Han Kang: “Temos de enfrentar a possibilidade de outra guerra na Coreia”

A sul-coreana Han Kang parte de um massacre para escrever um romance à volta de uma questão fundamental: o que é o ser humano? Atos Humanos interroga-se sobre a consciência dos homens e da História.

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Han Kang no Porto, onde esteve a promover o livro ADRIANO MIRANDA

“Chame-me Kang; é o meu primeiro nome”, pede a primeira escritora sul-coreana a vencer o Man Booker International, ao falar de um “livro muito pessoal”, a história de um massacre que não presenciou, mas do qual tem o que chama “memória indirecta”. Aconteceu em 1980. “Eu não estava em Gwangju, apesar de ser a minha cidade. Deixei a casa aos nove anos, quatro meses antes do massacre. Tinha uma memória indirecta, mas que estava impressa em mim. Era uma parte da minha vida”, conta Han Kang sobre um episódio da história que se tornou metáfora da brutalidade humana.

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“Chame-me Kang; é o meu primeiro nome”, pede a primeira escritora sul-coreana a vencer o Man Booker International, ao falar de um “livro muito pessoal”, a história de um massacre que não presenciou, mas do qual tem o que chama “memória indirecta”. Aconteceu em 1980. “Eu não estava em Gwangju, apesar de ser a minha cidade. Deixei a casa aos nove anos, quatro meses antes do massacre. Tinha uma memória indirecta, mas que estava impressa em mim. Era uma parte da minha vida”, conta Han Kang sobre um episódio da história que se tornou metáfora da brutalidade humana.

Han Kang ainda não tinha dez anos. Entre 18 e 27 de Maio, o exército atirou sobre civis que protestavam nas ruas da cidade de Gwangju contra a ditadura de Chun Doohwan. Os números oficiais falam em 165 mortos. Muitos outros foram presos, outros ainda torturados.

“Li uma entrevista a uma pessoa que fora torturada. A pessoa descrevia as sequelas da tortura como ‘iguais’ às que sofriam as vítimas de envenenamento radioactivo. As partículas radioactivas permanecem durante décadas nos músculos e nos ossos, provocando uma mutação dos cromossomas. As células tornam-se cancerosas, a vida ataca-se a si própria”, escreve Han Kang no epílogo de Atos Humanos (agora editado em Portugal pela D. Quixote), o romance que escreveu depois de A Vegetariana, original de 2007, publicado em Portugal faz agora um ano.

É um capítulo onde a escritora se inclui a si mesma no livro para declarar que se pode ser profundamente político quando se constrói uma ficção com base no sofrimento interior, singular. “Em Janeiro de 2009, quando um raide ilegal da polícia antimotim sobre ativistas e moradores que protestavam contra o seu despejo forçado do centro de Seul causou seis mortos, lembro-me de estar colada à televisão a ver as torres a arderem a meio da noite, e ficar surpreendida quando da minha boca saltaram as palavras: ‘Mas aquilo é Gwangju.’ Dito de outro modo, ‘Gwangju’ tinha-se tornado outro nome para o que era isolado à força, espancado e brutalizado, para tudo o que era irremediavelmente mutilado. [...] Gwangju renasceu apenas para voltar a ser esmagada, num ciclo sem fim. Foi arrasada e reerguida sobre o sangue dos que caíram.”

Passaram três anos desde que o livro foi publicado na Coreia do Sul. Han Kang viajou entretanto pelo ocidente a promover A Vegetariana, o romance que a tirou do anonimato internacional e falava da determinação de uma mulher em se fechar ao mundo, tornando-se um vegetal. Uma narrativa de dor, violência e sensualidade. Em Atos Humanos, a escritora de 46 anos volta a trabalhar a dor e a violência, partindo do colectivo para depois mergulhar na essência individual enquanto uma espécie de coro permanente parece entoar as tais perguntas fundamentais, os pilares onde se sustenta o segundo romance de Han Kang traduzido para português: “Serão os seres humanos fundamentalmente cruéis? Será a experiência da crueldade a única coisa que partilhamos enquanto espécie? Não passará a dignidade a que nos agarramos de uma ilusão para disfarçarmos, perante nós mesmos, esta simples verdade: que cada um de nós pode ser reduzido a um inseto, um animal voraz, um pedaço de carne? Que ser aviltado, magoado, esquartejado... é o destino essencial da humanidade, um destino cuja inevitabilidade a História confirmou?”

Quando, aos nove anos, Han Kang deixou Gwangju com a família rumo à capital, Seul, não podia saber que o trauma não se apaga, ou como diz um dos narradores do seu romance: “É impossível regressar ao mundo de antes da tortura”. Num dia, muito mais tarde, ao ver televisão, esse passado, a tal memória indirecta, mostrou que estava impresso e fê-la partir para a escrita do romance.

No início, dois rapazes andam de mãos dadas pela rua e um deles é alvejado e morre. O outro foge. “Porque é que ele morre e eu continuo vivo?”, interroga-se o sobrevivente, o que ficou para cuidar dos cadáveres na cerimónia fúnebre colectiva. Dong-ho, o amigo de 15 anos, está entre eles. E se Gwangju é a metáfora do sofrimento, Dong-hu é o motor de toda a incompreensão, o elo numa teia composta de actos circunstanciais, calculados, inconscientes, brutais, salvíficos, humanos.

