"A razão está em retrocesso. A defesa dos factos está a ser ameaçada"

Antonio Caño, director do El País, foi ao "Festival P" pôr-nos a pensar sobre as ameaças ao jornalismo e às democracias liberais. "Hoje temos de tentar fazer-nos ouvir no meio de um intenso ruído".

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O jornalismo está obrigado a rever os seus princípios, os seus compromissos sociais, a sua função na sociedade, defende o director do El País, numa conversa com o PÚBLICO. Mas olhar para trás lembrando sempre o que o distinguiu. "Não importa o digitais que somos, estamos aqui para alertar a sociedade e para a ajudar a progredir." E a busca da verdade é a única coisa que dá sentido a um jornalista.

Tem dito que o jornalismo está a passar por um "momento dramático" e que também a democracia se encontra ameaçada. Olhando para o futuro, devemos encarar o jornalismo com pessimismo ou com optimismo?
As democracias liberais e representativas estão intrinsecamente ligadas ao jornalismo livre e independente - e uma coisa não faz sentido sem a outra. Portanto, muitos dos perigos e das ameaças que neste momento pairam sobre o jornalismo livre são também perigos que afectam as democracias liberais e representativas, do tipo das que conhecemos na Europa nas últimas décadas. Assim, ainda que acredite que o jornalismo independente e de qualidade esteja efectivamente em perigo, parece-me mais grave ainda que as sociedades e as democracias estejam também em perigo. 

A origem está provavelmente na crise económica de 2008, que rompeu com anos de calma e tranquilidade no panorama internacional. A maneira como a classe política geriu esta crise global, que afectou especialmente a Europa e os Estados Unidos, provocou uma série de frustrações que se foram multiplicando e a que as novas tecnologias deram uma gigantesca possibilidade de difusão. E essas frustrações vieram pôr em causa toda a ordem democrático-liberal estabelecida e todas as suas instituições, nas quais se inserem o jornalismo e os jornais. Se é verdade que as forças da mudança se aproveitam da turbulência, também as forças populistas o fazem. E da turbulência actual emergiram personagens como Donald Trump, Vladimir Putin ou Recep Erdogan, que souberam canalizar essas frustrações para ganhos políticos, mas que põem em questão as democracias liberais.

Uma das questões que se levantam hoje é se o jornalismo tem de estar em confronto com as redes sociais. Neste contexto, devemos olhar para elas como um aliado ou como um adversário?
Devemos sem dúvida tentar que sejam aliados. As redes sociais e aquilo que elas significam vão perdurar, se calhar não com as marcas e sob as formas como as conhecemos hoje em dia. Mas o facto de agora os seres humanos conseguirem comunicar instantaneamente entre si e expressar as suas opiniões sem intermediação – é essa a chave das redes sociais – é sem dúvida algo que não é passageiro e que põe em questão o futuro do jornalismo tradicional.

Pessoalmente, nada tenho contra as redes sociais, apenas contra algumas das pessoas que as usam. Dizer o contrário seria dizer que sou contra os automóveis ou contra os telemóveis porque há quem conduza de forma suicida ou quem faça ameaças por telefone. 

O trabalho do jornalista é hoje mais difícil?
Muito mais. Antes falávamos no meio do silêncio, hoje temos de tentar fazer-nos ouvir no meio de um intenso ruído.

Acontece vermos as críticas e ficarmos na dúvida de estarmos a fazer bem o nosso trabalho. Isso condiciona-nos mais do que deveria?
Sim. Obriga-nos a rever os nossos princípios, os nossos compromissos sociais, a nossa função na sociedade. Creio que este é um momento em que seria útil que os jornalistas parassem e olhassem para trás, e pensassem na razão de insistirmos e de ainda estarmos aqui hoje. Na redacção nova do El País, que remodelámos há cerca de um ano como parte da transformação digital por que o jornal passou, mandei pôr numa das paredes uma reprodução daquela fotografia histórica do jornal tirada a 23 de Fevereiro de 1981, a noite do golpe de Estado [em Espanha]. Naquela noite, o El País fez uma edição muito ousada, desafiando os militares e a polícia que tinham ocupado o Congresso dos Deputados. Foi sem dúvida uma das razões pelas quais o golpe fracassou. Eu quis ter essa fotografia na redacção para nos lembrar que não importa o quão digitais somos, não importa o quanto tenhamos de nos transformar para sobrevivermos, porque o que define a nossa existência é esse momento em que um jornal denuncia um golpe de Estado. Estamos aqui para alertar a sociedade e para a ajudar a progredir, pondo à sua disposição a informação necessária para que possa tomar as decisões correctas. 

