A vida de Anne Frank contra tempos sombrios

Concebida por Ari Folman e David Polonsky, a mais recente adaptação em BD de O Diário de Anne Frank põe as imagens em diálogo com as palavras, para oferecer o retrato de um quotidiano marcado pelo desespero, o humor, a ironia e o gosto pela beleza.

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Patrick Zachmann/MagnumPhotos com cortesia de CLAIR/AFF

Uma adaptação fiel ao livro. Descreva-se assim a versão em banda desenhada de O Diário de Anne Frank, realizada pelo cineasta Ari Folman e o ilustrador David Polonsky, que no próximo dia 21 chega às livrarias portuguesas com o selo da Porto Editora. Não aguardem os leitores grandes experimentações em termos temáticos ou formais. As sequências, o estilo de desenho, as vinhetas e os balões adequam-se à leitura tradicional de um livro de BD, procuram ilustrar, sobre o papel, aquilo que a jovem Anne Frank escreveu, num pequeno caderno, entre 12 de Junho de 1942 e 1 de Agosto de 1944. Não há desvios, omissões ou novidades nesta versão, a primeira em banda desenhada autorizada pela Fundação Anne Frank. Nas suas páginas, estão representados o quotidiano no anexo secreto de Amesterdão, as relações da jovem com os pais, os primeiros arroubos da adolescência, o humor, o medo, a guerra e a ameaça da morte. Recorrendo à linguagem da banda desenhada, os dois artistas conservaram o retrato da intimidade de uma rapariga judia sob a escuridão da Europa. A fim de a voltar a lembrar.

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Uma adaptação fiel ao livro. Descreva-se assim a versão em banda desenhada de O Diário de Anne Frank, realizada pelo cineasta Ari Folman e o ilustrador David Polonsky, que no próximo dia 21 chega às livrarias portuguesas com o selo da Porto Editora. Não aguardem os leitores grandes experimentações em termos temáticos ou formais. As sequências, o estilo de desenho, as vinhetas e os balões adequam-se à leitura tradicional de um livro de BD, procuram ilustrar, sobre o papel, aquilo que a jovem Anne Frank escreveu, num pequeno caderno, entre 12 de Junho de 1942 e 1 de Agosto de 1944. Não há desvios, omissões ou novidades nesta versão, a primeira em banda desenhada autorizada pela Fundação Anne Frank. Nas suas páginas, estão representados o quotidiano no anexo secreto de Amesterdão, as relações da jovem com os pais, os primeiros arroubos da adolescência, o humor, o medo, a guerra e a ameaça da morte. Recorrendo à linguagem da banda desenhada, os dois artistas conservaram o retrato da intimidade de uma rapariga judia sob a escuridão da Europa. A fim de a voltar a lembrar.

O reencontro de Ari Folman e David Polonksy com O Diário de Anne Frank não se deu sem dúvidas e redescobertas, como ambos revelaram na apresentação do livro em Paris, na Maison de la Poésie no início do mês. A dupla, que já se reunira em Valsa com Bashir (2008) e em O Congresso (2013) – Polonksi foi responsável pela direcção artística dos dois filmes de Folman – começou por rejeitar o desafio da fundação. A abundância de adaptações (algumas pouco recomendáveis), a popularidade do diário, a presença icónica de Anne Frank, a sua apropriação pela cultura pop desaconselhavam a aventura que previa, também, a produção de um filme de animação.

Aos poucos foram reconsiderando. “Partilhei as dúvidas com a minha mãe. Ela tem 95 anos e disse-me que ia viver mais uns anos só para assistir à estreia nas salas de cinema”, contou Folman. “Sobreviveu ao Holocausto, tal como o meu pai. É um acontecimento que faz parte da história da minha família, está entranhado meu ADN. Acabei por aceitar. Não resisti.” Polonsky entrou em sintonia com amigo, ainda que por outras razões. “Nasci na antiga URSS, a minha família não se confrontou com o nazismo, mas os tópicos abordados por Anne Frank continuam a ser muito importantes e quis ver até onde podíamos ir na sua tradução para outras linguagens. Por outro lado, estou certo que se não fôssemos nós, outros acabariam por abraçar o projecto”.

A beleza contra o terror

Em Paris, Folman insistiu várias vezes na palavra missão. Queria traduzir graficamente O Diário de Anne Frank e levá-lo aos leitores mais jovens. Para que ficassem a conhecer o contexto político e histórico em que o diário foi escrito, para que se confrontassem com as perseguições nazis, com o Holocausto, o terror da guerra, a fome e a violência na Europa. Não faltam pranchas que ilustram estas realidades como Anne Frank as imaginou e relatou nos anos que viveu separada do mundo, em reclusão no anexo que o seu pai, Otto Frank, construiu. Acontece que nesta adaptação, os dois artistas decidiram ressaltar os pensamentos, o humor, a rebeldia da jovem (no seu inconformismo pressente-se já a inquietação que nos anos 60 agitaria a juventude da Europa e dos EUA). Para tal, uma das estratégias passou por preservar, com frequência, as palavras, como aquelas que podemos ler na página 113, a propósito da permanência da beleza contra a desgraça e a morte. Ouse-se, então, a pergunta: reflectirá este livro a concepção que Anne Frank nos deixou da beleza?

