Os novos portugueses na rentrée literária
Há vozes novas na literatura portuguesa: Carla Pais e Raquel Gaspar Silva. O cenário de ambas é o Portugal rural, onde as histórias parecem crescer da terra e onde os mortos continuam tão vivos como os vivos. E há ainda a confirmação de um universo literário muito singular, o de Rodrigo Magalhães.
Com a rentrée chega uma voz nova à literatura portuguesa: Carla Pais (n. 1979), com o romance Mea Culpa (Porto Editora). Confirma-se a de um outro autor, Rodrigo Magalhães (n. 1975), com o romance Os Corpos (Quetzal) – antes escreveu Cinerama Peruana (Quetzal, 2013). Há ainda um outro livro de uma autora estreante a merecer toda a atenção (apesar de ter sido publicado há cerca de dois meses) pela singularidade da sua escrita: a novela Fábrica de Melancolias Suportáveis (Elsinore), de Raquel Gaspar da Silva (n. 1981).
Curiosamente – ou talvez nem tanto, porque é um ambiente que vem surgindo amiúde nos livros da mais nova geração de autores –, as histórias narradas por ambas as escritoras têm o mundo rural como cenário. As suas personagens movem-se num tempo que parece ser de "outro tempo", num mundo quase atávico, onde religião e superstição se misturam, onde vozes ecoam nas ruas e nas casas, onde tudo se diz e onde quase nada pode ser dito. Um mundo onde as histórias parecem crescer da terra, das pedras dos muros, das brenhas e canelhas, dos currais e das capelas, dos lameiros e das searas ainda por ceifar, e onde os mortos continuam quase tão vivos na memória da cal e do granito como os vivos que habitam essas casas.
Raquel Gaspar Silva, nascida em Évora, e actualmente desempregada, diz que esta é “uma novela sobre o Alentejo, um Portugal profundo que está em vias de extinção”. E acrescenta: “É este Alentejo que se canta na voz dos que trabalhavam o campo, uma terra mítica e onírica, rude e bela.” Ao escrever sobre os campos alentejanos, Raquel Gaspar Silva diz que foi como “acalmar as vozes extenuadas da labuta que habitavam as casas caiadas, oferecer-lhes uma espécie de paz, aquela paz do meio-dia, a hora santa do Dia da Espiga em que, como se dizia, as águas dos ribeiros não correm, o leite não coalha, o pão não leveda e as folhas se cruzam”. A história narrada tem no centro uma família da classe trabalhadora num contexto social de natureza rural e que habita uma fábrica de cortiça. Uma das personagens, Carlota, que se destaca dos cinco irmãos, é quem parece fazer girar a história, que por sua vez a acompanha e a abandona. A fábrica que titula o livro é assim uma espécie de epicentro deslocado da vida da aldeia e do seu imaginário. É nela que nascem as histórias, as lendas, os medos, fazendo dela uma “fábrica de possibilidades”.
Para a autora, esta é uma história que em parte lhe define a identidade: "[Embora] seja ficção, é fácil projectar-me na vida destas personagens, porque habitam territórios que conheço muito bem. Este Alentejo das lendas, do folclore, é a minha memória indirecta, sentimental. São histórias que ouvi em pequena e que me definiram também enquanto leitora, porque a oralidade também é uma parcela enorme nas minhas referências de ‘leitura’, e consequentemente definiram a minha voz como autora. Quis preservar expressões que entraram em desuso e contar tudo como se acreditava ter acontecido.” Fábrica de Melancolias Suportáveis é assim uma espécie de depósito de memórias sentimentais. A autora confessa que conhecia muito bem os alicerces desta história, pois começou a trabalhar no livro no início de 2016, sempre com a ajuda do editor, Guilherme Pires, então na Elsinore, e que foi quem a desafiou a escrever o livro.
Mea Culpa, o outro livro que tem também a ruralidade portuguesa como pano de fundo, embora seja uma região nortenha, apresenta uma curiosa galeria de personagens que, de certa forma, se vêem uns nos outros (reflectindo-se), se não na violenta miséria em que vivem, pelo menos na culpa que a sociedade lhes atira para cima. As histórias aldeãs acumulam-se até se cruzarem, tecendo assim o tecido debaixo do qual todos se movem, tentando representar os papéis que a sociedade espera deles (quase nenhum o consegue, é certo). Carla Pais, actualmente a residir em Paris e a trabalhar numa repartição pública, confessa: “[A história é] uma espécie de jogo de espelhos, em que ninguém é o que parece ser, porque todos nós temos esta capacidade de nos dissimularmos no meio de uma sociedade condenatória.” E continua, ainda: “Podemos interpretar este disfarce como uma protecção que o indivíduo encontra para conseguir sobreviver. É como ser uma formiga e tentar a todo o custo fugir da pata do elefante. Há pessoas que escondem a essência e a sensibilidade toda uma vida com medo de se mostrarem.”