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Antonio Caño quis esta fotografia numa parede da redacção do El País para lembrar a missão de um jornalista (na foto, a noite do golpe de Estado a 23 Fevereiro de 1981, jornalistas de vários media lêem uma das sete edições especiais do El País) cortesia el país / Ricardo Martin

Creio que tem razão. Mas um dos problemas que se levantam é quando esse ruído de que falamos se cruza com motivações políticas. Sente-se isso em Espanha, mais especificamente no El País?
É esse o problema. Claro que a mim me dói quando os leitores criticam a informação do El País nas redes sociais. Dói-me, mas há que dizer que há ocasiões em que isso nos ajuda, em que as chamadas de atenção dos leitores servem para corrigir uma notícia que tinha erros. Não é isso que é perigoso. O facto de os nossos leitores terem capacidade para comunicar directamente connosco obriga-nos a ser humildes, o que é uma coisa boa. O perigoso, e há que denunciá-lo, é quando a maior parte dessas críticas são campanhas de forças políticas com o objectivo de desprestigiar os meios de comunicação. O ataque de determinadas forças políticas aos meios de comunicação não ocorre por estes servirem interesses ocultos; ocorre porque esses mesmos meios de comunicação defendem as democracias que certas forças políticas querem liquidar.

Como jornalistas perdemos o monopólio da opinião pública. O conceito de verdade tem perdido valor, para os leitores e para os cidadãos? E esse conceito de verdade é entendido da mesma forma que era há dez, quinze anos?
A verdade é inimiga do populismo. Hoje questiona-se muito o que é isso da verdade. A moda são as emoções, os estados de alma. As opiniões não têm todas o mesmo valor e nada valem perante a realidade dos factos, e neste momento é muito difícil estabelecer essa realidade. O que eu penso sobre o funcionamento do fígado de nada serve porque não sou médico. Uma pessoa que diga que o desemprego em Espanha é de 18%, porque assim o dizem as estatísticas oficiais, pode encontrar-se frente a alguém que rebata essa percentagem, que sente que é muito superior a 25%. Há quem diga que as alterações climáticas não existem simplesmente porque acham que não, ou acham que sempre houve Verões quentes e Invernos frios e que nada de novo está a acontecer, não obstante as provas científicas ou os prémios Nobel que demonstram os factos de forma racional. A razão está em retrocesso, e a defesa dos factos mediante o uso da razão está a ser ameaçada. Para quem fez carreira a acreditar na defesa dos argumentos racionais, é um problema muito sério.

Face a estes desafios será que nós, os jornalistas, veículos de comunicação credível, temos o dever de afirmar claramente o que cremos ser racional e de interesse comum?
Timothy Garton Ash [historiador e colunista do The Guardian] costuma dizer que a busca da verdade é a única coisa que dá sentido a um jornalista. A busca honesta da verdade. E nisto temos também de entrar um pouco no que é a honestidade neste contexto. O caso de Trump é, neste sentido, paradigmático: muito recentemente, a imprensa dos Estados Unidos noticiou que o genro de Trump [Jared Kushner] se tinha reunido com os russos. Depois de vários dias de dúvidas, o próprio admitiu que se tinha efectivamente reunido com os russos por razões profissionais. Pouco depois, uma empresa americana de sondagens perguntou aos cidadãos se acreditavam nessas reuniões e cerca de 40% respondeu que não, mesmo depois de ele o ter admitido. Há imensas pessoas que querem continuar a acreditar naquilo em que acreditam, independentemente das provas em contrário que lhes apresentem.

