É uma coreografia. É um filme musical. É um concerto dos The Knife
Um dos projectos musicais e artísticos mais fascinantes do nosso tempo, os suecos The Knife, acaba de lançar em DVD e no YouTube o filme-concerto da sua última digressão, que tanta polémica e confusão provocaram.
Mais do que um simples projecto musical, os suecos The Knife, ou seja, os irmãos Olof Dreijer e Karin Dreijer Andersson (também conhecida pelo projecto Fever Ray), sempre se assumiram como uma experiência total, onde som, imagem, performance, conceitos e política participam no mesmo vórtice. Algumas das suas acções criativas parecem autênticos manifestos e a noção de autoria e as políticas identitárias sempre estiveram na sua linha de acção. No início ficaram conhecidos por utilizarem máscaras e na última digressão à volta do último e ao que tudo indica derradeiro álbum, Shaking The Habitual (2013), por se diluírem em palco no meio de uma dúzia de bailarinos, cantores e músicos, sem que ninguém na audiência percebesse muito bem o papel de cada um.
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Mais do que um simples projecto musical, os suecos The Knife, ou seja, os irmãos Olof Dreijer e Karin Dreijer Andersson (também conhecida pelo projecto Fever Ray), sempre se assumiram como uma experiência total, onde som, imagem, performance, conceitos e política participam no mesmo vórtice. Algumas das suas acções criativas parecem autênticos manifestos e a noção de autoria e as políticas identitárias sempre estiveram na sua linha de acção. No início ficaram conhecidos por utilizarem máscaras e na última digressão à volta do último e ao que tudo indica derradeiro álbum, Shaking The Habitual (2013), por se diluírem em palco no meio de uma dúzia de bailarinos, cantores e músicos, sem que ninguém na audiência percebesse muito bem o papel de cada um.
O espectáculo acabou por gerar controvérsia, com muita gente a sentir-se confundida, outros defraudados e outros a acharem que nunca tinham assistido a um espectáculo tão libertador. Em Portugal, actuaram no festival Paredes de Coura de 2013, com a imprensa e o público a dividir-se entre quem os achou “indecifráveis”, “desconcertantes” ou mesmo violadores das mais elementares regras de respeito pelo público.
Nada de novo. A forma como a música é exposta em concerto desde sempre tem gerado posições muito desencontradas. Basta recordar o festival Vilar de Mouros de 1982, o evento que inaugurou a era moderna dos festivais em Portugal, quando ao lado dos U2, Echo & The Bunnymen, Sun Ra, GNR ou Stranglers, se apresentaram os ingleses The Gist (continuação dessa grande aventura chamada Young Marble Giants).
Às tantas o grupo inglês estava a tocar a canção Love at the first sight, quando o público começou a apupar e a enviar objectos para o palco. Não se conformavam com a, digamos assim, heresia dos Gist se apresentarem com uma caixa-de-ritmos e de estarem a assistir a qualquer coisa que fugia ao cânone daquilo que era suposto ser um espectáculo rock. A crítica, por sua vez, falou de uma actuação “confusa” e “artificial”. Foi há muitos anos. Mas se é inegável que muitas transformações aconteceram desde então, não é menos verdade que o padrão – pelo menos quando se pensa em concertos para o grande público – continua a ser o mesmo.
Com a revolução tecnológica dos últimos anos assistimos a mudanças na forma como a música é criada, difundida ou consumida, mas no campo nos concertos não existem grandes alterações. Por reacção à excessiva digitalização da realidade existe até um regresso à experiência do ao vivo, mas num sentido ainda clássico. Ainda está por operar a diversificação na forma como é apresentada música em palco. Claro que sempre se fizeram inúmeras experiências nesse sentido – basta ver a teatralidade de Stop Making Sense, o filme-concerto de 1984 dos Talking Heads com Jonathan Demme, actualmente nas salas de cinema – mas com efeitos restritos.
No caso dos The Knife, se a sua música nunca foi a mais enquadrável, com um som esquelético e inquietante, numa espécie de realidade mutante pós-pop e pós-tecno, exposta ao longo de quatro álbuns (com destaque para Silent Shout de 2006) e na ópera Tomorrow, In A Year (2010), o mesmo acontece com aquilo que têm para propor ao vivo. Nunca foram muito de espectáculos, mas quando o fizeram deixaram marca. Vimo-los em 2006 no Sónar de Barcelona, numa digressão que ficou registada no magnífico DVD Silent Shout – An Audio Visual Experience (2007) com os dois por detrás de uma tela transparente, com Olof na electrónica, enquanto Karin cantava, envoltos por sombras, clarões, algoritmos e gráficos, numa performance tão misteriosa quanto fascinante.
Depois do lançamento de Shaking Habitual percebia-se que se voltassem a fazer espectáculos não iriam ser convencionais. E assim aconteceu, como o presente documento – disponível em DVD, CD e gratuitamente no YouTube, depois de divergências com uma editora que atrasaram o lançamento – registado em Nova Iorque, acaba por mostrar, numa das últimas datas da digressão. Como nos diziam, em entrevista de 2014, o álbum era marcado por interrogações políticas, com as questões de género no centro da sua atenção. Mas, mais do que isso, percebia-se que havia o propósito de descentralizar a ideia de autoria, propondo uma criação colectiva, comunitária, igualitária, na qual pudessem participar músicos, activistas políticos, performers, filósofos, artistas ou designers.
Na sua visão, numa altura em que o mundo atravessa problemas sistémicos, a solução não é o cinismo ou a depressão, é juntar esforços, experimentar novas formas de estar em grupo, dinamizando a partilha de conhecimento através da música, que tem esse efeito de aproximar diferentes pessoas, podendo elas criar o seu lugar de felicidade.
No espectáculo dos The Knife todos vestem da mesma forma, cantando, dançando e manipulando instrumentos concebidos especialmente para a digressão, resultando daí uma performance imersiva, com sons pré-gravados misturados com tocados em tempo real, numa espécie de ritual dançante, onde a identidade se torna fluída e, homens e mulheres, músicos e não músicos, performers e público, participam na mesma coreografia vibrante, que foi sendo recomposta ao longo da digressão.
De alguma forma é como resgatassem a música de dança para um lugar que já foi o seu: o de ser uma experiência conectada com movimentos sociais e políticos e formas alternativas de existir. É uma performance híbrida, nem musical, nem coreografia, nem concerto, mas tudo isso em simultâneo, num manifesto sem hierarquizações, onde a liberalização pessoal se corporiza na expressão colectiva.
Há uns anos, David Byrne dizia que parte do que estava exposto em Stop Making Sense havia sido inspirado depois de ver actuar um coro Gospel numa igreja, misto de teatralidade e transcendência, numa demonstração de que existem diversas formas de fazer acontecer coisas em palco para lá do culto pseudo-naturalista do rock. No fim de contas os The Knife acabam por fazer o mesmo, com o duo a tornar-se numa entidade abstracta, numa comunidade, num convite para que todos possamos imergir nela.