sua actuação a tal possa levar, tem o advogado o indeclinável dever de renúncia ao mandato. Mas esta lei sobrepõe-lhe a faculdade de executar a operação de licitude suspeita, a cuja denúncia o obrigou, quando o Ministério Público entenda que a abstenção é susceptível de prejudicar a prevenção ou a investigação, instrumentalizando o advogado às conveniências da investigação, travestindo-o numa espécie de “agente encoberto”, colocado ao serviço da polícia sempre que tenha a desdita de se cruzar com um assunto que mereça a suspeita desta lei.
Em suma, o sistema que vai entrar em vigor mina a relação de confiança que é suposto ser o fundamento do mandato e constitui a matriz da profissão. O fenómeno não é novo: a História assinala-o em sistemas totalitários, como a defunta URSS e a Alemanha nazi.
O perigo que o novel sistema encerra para as liberdades públicas e para os direitos fundamentais do cidadão é evidente. Esta é mais uma cércea às liberdades públicas que o medo dos últimos anos nos vem fazendo passivamente consentir.
Nisto tudo, em que ficamos? Aos órgãos, designadamente disciplinares, da Ordem dos Advogados, instituição que tem por atribuição primeira a defesa do Estado de Direito e dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, cumpre a afirmação, sempre e em quaisquer circunstâncias, nas palavras e nos actos, que a independência e a isenção do advogado, a lealdade e a confiança reciprocas que são apanágio da representação, garantidos pelo sigilo profissional, são valores matriciais que serão defendidos e preservados custe o que custar.
Porque o sigilo profissional dos advogados não é privilégio destes. É direito fundamental dos cidadãos.