Em Espanha, um certo partido político, que se tornou muito famoso nos últimos anos, inventou uma frase muito demagógica e muito chamativa que dizia que a pobreza energética causava mais mortes do que os acidentes de viação. Posteriormente, muitos trabalhos bem-fundamentados demonstraram que tal não é verdade, mas de pouco valeu porque a frase é tão bonita e resume de tal maneira um estado de alma que as pessoas querem acreditar nela. Isto é parte das dificuldades que o jornalismo enfrenta, porque mesmo que o nosso jornal seja muito bom, vai sempre haver um grupo de pessoas muito sectárias que não quer acreditar, e pouco lhes importa que seja verdade ou não. É o chamado “jornal do eu”. Essa possibilidade de ler uma notícia aqui, outra ali e outra acolá, faz com que algumas pessoas elejam aquelas com as quais estão de acordo. Tudo o resto é simplesmente descartado. E as pessoas vivem felizes dentro desse ambiente que elas próprias criam.

Porque é confortável, as pessoas sentem-se bem assim. Mas a realidade não é tão simples…
Não. Os jornais de verdade publicam notícias e artigos com os quais não estamos de acordo e oferecem-nos uma realidade que é incómoda e que entra muitas vezes em choque com os nossos preconceitos e a nossa ideologia, e eu compreendo que isso seja incómodo.

A crise económica geral que também atinge o jornalismo, e que nos retirou jornalistas e colunistas, fez-nos perder qualidade? Colocou-nos numa posição mais frágil?
Qualquer actividade humana é mais difícil num contexto de crise económica.  Um antigo ministro das Finanças português [António Bagão Félix] explicava-me que era difícil ser ministro das Finanças quando as finanças estavam tão más. A crise económica foi destrutiva, não só em termos materiais e quotidianos, mas também do ponto de vista ético e moral. Causou enormes danos em quase todos os países desenvolvidos, e um desses danos graves foi ter posto o jornalismo de qualidade à beira do abismo.

Toda a imprensa e todos os mais importantes jornais do mundo estão neste momento em crise, não conheço um que não esteja. Todos sofreram uma queda de proporções bíblicas da sua difusão e das suas receitas, gerais e publicitárias. Portanto, todos tiveram de se adaptar como organizações e de reduzir a sua presença, o que tem hoje consequências muito importantes, como a redução drástica dos correspondentes pelo mundo. Isto é muito importante, porque ficam a faltar os testemunhos directos das atrocidades que ocorrem. Uma das razões que levaram à queda de Somoza na Nicarágua foi o facto de um soldado do seu exército ter dado um tiro num jornalista da cadeia ABC dos Estados Unidos. Quando essas imagens chegaram aos Estados Unidos, a opinião pública considerou-as inaceitáveis e o governo americano viu-se obrigado a deixar de apoiar Somoza, o que levou à sua queda.

Há outras histórias similares, começando pela Guerra do Vietname, a primeira vez em que a imprensa foi testemunha de um acontecimento marcante para a ordem internacional: uma das razões que levaram à saída dos Estados Unidos do Vietname foi que a opinião pública não conseguiu suportar a visão do sofrimento das suas tropas.

Em imensas ocasiões, a presença de jornalistas ajudou a resolver conflitos. Neste momento não há jornalistas estrangeiros na Síria ou no Afeganistão ou em praticamente nenhum conflito no mundo. E uma das razões para que tal aconteça é que os meios de comunicação não podem pagar aos jornalistas. Estamos a deixar de ser testemunhas directas dos grandes acontecimentos e nesse sentido sim, a crise teve efeitos devastadores. Por outro lado, deu-nos uma nova dimensão, e como falámos antes obrigou-nos a ser mais humildes.

E trouxe-nos muitas novas oportunidades. A versão digital do El País chega hoje a quantos utilizadores?
Temos 45 milhões de utilizadores únicos, dos quais metade está na América Latina e a outra metade em Espanha. Ou seja, ao mesmo tempo que vivemos esta crise de que falávamos, o jornalismo está perante uma oportunidade de ouro. 

