Terrorismo: O que faz alguém querer (tanto) lutar e morrer?
Os cientistas foram, literalmente, para a “linha da frente” de combate entre as forças do Daesh e os seus opositores. Numa zona de batalha perto de Mossul, questionaram representantes de vários grupos de combatentes para perceber o que pensam e sentem, mas, sobretudo, o que os move.
Não vale encolher os ombros e ficar pela conclusão mais fácil: “Não entendo estes tipos, não dá para entender, são loucos, fanáticos, fundamentalistas, terroristas.” Temos de os perceber, saber mais sobre o que os move, o que lhes dá força. Talvez isso seja muito útil para os combater. E a ciência também serve para isso. Uma equipa de cientistas apresenta esta terça-feira na revista Nature Human Behaviour o resultado de vários estudos realizados em 2015 e em 2016 em várias frentes: desde o laboratório aos questionários online, passando pela arriscada e corajosa viagem até à linha da frente de combate entre as forças do Daesh e os seus opositores no Iraque. Tudo para saber mais sobre a vontade de lutar e morrer destes homens.
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Não vale encolher os ombros e ficar pela conclusão mais fácil: “Não entendo estes tipos, não dá para entender, são loucos, fanáticos, fundamentalistas, terroristas.” Temos de os perceber, saber mais sobre o que os move, o que lhes dá força. Talvez isso seja muito útil para os combater. E a ciência também serve para isso. Uma equipa de cientistas apresenta esta terça-feira na revista Nature Human Behaviour o resultado de vários estudos realizados em 2015 e em 2016 em várias frentes: desde o laboratório aos questionários online, passando pela arriscada e corajosa viagem até à linha da frente de combate entre as forças do Daesh e os seus opositores no Iraque. Tudo para saber mais sobre a vontade de lutar e morrer destes homens.
Scott Atran é um dos principais autores do artigo publicado por uma equipa internacional de investigadores, académicos e decisores políticos dos EUA, Espanha, Reino Unido, França, com o título: “A vontade de lutar do actor devoto e a dimensão espiritual do conflito humano”. O conceito de actor devoto foi criado por Scott Atran e surge em oposição ao actor racional. É, assim, o resultado de uma combinação de valores sagrados e de fusão identitária, tal como explicou ao PÚBLICO numa entrevista em Janeiro de 2015, poucos dias depois do atentado em Paris contra o semanário Charlie Hebdo.
Os cientistas foram para o perigoso terreno de luta armada perto de Mossul,no Norte do Iraque, mergulhando num mundo de actores devotos. Olhos nos olhos com estes homens, foi preciso – antes de qualquer tentativa de recolha de informação – conquistar a sua confiança. E só depois, avançar, com cuidado, com as perguntas e exercícios. Enquanto isso, liam e absorviam tudo o que se passava à volta.
No artigo, os investigadores reconhecem que “estudar combatentes da linha de frente é um desafio”. Num comentário publicado também na Nature Human Behaviour sobre o trabalho, o especialista John G. Horgan, do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual da Georgia (em Atlanta, nos EUA), corrige os autores: “Dizer que estudar combatentes da linha de frente é um desafio é pouco. O que torna este estudo ainda mais notável é o facto de juntar investigações etnográficas, experimentais e baseadas em entrevistas, e interpretar estes dados num quadro teórico rico e interdisciplinar. Fazer isso em circunstâncias normais seria louvável. Fazer essa investigação com combatentes da linha de frente perto do território controlado pelo Estado islâmico [Daesh] é impressionante.”
Do que viram e ouviram no Iraque e das respostas que conseguiram com questionários online a “não combatentes” realizados em Espanha, os cientistas concluíram que a vontade de lutar dos combatentes neste terreno de luta tem raízes comuns. Estes homens estão dispostos a lutar e morrer por causa de um compromisso com valores sagrados não negociáveis, revelam uma prontidão para renunciar aos mais próximos por esses valores e em nome do grupo a que pertencem e exibem ainda uma percepção da força espiritual do seu grupo que, acreditam, é muito maior do que a do seu inimigo.
O investigador norte-americano Scott Atran não é um novato nestas andanças e já tinha publicado outros artigos sobre o “espírito de combate” dos actores devotos, defendendo que estas pessoas estão dispostas a sacríficos exigentes e acções extremas quando se encontram motivadas para proteger valores sagrados e não negociáveis (que recusam trocar por qualquer compensação financeira ou material). Desta vez, com a colaboração da investigadora Lucia López Rodriguez, da Universidade de Almeria (Espanha), Scott Atran refinou a investigação e identificou outros traços do perfil destes homens.
Neste artigo, o cientista apresenta uma variedade de fontes de informação, desde o estudo etnográfico, entrevistas e testes realizados com elementos de grupos que combatem as forças do Daesh, a informações recolhidas a partir de alguns (os autores não especificam quantos) testemunhos de terroristas do Daesh capturados até 14 estudos com questionários online feitos a mais de 6000 participantes em Espanha. No centro das atenções está a amostra de 56 homens que fazem parte de três grupos de forças que combatem os jihadistas: os peshmerga (combatentes curdos), os curdos que combatem ao lado do exército iraquiano e as milícias árabes sunitas.
O trabalho de campo foi feito no Norte do Iraque em dois períodos distintos: entre Fevereiro e Março de 2015 e nos mesmos meses do ano seguinte. Na primeira visita, os investigadores estiveram com elementos capturados do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, na sigla em inglês).
A formidável força
Além da protecção de valores sagrados (que podem ser religiosos ou seculares, como por exemplo a democracia), os investigadores destacam a importância que estes grupos de combatentes dão à força espiritual do grupo, algo que sobrepõem à força física. Esclarecem ainda que esta dimensão da força espiritual não é apenas fervor religioso mas algo mais abrangente e abstracto do que isso. “É uma força que, referem, vem do coração”, diz Lucia López Rodriguez.
Nos exercícios feitos por combatentes e nos questionários a pessoas que residem em Espanha ficou claro que uma relativa força espiritual de um grupo, comparada com uma relativa força física, está mais relacionada com a capacidade e vontade de sacrifício numa batalha. Ou seja, é a força espiritual que serve de melhor indicador para a vontade de lutar e morrer.
Os participantes na linha da frente associaram à capacidade física questões como o tamanho do exército ou as suas armas e ao lado espiritual a convicção interior, ligada aos valores sagrados. No que se refere à percepção destas duas forças, os autores notam que de uma forma geral as forças terroristas são vistas como tendo uma maior força espiritual e menos força física e aos EUA (ou mesmo a Espanha, segundo os dados dos inquéritos) é atribuído o resultado inverso, ou seja, mais força física e menos espiritual.
Num exercício feito por um combatente curdo, foi pedido que, num tablet, moldasse o tamanho de um homem como se ele se tratasse dos Estados Unidos e do Estado Islâmico de acordo com a sua força física e espiritual. O jogo teve o resultado previsível: O “homem” físico dos EUA era robusto, idêntico ao “homem” espiritual do Daesh. Por outro lado, o homem espiritual dos EUA era médio e o homem físico do Daesh era o mais pequeno deste grupo.
Para quê saber?
Na conferência de imprensa organizada pela revista Nature, Scott Atran lembrou que o “tiro” de partida para esta investigação – tal como, aliás, escreve nas primeiras linhas do artigo científico – foi da responsabilidade de Barack Obama. Clarificamos: em Setembro de 2014 o (então) Presidente dos EUA concluiu que as forças terroristas tinham sido subestimadas e a capacidade de luta do exército iraquiano tinha sido sobrevalorizada. “Tudo se resume a prever a vontade de lutar, que é imponderável”, disse. O mesmo, lembrou, aconteceu na guerra do Vietname.
A equipa de investigadores tentou avaliar esse indicador decisivo. Tentou perceber de onde vem esta vontade de lutar, o que motiva estes homens que se unem e muitas vezes se revoltam contra grupos mais fortes do que eles. No entanto, tal como admite John Horgan no comentário que fez sobre o artigo, muitos de nós podem questionar: para quê? Por que nos devemos sequer importar em percebê-los?
Constata que, além dos comentários políticos e sociais sobre o terrorismo, sabe-se muito pouco sobre estes “soldados”. Por várias razões, argumenta. Porque é difícil ter acesso a estas pessoas (e mesmo apenas a dados sobre elas) ou porque as circunstâncias em que estão envolvidas acabam por condicionar uma investigação balizada por critérios científicos. Depois, acrescenta o especialista norte-americano que assina o comentário, há a hipocrisia. “Os estudos sobre os ‘nossos soldados’ podem explorar noções de ‘espírito de luta’, nobreza, coragem e auto-sacrifício, enquanto os estudos sobre os ‘terroristas deles’ geralmente caem num padrão com explicações individuais, baseadas em traços de personalidade, se não em qualidades explicitamente negativas.” Por essas e outras razões, investigar o terrorismo é tão difícil e só poucos os conseguem fazer de forma séria, conclui. Daí, também, argumenta John Horgan, o mérito do trabalho apresentado agora.
Saber mais é importante, ponto assente. Mas, o que fazer depois com o que sabemos? Pode servir para alguma coisa? Os autores do trabalho acreditam que sim, argumentando, por exemplo, que a identificação dos elementos-chave que motivam estes homens e os fazem lutar e morrer por valores sagrados deve ser uma peça importante na concepção de estratégias de defesa. “Quando percebemos o que faz estas pessoas lutar e morrer, podemos prever o que estão dispostos a sacrificar”, sublinhou Scott Atran, durante a conferência de imprensa.
Até recentemente, nomeadamente em muitos estudos feitos depois da Segunda Guerra Mundial, a vontade de lutar era de uma forma geral “medida” pela reciprocidade com os pares e a vontade de proteger os companheiros. “Até este estudo não houve nenhum outro que, baseado no que se passa na linha da frente, se debruçasse sobre a vontade de lutar por valores”, diz Scott Atran. “No caso do Estado Islâmico, a partir do momento em que alguém se fecha num conjunto de valores sagrados, é quase impossível tirá-los daí. Aí, estão dispostos a lutar até morrer”, adianta.
Porém, para alguns o espírito de sacrifício parece ser imposto. Entre outras conversas na linha da frente, os investigadores ouviram um homem a falar com um walkie-talkie com outro. “Ele estava a dizer que o irmão tinha morrido e que queria sair dali. Ouvimos uma voz a dizer em árabe: ‘Devias estar feliz porque estás prestes a ir para o paraíso.’ E o jovem habitante local disse: ‘Mas eu não quero ir para o paraíso, quero sair daqui.’ O comandante do ISIS respondeu: ‘Bem, mas vais de qualquer maneira.’” Há diferenças entre os combatentes e os líderes do Daesh, admite Scott Atran. Mas a maioria, conclui, está disposta a lutar. Até ao fim.