É possível uma Catalunha independente na União Europeia?
Face ao actual quadro jurídico-político não é possível uma Catalunha independente na União Europeia, se esta resultar de um acto unilateral de independência.
1. Como avaliar o actual projecto de independência da Catalunha no plano da legalidade internacional? A autodeterminação dos povos está prevista na Carta das Nações Unidas — o artigo 1.º, n.º 2 inclui-a nos seus objectivos. Pode ser legitimamente invocada para justificar a independência? Na exposição de motivos da lei do referendo do parlamento da Catalunha, previsto para 1 de Outubro, há uma referência explícita ao direito de autodeterminação dos povos consagrado no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966 — Resolução 2200-A (XXI) da Assembleia Geral das Nações Unidas. Antes de mais, importa notar que nos textos jurídicos não é nada invulgar a existência de interpretações díspares, o que deve ser visto com naturalidade. No caso do direito da autodeterminação dos povos tem sido largamente interpretado como tendo em vista os povos submetidos ao colonialismo, ou a situações de inquestionável opressão. No caso da Catalunha, estamos a falar de um caso com contornos diferentes. Ocorre num Estado democrático, membro da União Europeia, ao qual atribui poderes de autogoverno às comunidades autónomas, e que respeita os requisitos do Estado de direito e dos direitos humanos. Tudo isto está previsto na Constituição espanhola de 1978. Ao mesmo tempo, tem prevalecido o entendimento que as resoluções da Assembleia Geral não podem ser interpretadas de forma a contrariar a integridade territorial e a independência política dos Estados, também previstas na Carta das Nações Unidas. Assim, a invocação do direito à autodeterminação dos povos, feita na lei do referendo da Catalunha, só faz sentido na lógica da tese de uma opressão pela Espanha, mas esta dificilmente será amplamente aceite pelas razões apontadas.
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1. Como avaliar o actual projecto de independência da Catalunha no plano da legalidade internacional? A autodeterminação dos povos está prevista na Carta das Nações Unidas — o artigo 1.º, n.º 2 inclui-a nos seus objectivos. Pode ser legitimamente invocada para justificar a independência? Na exposição de motivos da lei do referendo do parlamento da Catalunha, previsto para 1 de Outubro, há uma referência explícita ao direito de autodeterminação dos povos consagrado no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966 — Resolução 2200-A (XXI) da Assembleia Geral das Nações Unidas. Antes de mais, importa notar que nos textos jurídicos não é nada invulgar a existência de interpretações díspares, o que deve ser visto com naturalidade. No caso do direito da autodeterminação dos povos tem sido largamente interpretado como tendo em vista os povos submetidos ao colonialismo, ou a situações de inquestionável opressão. No caso da Catalunha, estamos a falar de um caso com contornos diferentes. Ocorre num Estado democrático, membro da União Europeia, ao qual atribui poderes de autogoverno às comunidades autónomas, e que respeita os requisitos do Estado de direito e dos direitos humanos. Tudo isto está previsto na Constituição espanhola de 1978. Ao mesmo tempo, tem prevalecido o entendimento que as resoluções da Assembleia Geral não podem ser interpretadas de forma a contrariar a integridade territorial e a independência política dos Estados, também previstas na Carta das Nações Unidas. Assim, a invocação do direito à autodeterminação dos povos, feita na lei do referendo da Catalunha, só faz sentido na lógica da tese de uma opressão pela Espanha, mas esta dificilmente será amplamente aceite pelas razões apontadas.
2. Há um outro problema, ainda mais importante na prática, que é o do reconhecimento internacional de uma República da Catalunha. É, simultaneamente, jurídico e político. O reconhecimento de um novo Estado, como Estado soberano, cabe aos restantes Estados da comunidade internacional. É o acto pelo qual um ou mais Estados reconhecem um determinado território, no qual existe uma sociedade humana politicamente organizada, como independente e capaz de observar as prescrições do Direito Internacional. Constitui a constatação formal — normalmente efectuada através de actos diplomáticos —, de que o novo ente político passou a ter existência internacional, de forma independente. Reúne, assim, condições para manter relações com os restantes membros da comunidade internacional. Na prática, o reconhecimento é uma decisão política de um Estado aceitar, ou não, uma nova entidade estadual. Mesmo sem considerar outras questões, pelo precedente que criaria em termos de secessão de um território, há motivos óbvios para muitos Estados não reconhecerem um hipotética República da Catalunha. Só na União Europeia, a França — que, tal como a Espanha, é uma “nação de nações” —, tem o problema do Roussillon / Occitânia, territórios catalães até meados do século XVII, da Córsega ou até da Bretanha; o Reino Unido da Escócia e Irlanda do Norte; a Roménia da Transilvânia; a Eslováquia da minoria húngara; a Espanha teria o problema adicional do País Basco, etc.
