O sistema imunitário também tem uma “adrenalina”

Equipa portuguesa desvenda que a defesa contra certas infecções nos ratinhos resulta de um diálogo entre neurónios e células imunitárias.

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Os linfócitos inatos (a verde) rodeiam o intestino (a vermelho) Henrique Veiga-Fernandes

Há uma conversa a decorrer entre neurónios e células imunitárias nos ratinhos. E descobriu-se agora que é deste diálogo que surgem certas respostas imunitárias: os neurónios produzem uma substância, que funciona como adrenalina, para que as células imunitárias consigam lutar contra infecções e reparar tecidos danificados. Coordenado pelo português Henrique Veiga Fernandes, do Instituto de Medicina Molecular e da Fundação Champalimaud, ambos em Lisboa, este estudo foi publicado online na revista Nature.

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Há uma conversa a decorrer entre neurónios e células imunitárias nos ratinhos. E descobriu-se agora que é deste diálogo que surgem certas respostas imunitárias: os neurónios produzem uma substância, que funciona como adrenalina, para que as células imunitárias consigam lutar contra infecções e reparar tecidos danificados. Coordenado pelo português Henrique Veiga Fernandes, do Instituto de Medicina Molecular e da Fundação Champalimaud, ambos em Lisboa, este estudo foi publicado online na revista Nature.

Comecemos então por conhecer os intervenientes desta conversa. Os primeiros são os neurónios (ou células nervosas). Encontram-se sobretudo no cérebro e arredores e os seus axónios estendem-se para os tecidos do corpo através da espinal medula. As células gliais também auxiliam o sistema nervoso central e têm a função de suporte ao seu funcionamento. Mas existem por todo o organismo células nervosas mais periféricas. Podemos, por exemplo, encontrar neurónios em grande número nos intestinos. Aqui, são importantes para desencadearem respostas imunitárias.

Os segundos intervenientes são as células imunitárias, nomeadamente as células linfóides inatas (ILC, na sigla em inglês). Estas células foram descobertas em 2010 e já são velhas na história evolutiva, pois existem em animais que pertencem a uma linhagem muito antiga, como as lampreias. 

A conversa entre os dois foi assim um alerta. “Observámos, em microfotografias de alta resolução dos pulmões e do intestino dos ratinhos, que as células ILC2 estavam colocadas ao longo dos axónios dos neurónios residentes nestes tecidos mucosos, um pouco à maneira de um colar de pérolas”, explica Henrique Veiga Fernandes, num comunicado da Fundação Champalimaud. As células ILC2 produzem substâncias essenciais, em particular, a respostas imunitárias contra parasitas, como as lombrigas, e estão nas mucosas dos intestinos, dos pulmões ou da pele, onde funcionam como barreiras físicas do corpo.

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Os linfócitos inatos (a verde) rodeiam o intestino (a vermelho) Henrique Veiga-Fernandes

Os cientistas queriam então encontrar genes que comandassem o fabrico de moléculas que recebessem os sinais dos neurónios. Para isso, analisaram a totalidade do genoma de várias células imunitárias, como a ILC1, a ILC2, a ILC3 e os linfócitos T. E perceberam que apenas as ILC2 tinham as moléculas que funcionavam como antenas específicas para captar sinais nervosos – os receptores, explica-se no comunicado. Em específico, as ILC2 tinham receptores da neuromedina U (NMU) e só os neurónios produzem estes mensageiros químicos. “A NMU age como uma bomba de adrenalina para as células ILC2”, refere o investigador, cuja equipa inclui também cientistas da Escola Federal Politécnica de Lausanne, na Suíça.

Para testar este diálogo, entraram em cena ratinhos. Como tal, foram infectados com o parasita Nippostrongylus brasiliensis (uma espécie de ténia ou solitária) tanto ratinhos “normais” como ratinhos mutantes (cujas células ILC2 não tinham o receptor da NMU). Nos ratinhos “normais”, que serviram de grupo de controlo, as ILC2 desencadearam uma resposta de neutralização do parasita e de reparação dos tecidos danificados pelo parasita. Já os ratinhos mutantes não conseguiram lutar contra o parasita e até tiveram uma hemorragia pulmonar. 

“A equipa mostrou que estas células imunitárias não seriam capazes de exercer os seus efeitos protectores contra as infecções sem estabelecer um ‘diálogo’ com os neurónios residentes nestes locais”, lê-se ainda no comunicado. Além disso, percebeu-se que os neurónios definem a função destas células. “Ninguém imaginava que o sistema nervoso pudesse coordenar, comandar e controlar, por todo o organismo, a resposta imunitária”, realça Henrique Veiga Fernandes. E ainda se viu que esta é das respostas imunitárias “mais rápidas e potentes jamais vistas”, refere o investigador, acrescentando que esta resposta imunitária dura poucos minutos a tornar-se efectiva, enquanto a resposta imunitária de uma vacina leva semanas a fazê-lo.

E nas pessoas os resultados serão os mesmos? “No ser humano, as células ILC2 também possuem receptores da neuromedina U”, aponta o cientista no comunicado. “Mas ainda estamos longe de perceber como podemos usar esta ‘bomba’ neuro-imunitária em segurança; por enquanto estamos ao nível da investigação básica.”