Uma das suas personagens é filho de uma prostituta, e esse facto é uma marca que carregará durante a vida aos olhos dos outros. Há ainda, entre outras, uma mulher a quem a mãe, cheia de ódio, confiscou a vida. Segundo disse a autora, foi a partir da ideia de construir estas duas personagens que nasceu toda a história. “Na altura pensei: se cruzar este homem que nasce do ventre de uma puta com esta mulher que nasce do ventre de uma mãe envenenada, o que irá acontecer? E foi um bocadinho a partir desta pergunta que o livro se foi construindo.”
Prémio Agustina Bessa-Luís
A este romance de Carla Pais (na altura ainda inédito) foi atribuído em 2016 o Prémio Agustina Bessa-Luís, que acabou por não ser entregue à autora por esta ter publicado anteriormente uma outra obra de carácter ficcional, algo proibido pelo regulamento. Carla Pais diz que este livro demorou cerca de nove meses a escrever e que o fez para o enviar a concursos de prémios literários, mas que das duas primeiras vezes que enviou o envelope (por razões desconhecidas) este nunca chegou ao destino. E ela desistiu. Mas um dia ficou desempregada, com necessidade de ocupar o tempo, e decidiu tornar a pegar-lhe de novo. “Corrigi-o todo à mão” e, desta vez, o original chegou ao destino.
Para Carla Pais, a vontade de escrever chegou-lhe por volta dos 13 anos, quando a patroa do pai lhe ofereceu um diário, daqueles com chaves, cadeado e folhas perfumadas. "Como estava a entrar na fase da adolescência e nada à minha volta fazia sentido, agarrei-me àquele bocado de mundo que podia guardar fechado. Aquele diário era uma espécie de cova, onde enterrava toda a raiva, angústia e insegurança. Já naquela altura via tudo virado do avesso. Foram quilómetros e quilómetros de linhas, e ainda bem que assim foi.”
Mea Culpa atesta a segurança da escrita da autora, a maneira como conduz as histórias sem nunca as perder da mão, e levando-as até onde quer de maneira a que se possam cruzar com outras no ponto certo. Também as personagens, e apesar de resultarem de relações envenenadas e quase sempre à beira do abismo, mostram a fiabilidade necessária. Carla Pais fala com entusiasmo das suas leituras e sobretudo da descoberta de uma autora romena, Herta Müller. “A escritora que mais me marcou, não só pelas histórias mas essencialmente pela escrita, a beleza com que narra o terror, foi Herta Müller. Quando a li pela primeira vez, durante umas férias de Verão, a primeira coisa que me veio logo à cabeça foi: 'Mas isto é deslumbrante!'”
De outros escritores menciona os nomes de Rui Nunes, Maria Velho da Costa, Almeida Faria e Philip Roth: “[São] escritores que nos embalam de uma forma estranha, [autores que nos] dizem 'Tens de trabalhar muito, penar mesmo, para conseguires escrever alguma coisa que valha a pena', porque temos sempre aquela ideia de que ainda estamos muito longe da qualidade.”
Nascido no Facebook
Para Raquel Gaspar Silva, o livro que publicou nasceu no Facebook. Em 2016, criou a página Travessa de Santa Marta. Conta como aquele que viria a ser seu editor leu os posts dessa página, escreveu-lhe e lançou o desafio: “Achas que há espaço em ti para transformar esta Travessa de Santa Marta num livro, dar mais corpo ao texto, à ficção dessas memórias? Respondi que sim, embora com noção de que não seria fácil, mas cheia de vontade.” Depois foi quase um ano de trabalho até o livro estar terminado.
Os autores de que gosta são Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles e García Márquez. E acrescenta que “pontualmente" descobre um autor novo, que a cativa pela diferença, como há pouco tempo aconteceu com Joanna Ruocco. Diz ainda que entre os autores portugueses lê mais poesia do que prosa, pois encontra aí “mais conexão, mais referências comuns, lugares conhecidos". "Mas são pontos de contacto, e não tanto afinidades.”
