Racismo e estatísticas
Não é possível combater o racismo e, em simultâneo, institucionalizar a classificação racial de todos os cidadãos.
A introdução de categorias étnico-raciais em registos administrativos do Estado e nos censos reforça os fundamentos do racismo e acrescenta pouco ao nosso conhecimento sobre a discriminação racial. É, na melhor das hipóteses, o exemplo típico das boas intenções de que o Inferno está cheio.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
A introdução de categorias étnico-raciais em registos administrativos do Estado e nos censos reforça os fundamentos do racismo e acrescenta pouco ao nosso conhecimento sobre a discriminação racial. É, na melhor das hipóteses, o exemplo típico das boas intenções de que o Inferno está cheio.
1. É verdade que a ausência de dados estatísticos com base em categorias étnico-raciais prejudica um conhecimento mais alargado da discriminação racial. Isto não é, porém, razão suficiente para usar aquelas categorias em processos estatais de inquirição ou de registo estatístico administrativo. A ausência de câmaras de videovigilância dentro das nossas casas também prejudica a monitorização e o combate à violência doméstica e não é por isso que vamos dar a nossa anuência ao fim da privacidade. Neste como em outros casos, é preciso avaliar o que se ganha e o que se perde com o reforço da capacidade de monitorização do Estado.
2. A categoria de raça é racista. Ou seja, o racismo não começa no tratamento desigual das raças mas na classificação das pessoas em termos raciais. Admitir a ideia de raça é admitir que há uma relação entre traços físicos e cultura. É admitir que devemos considerar alguém como outro por causa da cor da sua pele. É admitir que devemos começar por olhar uns para os outros em função de uma categorização subjetiva em termos raciais. Não é possível combater o racismo salvando a categoria de raça.
3. Quando o Estado introduz categorias raciais nas estatísticas oficiais contribui para a legitimação dessas mesmas categorias. O conhecimento do racismo pode e deve ser prosseguido com base em inquéritos e estudos financiados pelo Estado, mas não deve incluir a legitimação estatal das categorias raciais pela sua utilização em registos administrativos e nos censos. Não é possível combater o racismo e, em simultâneo, institucionalizar a classificação racial de todos os cidadãos.
4. O que se perde quando se recusa a introdução de categorias raciais é mais a eventual possibilidade de medir com rigor a discriminação do que o conhecimento aprofundado sobre o fenómeno e a estimação da ordem de grandeza da sua incidência. É pouco para compensar os riscos da legitimação estatal das categorias raciais. Aliás, no atual contexto constitucional, nem essa medida mais rigorosa seria obtida. A impossibilidade constitucional de tornar obrigatória a resposta a perguntas de categorização étnico-racial iria distorcer de modos não controlados os resultados obtidos, por efeito das não-respostas. Como já acontece com a pergunta sobre religião nos censos, que deveria aliás desaparecer em próximas aplicações. É muito pouco liberal autorizar o Estado a interrogar os cidadãos sobre as suas crenças, mesmo quando se lhes dá a possibilidade de não responderem.
5. Conviria ainda avaliar com responsabilidade os riscos das novas dinâmicas de identidade coletiva que se constituiriam com base nos processos de categorização racial que se pretende institucionalizar. Num contexto generalizado de perda de vergonha progressiva dos supremacistas brancos, seriam estes os primeiros beneficiados pela possibilidade agora tornada legítima de expressarem com orgulho a sua identidade racial.
6. Se queremos mesmo combater o racismo e a discriminação em geral há já muita coisa que sabemos que nos permite agir. Não são precisas categorias étnico-raciais para, por exemplo, se por o SEF a funcionar melhor. Ou para incrementar as normas de direito de solo no regime da nacionalidade. Ou para proceder a processos de discriminação positiva no recrutamento para lugares na política, nos media ou na educação. Tudo isso pode ser feito e suficientemente fundamentado com o conhecimento que já temos ou com conhecimento novo que pode ser obtido com os instrumentos e métodos usados até aqui.
7. No fim, estou disponível para admitir que o tema das estatísticas étnicas não tem uma resposta consensual nem na comunidade académica nem nos meios políticos. Mas por isso mesmo, tendo em conta os riscos envolvidos, manda o mais elementar princípio de responsabilidade na ação política que se não abra uma nova caixa de Pandora.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico