Os fogos e os 90 mil hectares de regadio
A única reforma que interessa é a alteração da prioridade da aplicação dos dinheiros do mundo rural.
António Costa, num discurso recente, terá falado de florestas, da reforma das florestas e de como o futuro iria ser diferente, em matéria de fogos, por causa dessa reforma. Saltemos por cima da mentira de que ninguém ligou ao período de discussão pública da reforma florestal — houve mais de 600 contributos formais a que o Governo fez orelhas moucas — para prestar atenção a uma outra parte do discurso, aparentemente sem relação com os fogos: “Até ao final da legislatura, haverá mais 90 mil hectares de regadio, queremos fazer pequenos Alquevas.”
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António Costa, num discurso recente, terá falado de florestas, da reforma das florestas e de como o futuro iria ser diferente, em matéria de fogos, por causa dessa reforma. Saltemos por cima da mentira de que ninguém ligou ao período de discussão pública da reforma florestal — houve mais de 600 contributos formais a que o Governo fez orelhas moucas — para prestar atenção a uma outra parte do discurso, aparentemente sem relação com os fogos: “Até ao final da legislatura, haverá mais 90 mil hectares de regadio, queremos fazer pequenos Alquevas.”
A obsessão produtivista de Capoulas Santos é conhecida há muitos anos. Desde sempre procurou canalizar os apoios do mundo rural para a “domesticação dos mercados”, apoiando a produção e boicotando o pagamento dos serviços de ecossistema. Embora especialmente acentuada em Capoulas Santos, a obsessão produtivista é transversal a quase todos os partidos, sendo aliás bastante consensual. E é inteiramente legítima. O que me interessa é fazer notar que esta é a opção que está na base do padrão de fogo que temos em Portugal.
Mais que a reforma da floresta, o que conta para a futura gestão da grande maioria do território nacional, os dois terços que não são agrícolas e que ardem, é a opção que o país tem feito na aplicação dos dinheiros para o mundo rural. A pergunta que deve ser claramente formulada aos eleitores é se os contribuintes devem subsidiar actividades produtivas que podem ser competitivas no mercado, ou se, pelo contrário, o dinheiro dos contribuintes deve servir essencialmente para termos mercados eficientes e colmatar falhas de mercado que geram impactos sociais negativos da dimensão dos que este ano ocorreram com os fogos. Por que razão deve ser o Estado, e não os produtores interessados, a pagar a infra-estruturação do regadio, e muitas vezes a diferença entre o preço real da água e o preço político estabelecido, em benefício de alguns produtores e não de outros?
Os recursos são escassos, e os que usarmos a tornar o azeite ligeiramente mais barato (ou o leite, ou a carne, ou o milho, ou pêra rocha) vão fazer falta para pagar aos pastores, aos resineiros, aos gestores de caça, aos produtores de biodiversidade que podem prestar o serviço de gestão do fogo que permita integrar socialmente os fogos, evitando desastres como os deste ano.
Não se trata de eliminar o fogo mas de o gerir de forma social, ambiental e economicamente sustentável, através do pagamento de serviços que são efectivamente prestados por algumas fileiras económicas, e que o mercado, sem intervenção do Estado, não remunera, potenciando o abandono, a falta de gestão e o padrão de fogo a que assistimos. Note-se que a questão não é deste Governo, é muito mais transversal.
Por exemplo, Assunção Cristas (que, para além de dirigente de um dos partidos nacionais, foi ministra com a tutela das florestas durante quatro anos) dizia que “‘temos que perceber que a floresta não é a causa dos fogos, é a vítima dos fogos, é a vítima das ações negligentes, das ações intencionais […] A floresta não produz o fogo por si, sozinha’, insistiu a atual líder do CDS-PP, referindo que ‘não há fogos se não houver ignições e os estudos mostram que a grande maioria dos casos, para não dizer quase todos, têm a ver com causas humanas, negligentes ou intencionais. As causas naturais são uma franja mínima’” e outras ideias semelhantes, sem qualquer referência às razões para a ausência de gestão.
Outro exemplo: “O Movimento ECO – Empresas contra os Fogos apontou a negligência como a ‘grande inimiga’ da floresta, mas acredita que as campanhas de sensibilização têm funcionado e que ‘hoje é sentimento comum’ que ‘Portugal sem fogos depende de todos’. [...] No entanto, alertou, ‘ainda há muito a fazer porque, embora haja já consciência da importância da prevenção, seja notório que há mais cuidados, educação para a proteção da floresta, continuam a proliferar incêndios com comportamentos negligentes na origem’. [...] ‘Não faça fogueira, não atire cigarros para o chão e não lance foguetes’ são os três ‘grandes alertas’ que o Movimento ECO lança todos os anos, desde 2007.”
Mesmo as empresas, habituadas a avaliar o que fazem e a adaptar-se à realidade, sob pena de desaparecerem, nesta matéria dizem-se satisfeitas por manterem os seus três principais alertas sobre três comportamentos que têm importância totalmente marginal nas causas dos incêndios.
Mais espantoso, reconhecendo que na verdade não têm tido efeito nenhum no padrão de fogo, não equacionam a possibilidade de olharem melhor para o problema, o perceberem melhor e se focarem nos verdadeiros donos do problema, os gestores florestais.
Sem reconhecer que estamos perante um problema de economia que gera ausência de gestão, sem reconhecer que essa gestão tem de ser remunerada, sem reconhecer o papel dos gestores do território que produzem bens difusos de interesse comum, continuaremos a assistir a piedosas declarações de amor à floresta, a decididas reformas florestais de quatro em quatro anos, sem perceber que a única reforma que interessa é a alteração da prioridade da aplicação dos dinheiros do mundo rural, desviando-o da distorção dos mercados agrícolas para a remuneração da produção de serviços de ecossistema.
Eu percebo que esta opção incomode a CAP, a CNA e a CONFAGRI, mas é a diferença entre governar para grupos de interesse ou para o bem comum.