Rentrée não-ficção: chovem almôndegas
Na não-ficção, dezenas de títulos. Destaque para a História Contemporânea, com a Revolução Russa e outros temas.
Como acontece todos os anos, a rentrée editorial da época 2017/2018 é marcada por uma enorme quantidade de títulos, que, no domínio dito do "ensaio" ou da "não-ficção", se caracterizam por uma qualidade muito desigual. Este dilúvio livresco é prova da salutar vitalidade dos editores portugueses – ou, numa visão mais cruel, da sua insana temeridade.
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Como acontece todos os anos, a rentrée editorial da época 2017/2018 é marcada por uma enorme quantidade de títulos, que, no domínio dito do "ensaio" ou da "não-ficção", se caracterizam por uma qualidade muito desigual. Este dilúvio livresco é prova da salutar vitalidade dos editores portugueses – ou, numa visão mais cruel, da sua insana temeridade.
Destacando alguns dos títulos mais aconselháveis, salienta-se, pela Quetzal, o terceiro volume da Bíblia (Antigo Testamento – Os Livros Proféticos), na controversa mas – e até por isso – valiosíssima tradução de Frederico Lourenço. No campo em que Lourenço se move com mais brilhantismo, os estudos clássicos, a Gulbenkian irá em breve reunir num único volume os Estudos de História da Cultura Clássica, de Maria Helena da Rocha Pereira, abrangendo assim a cultura grega e a cultura romana, até agora alvo de edições separadas. O aniversário da Revolução Russa, por seu turno, é assinalado por duas obras de autores estrangeiros – A Revolução Russa, de Sheila Fitzpatrick (Tinta-da-china), e A Tragédia de um Povo. A Revolução Russa, 1891-1924, de Orlando Figes (Dom Quixote) –, a par do contributo mais militante, engagé e reflexivo, e por isso historiograficamente muito menos interessante, dado pela obra colectiva A Revolução Russa. 100 Anos Depois (Parsifal), de vários autores portugueses (António Louçã, Fernando Rosas, Rui Bebiano, etc.).
Já que se reeditará Viagem à União Soviética, de Urbano Tavares Rodrigues, de 1973, é pena ninguém se ter lembrado, ao que sabemos, de republicar, por ocasião dos 100 anos da revolução de Outubro, os textos de Jaime Batalha Reis na Rússia dos sovietes, objecto de uma edição da Afrontamento organizada no já longínquo ano de 1984 por Joaquim Palminha Silva, e, já agora, de um recente e (como sempre) excelente artigo do historiador Ernesto Castro Leal, saído há pouco na revista História Crítica.
Falando de História, novidades de relevo, como o polémico Tempo de Raiva. História do Presente, de Pankaj Mishra, produto típico da "historiografia global" dos nossos dias, com laivos anti-ocidentalistas, o importante Holocausto. Uma Nova História, de Laurence Rees, ou, centrando-se na realidade nacional, e ambos através da clarividente Temas e Debates/Círculo de Leitores, o regresso de Valentim Alexandre e da sua habitual solidez, com Contra o Vento Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960), e, num registo interventivo e polémico já presente em artigos neste jornal, Irene Flunser Pimentel pergunta: O Caso da PIDE/DGS – Foram julgados os principais agentes da polícia política?
A memória da 2ª Guerra, por sua vez, é recuperada por Svetlana Alexievich em As Últimas Testemunhas, publicado pela primeira vez em 1985 e agora dado à estampa pela Elsinore. Histórico, em vários sentidos, é também o lançamento das Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa, um empreendimento monumental coordenado por José Eduardo Franco e Carlos Fiolhais (Círculo de Leitores), que nos dará, num período temporal dilatado, uma selecção de nada menos do que 80 obras em 30 volumes, resultado de um projecto levado a cabo por uma equipa multidisciplinar de 174 elementos. Esmagador. No terreno das memórias, realça-se, quer pelo seu interesse histórico, quer pelos conhecidos dotes literários e pela originalidade estilística e fina ironia de um dos nossos maiores diplomatas, Abril de Outras Transições, de José Cutileiro (Dom Quixote). Nos estudos de género, as edições Orfeu Negro trazem o clássico Problemas de Género. Feminismo e subversão da identidade, de Judith Butler, com tradução de Nuno Quintas.
A literatura de viagens, agora cultivada com afinco por várias editoras, num movimento que começou na Tinta-da-china e depressa alastrou a chancelas de qualidade como a Relógio D’Água ou a Sextante, tem o seu apogeu outonal em A Conquista do Inútil, de Werner Herzog, da Tinta-da-china, casa livreira que, na secção das biografias, faz cair dos céus O Anjo Pornográfico, inultrapassável reconstituição da trajectória de vida de Nelson Rodrigues pela pena envolvente e sedutora de Ruy Castro.
Na ciência, a Gradiva a pontuar, como é hábito: na colecção Ciência Aberta, superiormente dirigida por Carlos Fiolhais, Tecnologia versus Humanidade, de Gerd Leonhard, e, em Outubro, Viagem ao Infinito, de Martin Rees. Com A Estranha Ordem das Coisas, António Damásio, na Temas e Debates, que nos traz também A Invenção da Ciência, de David Wooton. E, mais para o final do ano, a Guerra & Paz levará aos escaparates a correspondência filosófica e sentimental de Hannah Arendt e Martin Heidegger, outra grande notícia.
Portugal, Setembro de 2017: tantos livros para tão pouca leitura.