A imbecilidade da praxe e necessidade de quarentena dos seus praticantes
As autarquias deviam tratar as praxes como um problema de saúde pública.
“O caloiro é incondicionalmente servil, obediente e resignado”; “não é um ser racional”; “não goza de qualquer direito”.
Manual de Sobrevivência do Caloiro
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“O caloiro é incondicionalmente servil, obediente e resignado”; “não é um ser racional”; “não goza de qualquer direito”.
Manual de Sobrevivência do Caloiro
Os artigos escritos com fúria são os mais fáceis de fazer. Este foi feito em péssimas condições, começou a ser escrito num restaurante num IPad, continuou numa sala de espera de uma estação de televisão e por fim numa viagem de carro, e acabou num café a 500 quilómetros do sítio original. Foi escrito em emails dirigidos a mim próprio, e não num processador de texto. Várias vezes tive de o enviar com medo de o perder. Mas, mesmo com todas as dificuldades de sítio, movimento, ruído e agitação, a fúria manteve-o vivo. Espero que os meus amigos revisores do PÚBLICO tenham em consideração este caos e me perdoem as gralhas, erros e mau estilo. Também não tenho contadores de palavras e caracteres, pelo que espero que não esteja nem pequeno, nem grande.
Aqui vai pois a fúria.
Há momentos em que se percebe muito bem por que razão este país não anda para a frente e um desses momentos é quando se traz para as ruas o espectáculo da praxe. As universidades, salvo raras e honrosas excepções, não a proíbem dentro das suas instalações, e, quando a escorraçam para os espaços públicos, as autarquias deviam tratá-las como um problema de saúde pública que exige uma forma qualquer de quarentena. Não o fazem. É por isso que não andamos para a frente.
As autarquias permitem que milhares de cidadãos sejam insultados pelo espectáculo da imbecilidade colectiva que se passa nos jardins e nas ruas. Aliás, o que se passa não é diferente do pastoreio das claques de futebol pela polícia de choque, em que um exército excitado e violento ameaça entrar em guerra com o exército do lado. Os espaços públicos pertencem ao público, a todos nós, não podem ser apropriados por actividades violentas e as praxes são um espectáculo de violência da estupidez. E a estupidez até pode matar, mas, mesmo que não mate, magoa a cabeça, o pensamento, a razão, a decência e boa educação. É por isso que não andamos para a frente.
Em muitos sítios não se pode fumar, ter atitudes “indecentes”, provocar os outros passeantes, mas, se forem os meninos e meninas da praxe, está tudo bem.
Mas não está. Se se quer permitir as praxes — o que para mim está bem fora das escolas e das ruas —, ao menos que se proceda com medidas de sanidade pública, como seja atribuir-lhes uns locais vedados, cercados por altos muros, os curros das praças de touros, ou os lotes vazios da selva urbana, os sítios poluídos onde ninguém quer ir, os matadouros abandonados, as fábricas em ruínas, aqueles cenários dos filmes de terror. Aí, se quiserem, podem dedicar-se a rastejar pelo chão, a lamber coisas inomináveis, a fazerem genuflexões “servis” como mandam os manuais da praxe. É por isso que não andamos para a frente.
Quem tem também muitas responsabilidades são os paizinhos e as mãezinhas dos dois lados da praxe, os que mandam e os seus servos, certamente também porque muitos deles andaram já nessas andanças e pelos vistos gostaram. Claro, quando as coisas correm mal, e já correram muito mal, então protestam, mas já é tarde de mais. Eu sei bem que muitos dos praxados e praxantes já são jovens adultos, sem estarem sujeitos à autoridade paternal, mas presumo que continuam a viver com as mamãs, e à custa dos progenitores, pelo que leverage existe — mas, como tudo neste infeliz país destes dias, não é exercido. Não é exercido pelas autoridades académicas que, quando muito, olham para o lado para não verem o nojo de tão baixa função em tão alta universitas, cheia de dignidade latina e de indignidade humana. É por isso que não andamos para a frente.
Não há nada de bom nas praxes, por muito que haja uma escola de sociólogos e antropólogos que aceitam sempre justificar tudo com o fabuloso argumento dos ritos de passagem e da “integração”. Mas, em bom rigor, o que é que distingue estas exibições de autoridade do segundo ano sobre os caloiros do consentimento social da violência doméstica? E afirmam que estas brincadeiras imbecis ajudam os meninos e meninas a “integrarem-se” nas universidades. Estou mesmo a ver os praxados a correrem para os livros no dia seguinte ao fim das semanas da praxe, já muito “integrados” em todas as virtudes dos altos estudos. É por isso que não andamos para a frente.
Tenho muita honra em ter toda a vida combatido estas imbecilidades socialmente perigosas, algumas vezes de forma, digamos, mais consequente. Não conto desistir e talvez assim assegure um lugar no paraíso e possa ver, da minha branca nuvem, as actividades dos diabos. Porque de uma coisa eu tenho a certeza — para entrar no Inferno há praxes, para “integrar” os malditos no exercício da autoridade diabólica, humilhando-os fazendo-os rebolar na lama sulfurosa do Inferno. Boa praxe!