Um festival para pensar a cidade
A quarta edição do Mexe-Encontro Internacional de Arte e Comunidade decorre no Porto até domingo.São mais de duas dezenas de iniciativas a envolver mais de 400 pessoas de diversos países.
“Olh’o peixinho fresquinho, olh’o peixinho fresquinho. Ó mor, está tudo bem? [Está tudo.] Ai, comigo também. Tem de se fazer pela vida, não é? Olh’a o peixinho fresquinho! [E os turistas?] Ai, lá vêm eles! Olha, já viste isto? Olha, não me tires fotografias que eu já sou famosa o suficiente!”
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“Olh’o peixinho fresquinho, olh’o peixinho fresquinho. Ó mor, está tudo bem? [Está tudo.] Ai, comigo também. Tem de se fazer pela vida, não é? Olh’a o peixinho fresquinho! [E os turistas?] Ai, lá vêm eles! Olha, já viste isto? Olha, não me tires fotografias que eu já sou famosa o suficiente!”
O pregão ouvir-se-á no Mexe – Encontro Internacional de Arte e Comunidade, que teve o pré-arranque no dia 14, com uma série de documentários, e que arranca nesta segunda-feira, 18, com teatro comunitário, exposições/instalações e formação/capacitação. São mais de duas dezenas de iniciativas a envolver mais de 400 pessoas de diversos países.
“Cidade-corpo colectivo” é o tema desta quarta edição. E os efeitos do fluxo turístico não podiam faltar, não fosse esse um dos temas do momento. Há uma curta referência no espectáculo de teatro comunitário CAL, uma criação colectiva da PELE/Rede Inducar com estreia agendada para as 18h30 de dia 20, nas ilhas de São Vitor, na freguesia do Bonfim. E um mergulho no espectáculo de teatro-fórum Porto Sentido, uma criação colectiva do Núcleo do Teatro do Oprimido do Porto/PELE com estreia agendada para as 21h00 do dia 21, no Centro de Iniciativa Jovem, na freguesia de Lordelo do Ouro.
Em Maio, o grupo de teatro do oprimido começou a discutir assuntos possíveis e depressa um deles se impôs. É que a subida das rendas afecta as várias gerações que o formam. Tanto os mais jovens membros, caso de Cristina Queirós, de 22 anos, como os mais velhos, caso de Rui Rodrigues, de 70 anos. “Já começamos a ter rendas pensadas para outras pessoas e não ara nós”, diz a rapariga.
Orientados por Susana Madeira, coligiram notícias e panfletos, seleccionaram vozes, criaram uma estrutura narrativa, inventaram jogos de frases. Acabaram por construir uma conversa de vizinhos que é uma espécie de caricatura do momento. “Re-construção, re-qualificação, re-nova. Casa nova, casa limpa, casa de outrora. Para quem passa ou para quem mora? Vá lá, há sucesso! Tours, Douro wine, rent a bike, rent a house, rent a car. Please do not disturb. Quem passa ou quem mora? Hotel, hostel, guest house.”
Quinta-feira, os espectadores serão confrontados com o destino de uma família pressionada a sair de um apartamento por um senhorio que o quer transformar em alojamento local. A barreira entre actores e público cairá e o público será desafiado a entrar em cena, a substituir “o oprimido” e a encontrar soluções.
Não é que enjeitem os turistas. “O turismo deu movimento à cidade, trouxe novas vivências, mais alegria, mais segurança, obrigou a reconstruir prédios”, aponta Rui. É que todo o verso tem um reverso. “Há pessoas que não sabem ler nem escrever e são levadas num arrasto”, indigna-se Cristina. “Têm de ir viver para pensões.”
Ainda não tinham entrado no léxico comum as palavras hostel, guest house, gourmet há um ano e meio, quando começou o projecto Retratos das Ilhas, financiado pelo programa PARTIS da Fundação Calouste Gulbenkian, destinado a promover a participação através da fotografia e do teatro comunitário. Agora, já aparecem num dos registos áudio.
“Houve alguma reflexão sobre o direito à cidade, a transformação da cidade, e isso aparece no espectáculo, mas não é o mais relevante”, esclarece Maria João Mota, a quem coube a direcção artística do CAL. “O mais relevante é a descoberta. O mais importante é ter experiências novas, conhecer outras pessoas, abrir os horizontes.”
O processo criativo desenrolou-se a partir de propostas muito abstractas, exercícios de teatro, dança, fotografia feitos com grupos de diferentes idades da freguesia do Bonfim. Os vários artistas perceberam que tanto as crianças como os idosos vivem dentro de um perímetro muito reduzido da cidade. Levaram-nos então a pontos altos, como a Torre dos Clérigos e o Hotel Vila Galé, para que pudessem ter outras perspectivas.
No espectáculo que vão apresentar quarta-feira, trabalharam a ideia de ilha enquanto pedaço de terra rodeada de água por todos os lados. E a ideia de ilha enquanto tipologia de habitação operária, isto é, fila de pequenas habitações construídas nos pátios da classe média. “Como é que é viver num lugar apertado? Isso influencia os sonhos, as aspirações profissionais, a mobilidade social?”. E trabalharam também a ideia de ilha humana. “Como é que construo barreiras à minha volta? O que me faz sair daí?”
Por aqui já se percebe que o Mexe não está confinado ao centro da cidade. Tão-pouco se esgota nos espaços formais (como o Teatro Carlos Alberto ou o Rivoli). Recorre a espaços comunitários e até a espaços públicos (como a estação de São Bento ou o Jardim de São Lázaro). Tudo na tentativa de “derrubar algumas barreiras invisíveis na cidade”, para usar as palavras de Hugo Cruz, director artístico do festival.
“A ideia é ir descobrindo como a cidade pode tomar outros formatos”, elucida Cruz. “Isso é o mote que todos os projectos, de forma directa ou indirecta, propõem. A forma como o festival foi concebido provoca encontros que nem sempre são fáceis entre o mais formal e o mais informal, entre o mais poético e mais real, entre as periferias e o centro, entre Portugal e outros países da Europa ou da América Latina, em particular o Brasil, que nesta edição tem uma presença fortíssima.”