“Espero que sim”, diz Ari Folman. “Penso, por vezes, que a percepção geral das pessoas em relação à Segunda Guerra Mundial e ao Holocausto é a de que nesses tempos não havia vida. Quando pensamos na vida nos guetos judeus, só a concebemos partir de imagens de corpos nas ruas ou da fotografia da criança de braços no ar no gueto de Varsóvia. Sabe como os meus pais se conheceram? A minha mãe vivia no gueto de Lodz [na Polónia], tinha 16 anos, quando reparou num jovem que acabara de entrar com a sua família. Sabe porquê? Porque ele, além de ser bonito [risos], carregava a sua cama com a ajuda do porteiro. Ela terá dito a uma amiga algo como ‘este homem tem a coragem de trazer a sua cama para o gueto! Hei-de casar com ele!’ E, quatro anos depois, casou. No Diário de Anne Frank a vida também está representada e é muito bonito o modo como a Anne Frank a observa. Penso que nos envolvemos muito com esse lado, atentos as conjunto das personagens, ao modo como se vestiam, àquilo que sentiam, às suas idiossincrasias. Normalmente, quando se lê o livro, não se pensa nisto, mas no inimigo que aguarda lá fora. E somos muito influenciados pelo facto de sabermos como a história acaba.”

A vida de Anne Frank no diário gráfico de Ari Folman e David Polonksy acolhe os anseios, as esperanças e medos dos habitantes do anexo (a irmã e os pais de Anne, a família van Daam, o dentista Albert Dussel), ilustra os desentendimentos domésticos, as peripécias provocadas pela falta de alimentos ou pela ameaça dos ladrões e das denúncias. Chega mesmo a enfatizar a dificuldade das relações interpessoais, o sufoco a que a vida privada é sujeita sem a liberdade de uma vida pública (as personagens vivem sem espaço entre elas). O livro não se furta ao desespero, mas contraria-o, ilustrando o humor e a ironia da própria Anne Frank, humanizando o drama das famílias (vejam-se as páginas 80-81 ou 127). E para o equilíbrio desta relação, muito contribuiu a sensibilidade de Folman e de Polonsky à escrita da jovem.

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O livro não se furta ao desespero, mas contraria-o, ilustrando o humor e a ironia da própria Anne Frank, humanizando o drama das famílias

Entre as palavras e as imagens

“Enquanto relíamos o diário, fomos reparando na qualidade da escrita. Era boa literatura”, conta David Polonsky. “Como ilustrador, tenho uma regra. Quando o texto é bom, não se desenha. Por isso, o leitor encontra tantas machas de texto. Uma das raras ocasiões em que não segui a regra aconteceu quando a Anne Frank usa a metáfora para descrever o isolamento no anexo [páginas 86-87]. É uma imagem com tal pathos que não lhe resisti. Andei à volta dela durante dias, modifiquei o desenho inúmeras vezes. No fim, fiz uma ilustração que noutras condições não faria”. Embora se vislumbrem referências familiares no estilo de desenho e na planificação das páginas, a banda desenhada é uma arte recente no percurso do ilustrador. “Há autores que considero incontornáveis, e que me influenciaram, como o Chris Ware, o Daniel Clowes, os autores do grupo Actus [fundado em 1995 em Israel por Rutu Modan, autora de BD premiada internacionalmente], mas não é a área em que trabalho habitualmente. Fazer banda desenhada ainda é para mim uma actividade difícil, considero-a uma linguagem muito complexa. Quando fiz a adaptação gráfica de Valsa com Bashir apercebi-me disso. No cinema de animação, existem várias imagens, nenhuma é definitiva. Na banda desenhada, procura-se uma imagem que congele um momento no tempo. Também, por isso, decidimos experimentar menos com O Diário de Anne Frank. Optámos por pranchas muito tradicionais e por uma abordagem o mais despretensiosa possível. Já era um grande desafio traduzir um texto preexistente em banda desenhada. Tentámos não ser muito criativos com as imagens."

A propósito de outras referências, David Polonsky evoca os ilustradores da revista satírica alemã Simplicissimus, que entre os finais do século XIX e a ascensão do nazismo não poupou a hipocrisia da sociedade alemã. E, entretanto, Ari Folman junta-se à conversa sobre BD: “Tenho tantas ideias. Gostava muito de fazer a história dos refugiados palestinianos em banda desenhada. E se esta colaboração se mantiver, creio que é possível desenvolver esse projecto. A banda desenhada é uma grande forma de arte. Como argumentista, obrigou-me muito a pensar naquilo que devia integrar ou excluir. E no caso do diário de Anne Frank, em que todas palavras são essenciais, foi um grande desafio”. Sobre a versão cinematográfica, cuja estreia está prevista para 2019, o cineasta não adianta muito: “A Kitty, a amiga imaginária de Anne Frank, é a narradora. Ela acha que a Anne ainda está viva e parte à sua procura. Nessa viagem, descobre o diário e lê-o num museu. Nesse preciso momento, regressa ao passado e o que veremos nas imagens seguintes é o que está neste livro. Tentámos manter no filme essa apologia da vida de que já falamos e que a Anne Frank conservou no seu diário. Vai ser um filme de animação para crianças”. Assim, e até ao dia de estreia, Ari Folman, na companhia de David Polonksy, continuará firme na sua missão.

O PÚBLICO viajou a convite da Porto Editora

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