A dignidade no atroz

O rapaz que fugiu vela e vigia os corpos e neles vê diferentes graus de horror; sente culpa por ter fugido. Acende velas por eles. No primeiro capítulo estão presentes todas as personagens, todos os narradores, e à medida que o tempo passa, cada narrador chama Dong-ho ao seu presente temporal. “Dong-ho foi baseado em gente de verdade, mas isto é uma ficção e nenhuma personagem encaixa a cem por cento numa pessoa de verdade. Misturei verdade e ficção”, conta Han Kang, agora no Porto, onde esteve a promover o livro, voz quase inaudível, inglês controlado como a sua escrita, cada frase calculada: “Tive de fazer pesquisa a partir de questões fundamentais sobre humanidade. E porque queria saber mais, pesquisava mais. E não apenas sobre Gwangju. Fiz pesquisa sobre a Bósnia, Auschwitz, os massacres do chamado Novo Mundo. E quanto mais investigava mais me sentia abalada e mais perdia a minha confiança na espécie humana. Mas tinha de escrever. Foi uma luta. Pensava nas pessoas que naqueles momentos se mantiveram nos seus lugares sabendo que provavelmente seriam mortas, e não me parece que elas se quisessem sacrificar. Apenas ficavam lá por qualquer coisa que se pode chamar consciência ou dignidade. E sempre que me sentia a tremer pensava nelas e no seu sofrimento e isso permitia-me continuar. Tive a ajuda delas. Acho que entrei no lado certo da humanidade através do processo de escrita.”

Foi assim também que encontrou o modo de contar, avançado lentamente. Que direito teria ela de contar a história dos outros? Dos que foram torturados ou perderam filhos, familiares, amigos? Das mulheres que tiveram um tratamento diferente no massacre? Estão lá múltiplas perspectivas. “Há muitos livros sobre este massacre na Coreia, mas não muitos sobre as mulheres sobreviventes. Elas não quiseram testemunhar por ser demasiado doloroso. Era demasiado para elas dar o seu testemunho uma e outra vez. Mas houve as que, muito corajosamente, quiseram testemunhar. Não falei com nenhuma, não quis pedir que testemunhassem outra vez. Elas sofreram, eles sofreram. Mas foi um sofrimento diferente.”

Tudo é breve e pungente. Ela escrevia e fazia um trajecto literário que imitava o pessoal. Ia recuperado um horizonte, ia-se salvando através da responsabilidade que sentia que era também a sua enquanto escritora, enquanto humana. Quando pergunta, por exemplo: O que é da alma sem o corpo num cenário de cadáveres velados por um rapaz? É uma pergunta sem qualquer carga religiosa. “Imagino o estado das almas. Para os coreanos não é um estado comum. E imagino as almas como sombras flutuantes, que sentem as outras sombras mas não podem comunicar entre si”, diz a escritora. E talvez sintam solidão, medo, desamparo. “Desde os meus 20 anos, sempre que imagino almas imagino isso. E porque não há inferno, não há céu, nem salvação, as almas são vulneráveis, e são como nós, mas toda a responsabilidade é para nós, os vivos. Temos de ser responsáveis, porque nada nos pode salvar depois da morte.”

O pessimismo de partida parece dissolver-se. Quando pergunta o que é ser humano, Han Kang não trata apenas da questão da violência. “Há um movimento em direção à dignidade”, sublinha a romancista que também é poeta e contista. “Mais à frente, há pessoas a chamar por Dong-ho, e na última parte, o escritor, que supostamente sou eu, acende as velas. Portanto, o livro move-se da violência humana para a dignidade humana.” Faz uma pausa. Volta ao tema da consciência. “Em cada sinal de atrocidade humana há uma chama, que muitas vezes é frágil, [mas] há pessoas que foram dignas. Em todos os grandes massacres foi assim. Há quem dê sangue e comida, quem tape o rosto de um morto. Não devemos esquecer estas pessoas dignas, talvez elas façam o equilíbrio. E quando sentimos o desespero perante a atrocidade, acho que devemos preservar a consciência e esta lembrança.”

Talvez seja essa chama que permite o lirismo onde se alicerçam as indagações de Han Kang, as que partem do atroz sem a pretensão de encontrar alguma coisa, mas que, tal como ela achou a linguagem, são capazes e dar ao romance uma identidade forte que interroga sobre a consciência do indivíduo, e a consciência histórica. Isto num momento em que se volta a falar de guerra na península da Coreia. “Estamos definitivamente contra a guerra. Não queremos guerra outra vez. Lembro-me de ver uma fotografia mesmo antes da guerra da Coreia [1950-1953]. Olhei muito para ela: era a prova de que se perdeu-se um legado tão importante, tradições tão bonitas. Tanta gente foi morta, quase todos os edifícios destruídos, foi preciso reconstruir tudo. E agora temos mesmo de enfrentar a possibilidade de outra guerra na Coreia.”

Os olhos de Han Kang viram-se para a janela. Ela pertence à geração que celebrou a chegada da democracia à Coreia do Sul, em 1993. E os escritores, como ela, tiveram liberdade de escrita. O que é isso? É o princípio da liberdade para quem quer que seja. “Pudemos investigar livremente. Antes os escritores sentiam-se comprometidos com a luta contra a ditadura. A partir de 93 pudemos fazer escolhas individuais. Pode-se estar comprometido colectivamente ou sermos mais pessoais. Essa é a grande diferença, a possibilidade de escolha.”