Logo nas primeiras páginas do livro de Raquel Gaspar da Silva se percebe a sua apetência por uma escrita mais poética. De facto, paralelamente ao exercício da prosa, ela criou “um escape poético para exercitar a linguagem”, que se chama #domesticliteraturemovement e foi criado também no Facebook. “Quis separar a poesia completamente e comecei a escrever em inglês. Publico no Facebook e defini uma estratégia de divulgação dos poemas fora de todas as fronteiras de Portugal”, diz. “Comecei por fazer parte de um colectivo de Berlim, a Curated by Girls, ligada a conceitos artísticos fora do normativo e do canónico e publiquei em revistas online mais indie: Visceral8, After the Pause (um standalone), Tip of the Knife. Depois transformei alguns poemas em vídeo e enviei-o para festivais. Aprendi muito, vou recebendo feedback, apresentei o vídeo na instalação Casa-Animal e entretanto está entre os escolhidos para finalista de um festival em Massachusetts. O vídeo será também exibido em breve na plataforma Poetry Live Film.”
Bolaño e Sebald
Rodrigo Magalhães, autor do romance Os Corpos, livreiro de profissão, começou a escrever com nove, dez anos, porque queria fazer argumentos para banda desenhada e, como se achava sem talento para o desenho, preferiu começar por escrever umas histórias como tubo de ensaio, na esperança de que algum dia aparecesse um desenhador que se dispusesse a colaborar. “Isso acabou por acontecer, mas por essa altura já não era banda desenhada que me interessava escrever”, diz.
Os Corpos parte de um acontecimento real: em 1948, em Somerton, numa praia australiana, foi encontrado o corpo de um homem não identificado. De aparência cuidada, vestia fato e gravata, e estava calçado. As peças de roupa e os sapatos não tinham quaisquer etiquetas. Havia algumas particularidades: um cigarro atrás da orelha e um pedaço de papel rasgado num bolso com duas palavras escritas. O mistério desse homem de Somerton permanece até hoje. Rodrigo Magalhães conta que demorou cerca de três anos a escrever este livro. “Escrevo devagar e tento que a primeira versão esteja o mais perto possível da forma final, para que o penoso trabalho de revisão seja um pouco mais leve. Encontrei a história por acaso e quanto mais li, mais me interessou este mistério. Acontece-me com alguma frequência que os temas me apareçam por acaso e que depois me exercite a moldá-los àquilo que realmente me interessa.”
Com grande maturidade narrativa, e uma riqueza vocabular pouco comum (e isso era já bastante visível no seu livro anterior, Cinerama Peruana), o autor continua em Os Corpos a construir um universo literário que nos surpreende pela sua singularidade na recente literatura portuguesa. A imaginação de Rodrigo Magalhães parece assentar, de alguma forma (e isso também acontecia em Cinerama Peruana), na estética da pequena biografia, com raízes em Marcel Schwob (Vidas Imaginárias), Jorge Luis Borges (História Universal da Infâmia) e sobretudo no Roberto Bolaño de A Literatura Nazi nas Américas (Quetzal, 2010).
As suas histórias (quase sempre a encaixarem umas nas outras como mosaicos) vão tomando forma como se fossem uma maneira de resistir ao esquecimento daquelas personagens, que têm como denominador comum responderem, de uma forma ou de outra, ao canto de sedução do mal. Há nelas uma espécie de fascínio pelo bárbaro, ou talvez mais pelo obscuro. É nisto faz lembrar os livros do chileno Roberto Bolaño e Rodrigo Magalhães concorda: “Creio que tenho uma dívida visível para com o Roberto Bolaño, embora não seja sequer um dos meus escritores favoritos. Mas há na obra dele uma vontade de experimentar que me interessa muito.” Sobre outras influências acrescenta: “Parece-me que tudo me influencia. Sejam livros, filmes, música, seja o que for. Tudo é uma influência em potência, à espera de se manifestar. Livros escolho três: Os Anéis de Saturno (W.G. Sebald), Almas Mortas (Nikolai Gogol) e Bouvard e Pécuchet (Gustave Flaubert). Se tivesse de escolher um escritor favorito, diria o Sebald, embora não me pareça que essa preferência se manifeste no produto final. Há demasiado a separar-nos.”
Este romance, tanto como o caso por resolver de onde parte, é também ele um livro misterioso, e ao mesmo tempo inquietante, sem que o leitor perceba bem a razão. É uma obra difícil de categorizar. “Parte de um enigma, mas não é um policial. Parece uma peça de conjunto, mas também não o é. Interessou-me pulverizar a acção, levá-la a passar por diversas personagens, para que se obtivesse no final uma ideia do modo como um único evento pode afectar em maior ou menor medida um grupo alargado, que neste caso é uma cidade”, diz Magalhães. E continua: “Quis que a localização fosse tão vaga que se tornasse potencialmente universal. Daí também a escolha dos nomes das personagens, que são todos nomes que se escrevem do mesmo modo em diversas línguas e países. Levei a cabo algumas experiências formais, relacionadas com a dimensão dos capítulos ou dos segmentos que o compõem, umas mais bem sucedidas do que outras. Mas a forma final, já se sabe, é só uma aproximação ao ideal.”