Sr. Perle, graças a Deus a ONU está viva
Nos próximos 15 dias, António Guterres vai ter de mostrar ao mundo que já pôs em marcha reformas para tornar a ONU mais eficaz.
Em Março de 2003, Richard Perle, subsecretário da Defesa para Assuntos Estratégicos Globais de George W. Bush, publicou no Guardian um artigo de opinião com um título que era ao mesmo tempo uma provocação e um desejo: “Thank God for the death of the UN”.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Em Março de 2003, Richard Perle, subsecretário da Defesa para Assuntos Estratégicos Globais de George W. Bush, publicou no Guardian um artigo de opinião com um título que era ao mesmo tempo uma provocação e um desejo: “Thank God for the death of the UN”.
Na entrada anunciava ao que vinha sem rodeios: “O seu fracasso abjecto só nos trouxe anarquia. O mundo precisa de ordem.” Saddam Hussein iria “desaparecer rapidamente” e, com ele, também a ONU. Não toda, esclareceu Perle, mas “a fantasia de a ONU ser a fundação de uma nova ordem mundial”.
Perle ficou conhecido como o “Príncipe das Trevas” e nos anos a seguir ao ataque terrorista às Torres Gémeas foi profusamente citado por fãs e detractores. Por exemplo: a ideia de que o uso da força sem a autorização do conselho de segurança da ONU destruiria a lei internacional era “perigosamente errada” e levaria “inexoravelmente a entregar decisões morais e até político-militares a países como a Síria, os Camarões, Angola, Rússia, China e França”. Ou a de que os EUA teriam de “usar a força contra Estados que acolhem terroristas, como fizemos ao destruir o regime Taliban no Afeganistão”, quando são conhecidos os resultados das invasões do Iraque e do Afeganistão, país onde, já agora, os Taliban estão longe de terem desaparecido (16 anos depois, controlam um terço do país e mais território e população do que em 2001, antes de a guerra começar).
Quando anunciou a morte da ONU, Richard Perle era presidente do comité de política de defesa que aconselhava o Pentágono. Hoje está desaparecido. Deixou um rasto de pensamento belicista e negócios escuros. Começou por ser afastado do comité de Donald Rumsfeld quando se soube que fora consultor de uma empresa de telecomunicações (a Global Crossing) que estava a tentar obter a aprovação da Administração Bush para ser comprada por uma empresa de Hong Kong e que recebera da Global Crossing 125 mil dólares iniciais e a promessa de mais 600 mil se a venda se concretizasse, escreveu na altura o New York Times.
Não encontrei nenhuma notícia que colocasse Donald Trump e Richard Perle no mesmo lugar. Provavelmente, nunca se cruzaram. Viveram em mundos diferentes, um a vender guerras, outro a comprar hotéis. Mas consigo imaginar Trump em 2003 a ler o artigo sobre a morte da ONU e a dizer "great" ou "beautiful" ou "fantastic". Agora que a 72.ª sessão da Assembleia Geral da ONU se prepara para abrir os trabalhos, o Presidente norte-americano decidiu inventar uma "iniciativa" sobre a reforma da ONU que pretende, no mínimo, fazer-nos esquecer que foi ele quem disse que "as Nações Unidas são apenas um clube para as pessoas se encontrarem, conversarem e divertirem-se".
Trump juntou um improvável grupo de países (Canadá, Alemanha, Japão, Jordânia, Níger, Ruanda, Senegal, Eslováquia, Tailândia, Reino Unido e Uruguai), escreveu uma “Declaração Política sobre a Reforma da ONU" e convidou todos os membros da organização a participarem no “evento” com uma condição: irem aos escritórios da missão americana da ONU em Nova Iorque até às cinco da tarde de dia 17 dizerem que concordam com os dez pontos da declaração e assinarem o documento. Os que o fizerem poderão participar na sessão, que "será presidida pelo Presidente Donald Trump e inclui declarações do secretário-geral António Guterres”. No fim, lê-se na nota diplomática enviada esta semana aos 193 Estados-membros, os chefes das delegações estão convidados “para uma fotografia de grupo com todos os signatários”. A quem assinar a declaração, e só depois disso, serão “revelados mais pormenores”.
O tom é insólito e o estilo infantil, como se algum documento político relevante pudesse ser feito desta forma, com uma campanha de adesão que faz pensar em miúdos que tiveram “uma ideia gira” e foram procurar amigos no Facebook. O pior, porém, é o vazio dos dez pontos, que conseguem ser mais genéricos do que os textos redondos consensualizados entre inimigos. Trump quer mais eficiência, transparência, capacidade de "deliver" e “mudanças concretas”. Nos próximos 15 dias, António Guterres vai ter de mostrar ao mundo — e aos EUA, que pagam a maior fatia do orçamento — que é isso que está a fazer. Para que a ONU continue bem viva.