O mundo, mantimento luminoso?
Nunca um livro de Tolentino Mendonça terá sido tão intersticialmente político sem defraudar a causa poética.
No livro de poesia anterior, A Papoila e o Monge (2013), formalmente bem distinto — era um livro de haikus —, José Tolentino Mendonça já anunciava, ou encobria, muitos dos temas que aqui deflagram. O encontro imprevisível do diverso.
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No livro de poesia anterior, A Papoila e o Monge (2013), formalmente bem distinto — era um livro de haikus —, José Tolentino Mendonça já anunciava, ou encobria, muitos dos temas que aqui deflagram. O encontro imprevisível do diverso.
Talvez se trate da mesma viagem sem os constrangimentos que o haiku impunha e aos quais, todavia, Tolentino Mendonça se adaptou, tornando simples e evidente o que resulta de um trabalho poético árduo que intensifica, congrega e depura simultaneamente. Elogio e prática da atenção, ser e estar atento é o que se requer para com o mundo à volta — como produção poética, como programa. Teoria da Fronteira desenvolve-se em três partes, itens contíguos de uma mesma peregrinação, pessoal, espiritual e política: A Fronteira, Sans-papiers e Direito de Fuga. Nunca um livro do autor terá sido tão intersticialmente político sem defraudar a causa poética, pelo contrário.
No princípio, uma epígrafe de Gloria Anzaldúa, estudiosa de identidades mestiças, da articulação de sujeito e diferença, de exclusão e inclusão: “penso na fronteira como o único ponto da terra que contém todos os outros lugares dentro de si”. Lugar de encontro e choque de partículas distintas, cenário antitético, movediço, se figura de linguagem existisse para Teoria de Fronteira ela seria certamente o oxímoro.
Travessia, passagem, caminho, peregrinação, parecem ser o mote desta obra. O campo semântico que este movimento agarra, o seu mantimento, são as fracções exaladas num momento involuntário da história ou da natureza. E que se conectam com o olhar do sujeito que enuncia, como peças de construção metafórica: as folhagens, o ramo do tamarindo, os tordos, traços que se individuam. Percorrem-se também cidades, reais ou míticas, em ruínas, talvez perdidas, mas não na memória, “pedaços rasgados de paisagens” que ainda cintilam e “nos vigiam com compaixão”. E é de “irrisórias explosões”, da sua intersecção, que se faz a poesia.
Neste conjunto de poemas parecem coexistir o caminho espiritual de todos e o de cada um, que se sobrepõem. Por vezes, parece que se indistinguem, desde o seu mergulho na sombra, na escuridão, no poço, desamparadamente — é a experiência do vazio e da travessia de migrantes, corpos em fuga que partem sem chegar. Como também numa experiência mística, a vida depura, rarefaz, “temos apenas para dar/ o que não temos”. O extremo amor? — “a vida pobre decalca a linguagem/ levada pela poeira/ como se fosse uma exigência do seu ofício/ o desapego dos que depositam a oferenda”. Será talvez no fim sem fim, no fundo sem fundo (a descida é infinita), que visionarás, queda após queda, derrota sobre derrota, “o prado onde floresce/ o jacinto azul”.
Um poema emblema: Partir sem chegar. “Precisarás de tempo para alcançar a margem/ o ramo do tamarindo onde te espera/ o assobio do barqueiro/ não é o primeiro/ deverás tactear a escuridão da folhagem/ e enganares-te tantas vezes/ que te convenças que não sabes// estreita é a corrente invisível que nos conduz/ por corredores, registos, águas em que/ àquele momento talvez involuntário/ onde palavra dita e palavra calada/ se tocam”.
Provavelmente em nenhum livro anterior do poeta, o social, a dor humana em comum, sem nome próprio que a distinga, tenha sido tão presente, tão consciente de si, tão responsável por todos que transforme cada um, por amor, em qualquer um.
As epígrafes de cada parte retratam o que está em jogo. Na segunda parte, por exemplo: “Se te pedirem os papéis, basta-te abrir a palma da mão (...) os dedos gretados servem aos imigrantes ilegais de bilhete de identidade” (Rachid Nini, Diário de um Ilegal). Este capítulo é sobre o corpo, os corpos, o corpo deslocado, “correntes em fuga”.
Sem exterior, o corpo é uma queda no escuro. “O corpo é a caixa negra que nunca se encontra” (Lampedusa). Sobrevive-lhe quando muito o nome. Mas o que está em ruínas abriga memória e a memória pode tornar sensível uma fresta, e daí reacender no vazio qualquer coisa, uma promessa de luz. Um poema: “o corpo sabe ler o que não foi escrito/o seu enclave forma-se no duplo do visível/ a visão nascente e o caminho às cegas (...) o corpo sabe ouvir o que não foi dito/ e conhece assim por outras fontes/ o vazio aceso que sugere um princípio/ a fenda tornada umbral”.