3. A aceitação de um novo Estado como soberano / independente pelos restantes Estados da comunidade internacional, pode tornar-se, facilmente, num processo altamente politizado e de resultado incerto. Se acontecer isso, prejudica o novo Estado na sua existência. Não são casos invulgares. Ocorrem tipicamente quando a independência não foi negociada, nem aceite pelo Estado do qual fazia parte o aspirante ao reconhecimento. Temos vários exemplos de questões desse tipo que envolvem a União Europeia: a República Turca de Chipre do Norte — território ocupado militarmente pela Turquia após a invasão de 1974 —, apenas reconhecida internacionalmente pela própria Turquia; o Kosovo, um antigo território da Sérvia, é reconhecido por 111 Estados (mas não é reconhecido por 82 Estados, entre os quais 5 são da União Europeia — Espanha, Roménia, Eslováquia, Grécia e Chipre). Apesar do apoio político dos EUA e da generalidade da União Europeia, não tem número suficiente de Estados que o reconheçam para aspirar a ser membro da Organização das Nações Unidas (ONU). É verdade que isso não tem o efeito jurídico-político do reconhecimento, o qual cabe aos Estados como já vimos. Todavia, simboliza a aceitação generalizada pela comunidade internacional do novo Estado. Obviamente que é algo importante. No caso do Kosovo, é de acrescentar ainda, que, a manter-se o seu não reconhecimento por todos os Estados-membros da União Europeia, isso impede uma futura adesão à própria União.
4. O que aconteceria então à Catalunha quanto aos tratados internacionais assinados pela Espanha e à pertença a organizações como a já referida ONU, à Organização do Atlântico Norte (NATO), ou à União Europeia, baseadas em tratados multilaterais? Não estamos, aqui, perante um caso como o da Checoslováquia, que, de forma consensualizada, foi dissolvida em 1993. (Na altura também não era membro da União Europeia.) A República Checa e a Eslováquia, que lhe sucederam, acordaram entre si assumir as obrigações internacionais da Checoslováquia, mantendo-se parte de todos os tratados assinados e ratificados por esta. Não é esse o caso da Espanha e da Catalunha. Em qualquer cenário após o referendo de 1 de Outubro, o Estado espanhol continuará a existir. Ao nível do Direito Internacional, não está previsto para um novo Estado — que se torna independente por secessão como é o caso —, a sua continuação automática nos tratados multilaterais, nomeadamente dos constitutivos de organizações internacionais. A Espanha continua como Estado soberano e a ser o membro de pleno direito destes. Claro que este seria um problema jurídico-político importante, ao que tudo indica só ultrapassável por um acordo da Catalunha com a Espanha. Mas nada indica que haja vontade política do Estado espanhol para o fazer.
5. Por último, a questão crucial da União Europeia e da legalidade de uma declaração de independência face ao seu ordenamento jurídico. Aqui entramos num terreno novo, não existindo precedentes comparáveis. Poderíamos pensar na questão da Gronelândia — um território autónomo da Dinamarca que abandonou a jurisdição das Comunidades em meados dos anos 1980, após um referendo realizado em 1982 —, mas não é, em rigor, um caso comparável, pois continua a ser parte do Estado dinamarquês. Todavia, isto não significa ser impossível antecipar, em termos jurídico-políticos, o que seria a solução. A União Europeia é uma união de Estados soberanos. (Claro que tem especificidades que lhe dão um carácter singular face outras organizações internacionais: instituições de tipo supranacional, políticas comuns integradas, direitos do cidadão da União, etc.). Mas, enquanto união de Estados, não se afasta muito do Direito Internacional clássico. Os Estados — as "Altas Partes Contratantes" na linguagem jurídica, como consta logo do art.º 1.º do Tratado da União Europeia — mantêm-se “donos” destes. Relevante é também o disposto no art. 4°, nº 2 do mesmo Tratado da União Europeia: “A União respeita as funções essenciais do Estado, nomeadamente as que se destinam a garantir a integridade territorial.”
6. Em conclusão: face a este quadro jurídico-político não é possível uma Catalunha independente na União Europeia, se esta resultar de um acto unilateral de independência. Não existe, a priori, qualquer solução garantida de permanência na União Europeia, nem na Zona Euro, num cenário de independência unilateral. Isso decorre, desde logo, do próprio ordenamento jurídico da União actualmente em vigor. Claro que politicamente os partidários da independência tentam criar a ideia contrária, para alimentar uma dinâmica de voto favorável. Faz parte do jogo político, mas pode mostrar-se um pesadelo mais à frente para os catalães que acharem que isso é um dado adquirido. (A alternativa seria passar por um novo processo de adesão, mas também aí será necessário consenso de todos os Estados-membros, incluindo da Espanha, para a entrada da Catalunha como novo membro.) A estratégia independentista passa por criar um desgaste político que obrigue a uma negociação. Carles Puigdemont, o Presidente da Generalitat, procura explorar a fraqueza do governo minoritário de Mariano Rajoy, do centro-direita espanhol. Quer provocar um excesso de reacção que favoreça o sentimento independentista, numa Catalunha profundamente dividida entre os pró-independência e os que se opõem a esta. Quanto a Mariano Rajoy, tenta emergir desta crise constitucional como o garante último e inflexível de uma Espanha unificada, reforçando a sua frágil situação política. Ambos jogam o seu futuro político no referendo do próximo dia 1 de Outubro.
Nota: Este artigo é continuação do anterior "A independência da Catalunha: o labirinto jurídico-político" (in Público online, 8/09/2017).