Lusitano tem casa nova, que afinal estava prometida a outro
A Academia Recreativa Leais Amigos, que organiza a marcha de S. Vicente, tem de abandonar a sede que ocupa há 90 anos. A solução parecia estar literalmente ao virar da esquina, mas deu-se entretanto um volte-face que pôs a junta e o clube de costas voltadas.
Quando o 28 deixa a estreiteza das Escolas Gerais e começa a trepar a Calçada de São Vicente a caminho da Graça, os passageiros dificilmente adivinham que ali à esquerda, atrás de um vulgaríssimo portão de ferro, se esconde uma colectividade centenária que marca a identidade do bairro.
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Quando o 28 deixa a estreiteza das Escolas Gerais e começa a trepar a Calçada de São Vicente a caminho da Graça, os passageiros dificilmente adivinham que ali à esquerda, atrás de um vulgaríssimo portão de ferro, se esconde uma colectividade centenária que marca a identidade do bairro.
Atrás do portão há um pátio modesto, de paralelepípedos, e à volta ergue-se uma casa amarela de aspecto imponente. Foi neste pátio que, numa noite de Santo António há 20 anos, os sócios, amigos e vizinhos da Academia Recreativa Leais Amigos se juntaram para festejar o 2º lugar de São Vicente no concurso das marchas populares – classificação que já tinham obtido no ano anterior, 1996. Reuniram-se também aqui um mês depois para chorarem juntos a inesperada morte da ensaiadora da marcha.
Retalhos da memória de uma colectividade com 102 anos, instalada no primeiro andar do número 85 da Calçada de São Vicente há 90 e que vê o futuro a fugir-lhe das mãos. O edifício foi vendido, o novo senhorio quer que a Leais Amigos se vá embora. Os dirigentes pediram à Junta de Freguesia de São Vicente que os ajudasse a encontrar um novo espaço, e até identificaram um ali perto, mas a relação com a autarquia azedou quando esse local foi arrendado a outra colectividade sem casa – o Lusitano Clube, que teve de deixar Alfama pelo mesmo motivo no início deste ano.
“Nada nos move contra o Lusitano”, repete vezes sem conta Bruno Santos, presidente da Leais Amigos. A meio da década de 1990, era Bruno um miúdo que parava por outros sítios do bairro onde nasceu e cresceu, uma amiga arrastou-o para um ensaio da marcha de São Vicente. Gostou tanto que não largou mais aquele clube. É presidente desde 2010 e tem projectos na cabeça, mas nem pensar em sonhar com o futuro sem cuidar do presente.
No início do ano passado, a Leais Amigos foi oficialmente notificada de que o prédio fora vendido e que o projecto dos novos donos “não se coadunava com a manutenção da colectividade”. Bruno Santos assumiu então como prioridade encontrar um novo poiso, mas não é fácil arranjar um espaço com as características do actual. A Leais Amigos tem uma grande sala, forrada a azulejos, a toda a volta ladeada por troféus. Há taças das marchas, sim, mas também de torneios de futebol de salão e de outras actividades que o clube teve e foi abandonando. Hoje, além de organizar a marcha, o clube abre portas essencialmente para que os 150 sócios convivam um bocado, joguem às cartas ou vejam os jogos de futebol na televisão colocada em cima do pequeno palco, usado para grandes noitadas de fado.
“Os Leais Amigos precisam de sair dali para conquistar uma nova dinâmica e atrair novos públicos”, reconhece Bruno Santos. Foi isto que disse à presidente da Junta de Freguesia de São Vicente (PS) numa reunião em Junho de 2016. Poucos dias antes, ao passar nas Escolas Gerais, Bruno apercebeu-se que o prédio do número 29 estava vazio e que era propriedade municipal. “O espaço não é tão grande, mas dava perfeitamente”, relata, contando que foi pedir à presidente da junta que falasse com alguém da câmara para que aquela se tornasse a nova casa da academia recreativa. “Ela disse-me: ‘Eu não sei como é que isso se faz, mas vou saber’.”
Natalina Moura, a presidente da junta, lembra-se de ter dito esta frase e garante que se empenhou em cumpri-la com “muito carinho, muito afecto”. “No dia seguinte eu estava a tratar do assunto com o vereador do Desporto”, diz a autarca socialista. “Aquilo que fiz foi dirigir-me ao espaço pretendido pela colectividade. Ficámos a saber que não tinha a mesma dimensão, mas era aproximado”, continua.
Tudo parecia correr bem. “Passou Julho, passou Agosto, passou Setembro. Eu ia perguntando como estava o processo. Respondiam-me: ‘Está a andar’. Isto não foi uma nem duas vezes, foram quatro, cinco, seis vezes”, afirma Bruno Santos. “O vereador, na minha presença, mandou logo cativar o espaço quando soube da situação”, afiança Natalina Moura.
No início deste ano, Bruno Santos foi entregar documentação à câmara para formalizar o processo. No fim de Março marcaram-lhe uma reunião com técnicos da Direcção Municipal do Património. Dois dias antes de ir ao encontro, a marcha de São Vicente foi oficialmente apresentada às entidades da freguesia. Natalina Moura esteve presente e mostrou-se feliz com o desfecho que se anunciava. “Eu fiquei convencido de que as coisas estavam resolvidas”, diz o presidente da colectividade. Mas não estavam.
“Há aqui um problema: esse espaço já está reservado”, disseram-lhe na direcção municipal. “Saio da reunião completamente doido”, relata Bruno, que foi logo ter com Natalina Moura para pedir explicações. “Fui apanhada completamente de surpresa”, diz a autarca, garantindo que só soube que o Lusitano ia para ali pela boca de Bruno Santos. "Palavra dada é palavra honrada. Perguntei ao vereador e disseram-me que tinha havido uma recomendação da assembleia municipal para encontrar um novo espaço para o Lusitano", acrescenta.
Desde então andam de candeias às avessas. “Há muita incompetência e mentiras da junta neste processo”, afirma Bruno Santos. “Acusou-me de não ter feito nada e disse-me que esperava ver o problema resolvido com o próximo executivo. E andávamos nós numa zona próxima dali a tentar arranjar uma possibilidade”, retribui Natalina Moura.
Enquanto se mantém este diferendo, a Leais Amigos continua sem solução. “Estamos com a corda esticadíssima. Precisamos de uma alguma coisa urgentemente”, diz Bruno Santos, que garante ter ideias para fazer o clube ganhar a tal nova dinâmica. “Gostava de ter uma escola de dança. Eu sei que funcionaria muito bem.”
“É uma associação que nós muito respeitamos. A junta preocupou-se, a junta inquietou-se”, diz Natalina Moura. E afirma que até já tem uma proposta para a nova sede do clube, mas não quer revelá-la antes das eleições. “Eu não me atrevo a fazê-lo”, comenta. “Estamos em plena campanha eleitoral.”
O PÚBLICO tentou deslindar este caso junto da câmara municipal, mas não conseguiu obter esclarecimentos até ao momento.