Tendo em conta a necessidade de que falámos de garantir um jornalismo de qualidade, será possível ultrapassar esta crise sem investimento, sem procurar novos caminhos, sem investir para crescer?
Sem investimento, não. Precisamos de quem invista na imprensa, mas claro que temos de dar razões aos investidores para o quererem fazer. Investir não é um acto de caridade, é uma decisão económica que temos de entender e respeitar. Por muito que precisemos de dinheiro, não devemos pedi-lo. O que queremos é conseguir convencer os investidores de que há muitas e boas razões para investir nos meios de comunicação: porque vão ser um óptimo negócio no futuro; porque o número de pessoas que, conscientemente ou não, vive no alcance dos meios de comunicação é gigantesco; porque não há nenhum outro instrumento no mundo capaz de chegar a mais pessoas, e em particular os jornais de qualidade.

O mundo mudou, já não podemos pensar em pôr os jornais à venda num quiosque e esperar que as pessoas vão lá comprá-lo. Se os leitores estão no Facebook, nós temos de estar no Facebook. E o mesmo se passa com o Whatsapp ou o Instagram. Temos de procurar os leitores com humildade, tendo a noção que haverá ocasiões em que nem nos vão reconhecer, isto é, em que vão ler as notícias na página do El País no Facebook e, se depois lhes perguntarmos onde as leram, a resposta será “no Facebook” e não “no El País”. Essa é uma realidade com a qual temos de lidar, sabendo que somos necessários e que não nos podemos entregar à demagogia, que é hoje um perigo muito grande, pois tem à sua disposição um megafone, uma maneira de chegar mais longe e mais alto.

Nós também temos esse megafone, a questão é onde está a credibilidade para influenciar os leitores, os eleitores, os cidadãos. A edição impressa mantém o seu valor? Não pergunto se acredita na sua sobrevivência, porque acho que nenhum de nós consegue fazer futurologia, mas acha que mantém a sua importância e o seu valor?
Creio que tem muito valor. A minha gestão [do El País] tem passado essencialmente pela transformação digital, e houve ocasiões em que fui mal-interpretado e algumas pessoas, quer de dentro do jornal quer de fora, pensaram que esta direcção digital pressupunha que eu não acreditava na edição em papel, ou que tinha intenção de acabar com o jornal em papel. Nada mais longe da verdade. Estou convicto de que o papel tem uma função primordial. Há muitos entrevistados cujas entrevistas vão ser lidas na Internet por 45 milhões, mas que ainda me perguntam se sairá no papel, por muito que só alguns milhares de pessoas a leiam nesse formato. O papel mantém essa força de ser algo em que se pode tocar, que se pode guardar. O papel é mais um dos instrumentos que temos e que devemos continuar a utilizá-lo, por muito que às vezes seja tentador eliminar a edição impressa, pelo que custa e pelo pouco rendimento que produz. Às vezes fazemos umas contas e pensamos que se deixássemos o papel e investíssemos todo esse dinheiro no digital podíamos ser muito maiores. Seria um erro. Creio que os próprios jornais digitais gostariam de ter uma edição impressa, se pudessem. Portanto, sou da opinião que devemos manter o papel, pelo menos enquanto for possível.

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Os nossos leitores terem capacidade para comunicar directamente connosco obriga-nos a ser humildes, o que é bom. O perigoso, e há que denunciá-lo, é quando a maior parte dessas críticas são campanhas de forças políticas para desprestigiar os media

As edições em papel enfrentam hoje duas dificuldades, sobretudo para os leitores mais jovens: por um lado, a necessidade de se deslocarem para comprar o jornal, algo que era normalíssimo há dez anos; por outro, a sua não-gratuitidade, por oposição à maior parte das edições digitais. É sustentável manter a edição digital do El País gratuita por muito mais tempo?
A verdade, David, é que não sei responder a essa pergunta, mas creio que a questão não é essa. Penso que a evolução dos jornais vai rapidamente fazer com que o dilema não seja pago vs. grátis. Tem sido assim até agora, mas vemos hoje que nenhuma dessas opções tem por si própria resultado em êxitos, nenhuma.

