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Ela pousa sobre as noites de outra mulher. Não está certa de ser ela mesma nas imagens desarrumadas da memória, ou outra mãe, outra filha, ou a sua
A poltrona não foi comprada para estar ali. Foi para o inverso. Para segurar nos braços os cotovelos de uma mãe cansada e por vezes a nuca pequenina de um anjo sem asas. Mas os dias trouxeram horas e mais dias depois dos dias e todos sabiam que ela estava também indicada para outros corpos, os que se sentam ainda pesados e sobre ela emagrecem até saírem, ou serem levados.
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A poltrona não foi comprada para estar ali. Foi para o inverso. Para segurar nos braços os cotovelos de uma mãe cansada e por vezes a nuca pequenina de um anjo sem asas. Mas os dias trouxeram horas e mais dias depois dos dias e todos sabiam que ela estava também indicada para outros corpos, os que se sentam ainda pesados e sobre ela emagrecem até saírem, ou serem levados.
Ela pousa sobre as noites de outra mulher. Não está certa de ser ela mesma nas imagens desarrumadas da memória, ou outra mãe, outra filha, ou a sua. Encaixam ambas como versões diferentes de uma mesma imagem, fantasmas uma da outra, réplicas do mesmo sismo.
A manhã trouxe todos os ingredientes para a fotossíntese possível, um braço sobre cada um dos braços da poltrona e o rosto em flor, desarmado, aberto à luz tão dorida de uma quarta-feira repleta de erros, ruídos, acidentes metabólicos e palavras riscadas com canetas muito carregadas como se cortassem a pele de um inimigo. Os olhos dela atravessam o chão, caem simétricos imitando um telhado de duas águas desenhado pela mão de uma criança. Um telhado sem casa onde pousar. Segurando o vértice no centro da testa ela deixa cair as linhas da tristeza para ambos os lados do rosto, os braços para ambos os lados do corpo a ancorar a passagem do tempo. As paredes brancas lembram-lhe a neve do Natal anterior. O frio a fazer-se suceder de outro frio, o inverno seguido de um outro inverno e mais outro até este, dentro do seu quarto, provando que afinal o inferno é a ausência de calor.
Movendo-se lentamente ela estende o braço direito feito remo, inclina todo o corpo para olhar bem fundo para onde se abre aquele bocado de chão. Agita os dedos perto do chão como se fossem isco para pescar mais dias, para apanhar memórias de primaveras mornas e ouvir rir muito atrás dos olhos fechados. O riso morde-lhe a ponta dos dedos e a saudade, essa, trepa-lha o corpo como uma segunda pele crescendo sobre a sua, justa, apertada, garrote à possibilidade do sorriso. A saudade abafa-lhe o peito e ela lembra que ser forte, quando os pés não estão seguros do chão que pisam, passa por contrariar a gravidade das coisas. Aprendeu à força que é obrigatório fazer força para cima, cair sempre de modo invertido subindo para hastear a bandeira até ao alto e não morrer já. Com o corpo tombado para o epicentro da terra ela esbraceja na procura de um pano branco para erguer no ar, de um chama para aquecer o quarto, de uma faca para esquartejar a saudade que lhe diminui o corpo e o tempo. Não sabe o que procura e sobre o chão caem todas as gotas que desabam da enorme sucessão de invernos ininterruptos. Ela sufoca. Respira o pânico. Inspira com a força de um quase afogado e procura com os olhos e as mãos, por todo o lado, apressadamente, por todo lado, saltando os olhos por cada imagem que lhe chega do quarto, da vida, da outra vida, tudo misturado. O medo camuflado de tudo. Com a mão trémula ela sente o objeto e apanha-o. Pesca-o. O rosto abre-se brilhante para o bebé que segura no colo, aperta-o, encosta-o no seu pescoço, pousa-o sobre a escala 8 de Richter no seu peito e deseja cantar-lhe. Ele não chora. Ela quer cantar para o acalmar. Ele está quieto. Ela embala-o para que sossegue e não tenha medo. Ele não pisca os olhos. Ela envolve-o na manta que tem sobre as pernas e encaixa-o no seu colo. Ele não respira. Tomada por uma súbita felicidade ela sorri para as pessoas que não estão dentro do quarto. Demora-se a sorrir para cada uma delas. Pousa os cotovelos nos braços da poltrona e deita o corpo frio e pequenino do nenuco no seu braço. Leva o bebé ao peito. O corpo acalma. Mãe e filha sossegam cansadas, reclinadas, leves, feitas de plástico por fora revestindo o enorme vazio feito de ar dentro. Não se lembra há quantos dias conta perdas. Sabe que contou mais de duzentas quedas do sol na paisagem desde a mais negra vertigem interior. Duzentas e quarenta e nove e hoje é quarta-feira outra vez, o dia que começou onde acabou o outro. Na tv um documentário em inglês fala sobre os animais que quando adoecem vão para longe para morrerem sós. Vê a imagem de um cão encolhido a encher o ecrã. Aconchega o bebé no colo para que a encha a ela. Acaricia-lhe a cabeça com as mesmas palmadinhas que daria àquele cão triste. Beija-lhe a testa. Beija a distância entre ser mãe, ser avó, e ser mamífero enrolado na sombra agarrado a um boneco. À espera.