Está ansioso? Desde 1945 que “é urgente reformar a ONU”
Um relatório interno de 1969 descreve a ONU como “lenta e pesadona” e “monstro pré-histórico”. Mas as críticas existem, e bem duras, desde o dia em que a mais idealista organização do mundo nasceu.
O filósofo político espanhol Daniel Innerarity diz que é optimista porque é céptico. Ao contrário dos pessimistas, não tem a certeza de que seja “impossível mudar” as coisas, nem que “tudo está esgotado”.
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O filósofo político espanhol Daniel Innerarity diz que é optimista porque é céptico. Ao contrário dos pessimistas, não tem a certeza de que seja “impossível mudar” as coisas, nem que “tudo está esgotado”.
Ao ler a proposta de António Guterres para reorganizar o pilar da paz e segurança das Nações Unidas — apresentada esta semana e que está a ser analisada à lupa nas capitais dos 193 Estados-membros —, temos de encaixar o secretário-geral português no grupo dos optimistas.
Óbvio, dirão. O chefe da diplomacia internacional e CEO da mais complexa máquina jamais inventada tem de acreditar que é possível melhorar o mundo.
A sua proposta (uma nota de seis páginas chamada Restructuring of the Peace and Security Pillar e um organigrama que cabe numa folha A4) não é uma revolução (não faria sentido), mas vai gerar resistência — desde logo porque não acrescenta cargos de poder e faz o contrário, elimina.
É uma proposta ambiciosa e racional, que quer cortar redundâncias e reduzir custos e faz uma coisa crucial: junta civis e militares na mesma sala (literalmente).
Faz sentido que as operações de paz sejam planeadas (como são hoje) com o Departamento de Assuntos Políticos (os diplomatas) de costas voltadas para o Departamento de Operações de Manutenção de Paz (os militares), cada um chefiado pelo seu subsecretário-geral, no caso um americano e um francês?
Guterres já começou a fazer experiências de fusão ao nível regional, onde os problemas causados pela clássica divisão se tornam evidentes. Trabalhei mais de dois anos numa missão de paz da ONU e vi como o facto de o escritório dos direitos humanos estar num bairro, o dos diplomatas noutro e o dos militares num terceiro criou momentos de autismo absurdos, para além de erros técnicos e lentidão nas decisões. A ONU não ficou parada nos 15 anos que passaram, mas Guterres não está sozinho quando pede uma ONU “mais coerente” e “mais ágil”.
O seu desafio será conseguir que os Estados-membros (que pedem reformas) não bloqueiem (de novo) as reformas.
Ler o imponente Governar o Mundo – História de uma ideia: de 1815 até aos nossos dias, do historiador britânico Mark Mazower (acabado de editar pelas Edições 70), abala o mais convicto dos optimistas (no mínimo, ficamos “poptimistas”, optimistas com uma perna e um “p” de pessimismo).
Fiquei a pensar que pecado original tem a ONU — herdado talvez da Sociedade das Nações e nunca resolvido — que amarra a organização mais idealista do planeta a esta imagem de ineficácia, desorganização e desperdício?
Em 1944, ainda a ONU não tinha nascido, já o diplomata e historiador britânico Charles Webster a descrevia, no seu diário, como “uma aliança das Grandes Potências metida numa organização internacional”. Em 1945, na própria conferência de São Francisco na qual a ONU nasceu, houve reservas explícitas do Canadá, da Austrália e de muitos pequenos países, que criticaram “a natureza auto-representativa e antidemocrática da nova organização”.
Três anos depois, em 1948, já se falava sobre a necessidade de “reestruturar um Secretariado problemático” (escreve Mazower) e Robert Jackson, um burocrata de topo especialista em organização de operações complexas escolhido para “melhorar a eficácia da ONU”, só se aguentou uns meses no cargo, acabando por desistir “perante os bloqueios burocráticos” e a relutância de Trygve Lie, o primeiro secretário-geral, em “reestruturar o Secretariado”. Uma pessoa lê e não acredita. Há exemplos ao longo de todo o livro (e são 500 páginas).
Em 1946, Dean Acheson, o subsecretário de Estado americano que ajudara de forma decisiva a convencer o Senado a ratificar a adesão à ONU (e que antes trabalhara com John Maynard Keynes em Bretton Woods), já dizia que a ONU era “um manicómio”. Albert Einstein disse que a ONU iria fracassar como instrumento de paz por causa da “soberania absoluta dos Estados-nações” e propôs a criação de uma “Constituição Federal do Mundo” para impedir uma guerra nuclear. O Presidente Roosevelt, um dos pais da ONU, lutou para que a organização não tivesse poder de veto por acreditar que, com isso, seria condenada à impotência.
George Marshall (o mesmo do Programa de Recuperação Europeia do pós-II Guerra Mundial), quando, em 1948, já secretário de Estado do Presidente Truman, foi depor ao Congresso, argumentou que a “reforma da ONU” teria de ser implementada de forma “cuidadosa” para evitar que a organização se fragmentasse e tivesse o mesmo destino da Sociedade das Nações, recuando na ideia que lançara meses antes de criar um grupo de estudo sobre as alterações ao veto e um novo órgão para lidar com as questões de segurança quando o Conselho de Segurança estivesse num impasse.
Dez anos depois, em 1958, são já evidentes os problemas do sistema de apoio ao desenvolvimento, que tinham uma abordagem de modelo único à resolução dos problemas. Mazower dá como exemplo a conferência americana de 1958 destinada a definir a agenda para as necessidades do desenvolvimento em África na qual não esteve um único africano, nem foi analisada nenhuma avaliação africana das necessidades do continente.
A lista é longa, mas não resisto a partilhar mais um exemplo: o célebre relatório Capacity Study, de 1969, ainda hoje considerada uma das mais brilhantes, demolidoras e perspicazes análises críticas do pilar de desenvolvimento da ONU. Os autores são Robert Jackson (o tal que em 1948 desistira de reestruturar o Secretariado) e Margaret Anstee (mais tarde a primeira mulher subsecretária-geral da ONU), duas “figuras profundamente empenhadas na causa da cooperação internacional”, sublinha o historiador. Os dois identificam o problema da “forma desconexa” como a ONU crescera nas duas décadas anteriores, com secretários-gerais incapazes de supervisionar a organização, uma Assembleia Geral antiamericana como centro de poder alternativo, novas agências nascidas sem orientação superior e apostadas em garantir uma fatia do bolo do desenvolvimento.
Às tantas (pág. 331 de Governar o Mundo) Jackson escreve isto: a ONU está “a ficar lenta e pesadona, como um monstro pré-histórico... Durante muitos anos, procurei o cérebro que orienta as políticas e as operações do sistema de desenvolvimento da ONU... foi uma busca em vão... durante muitos anos, o sistema de desenvolvimento da ONU tentou travar uma guerra contra as privações com muito pouco ‘cérebro’ para o orientar. A sua ausência poderá ser a maior limitação à sua capacidade. Sem ele, a evolução futura do sistema de desenvolvimento da ONU poderá facilmente repetir a história dos dinossauros”.
Na próxima semana vamos ouvir falar muito de reformas da ONU e da urgência em implementá-las. Deixo-vos esta antecipação poptimista.