Há modelos de jornais pagos que se debatem com os mesmos problemas para gerar receitas do que os jornais de acesso livre. Dirigimo-nos para um outro tipo de conceito, em que haverá uma convivência de espaços pagos com outros grátis. Estou de acordo que temos de cobrar pela informação e pelo nosso trabalho, e quando acabarem as receitas das edições em papel certamente que teremos de arranjar uma alternativa. Ou uma taxa fixa por acesso, ou um valor determinado por certas notícias, não sei. Mas sei que não será da forma tradicional, em que as pessoas têm de pagar um valor para poderem ler o jornal.

Os jornais terão de ser um espaço aberto, e nesse espaço aberto talvez possamos cobrar por determinados produtos ou actividades.

Os jornais que se mantiverem fechados não vão sobreviver. Temos de pensar nos jornais como mais do que veículos de notícias, temos de ser mais criativos. Se estamos em plataformas digitais podemos fazer muito mais coisas vinculadas à actividade informativa, porque um jornal não é apenas uma lista de notícias. E esse espaço do jornal tem de ser gratuito. Se impedirmos as pessoas de entrarem em nossa casa, é normal que acabem por desistir.

Há quanto tempo é director do El País?
Três anos, quatro meses e cinco dias.

Ainda se sente jornalista, ou cada vez mais um manager, um gestor?
Sempre fui, e continuo a ser, jornalista. A nossa empresa pode cometer muitos erros, mas nenhum tão grande como deixar a gestão económica nas minhas mãos. Eu dedico-me ao jornalismo e a tudo o que tem a ver com a direcção de um jornal, algo que também tem ingredientes políticos, sociais e culturais. Um jornal como o El País é uma instituição. É o principal meio de comunicação do mundo espanhol, é o jornal mais influente de Espanha e um dos grandes jornais da Europa, e isso traz uma grande responsabilidade que tem de ser gerida, e aí sim, talvez o meu trabalho exceda o jornalismo. Mas não tenho qualquer responsabilidade sobre a gestão económica.

A Espanha está a atravessar um período curioso, quiçá turbulento. Está optimista quanto ao que se está a passar, nomeadamente relativamente à Catalunha?
Há um ditado famoso que diz que um optimista é um pessimista mal informado. Por isso, e achando estar relativamente bem informado, não estou na verdade muito optimista. Creio que a Espanha está a passar por uma crise sistémica muito grave, e que o problema da Catalunha é espelho da crise profunda que atinge o sistema político espanhol. Todos os partidos e todas as instituições do Estado estão neste momento postos em causa, e são precisas reformas profundas, a começar pela nossa Constituição de 1978. A Espanha passou por anos gloriosos, desde 1976 até agora, os anos de maior progresso e de melhor convivência da sua História. 

A situação espanhola parece complexa, todos os casos de corrupção, de falta de entendimento partidário, um ano sem governo… Não parece haver uma saída fácil.
Claro, é muito complexo. Como dizia, este sistema precisa de uma reforma profunda. Há em Espanha quem chame a este sistema o “regime de 78”, como se fosse uma ditadura, e que defende que é preciso acabar com este sistema, liquidá-lo. Mas fazer isso seria acabar com a democracia para instaurar uma outra coisa qualquer, um sistema como os que estão agora em voga, sistemas autoritários validados por eleições, como a Rússia ou a Turquia, onde a imprensa é controlada e a democracia efectivamente não existe. Tal não é possível. A Espanha assenta numa democracia invejável, com níveis de tolerância e generosidade que não existem na maior parte da Europa. Com a Constituição de 1978 construímos um grande e lindo edifício que, 40 anos depois, precisa de uma pintura, de que lhe tape os buracos, antes que desabe. E há que começar a fazer isso, desde logo na Catalunha, onde a 1 de Outubro teremos um grande desafio ao estado de Direito.

Haverá referendo?
Não, não haverá referendo. Haverá agitação nas ruas, que pode ou não incluir a instalação de urnas de voto em alguns lugares. Mas será uma farsa de votação, por isso digo que não haverá referendo, no sentido em que entendemos uma votação num estado democrático, com as condições necessárias para que os resultados tenham legitimidade. Isso não.

A entrevista encontra-se publicada no P2, caderno de Domingo do PÚBLICO