Os miúdos do 2.º Torrão só vêem o lixo e os Silos da Trafaria

No bairro do 2º Torrão, na Trafaria, há mais de 300 famílias com acesso precário à electricidade e à água. Metade das construções não tem saneamento e há crianças a dormir em quartos sem janela, ao lado de ratos. A Amnistia Portugal está a investigar a eventual violação de direitos humanos.

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Nuno Ferreira Santos

Estávamos a 18 de Dezembro de 2016. Era o primeiro jantar da colónia de férias de Natal da Fábrica dos Sonhos no bairro do 2.º Torrão. Alexandra Leal, antiga gestora financeira e mentora do projecto, encomendou nove pizzas, com a promoção leve 3 pague 1. Vinte crianças e cinco monitores sentaram-se no chão. Alexandra pediu que dessem as mãos. “1, 2, 3: bom apetite!” O que se ouviu de seguida foi um estrondo: “PUM! Nem deu tempo de pegar na fatia”, recorda Alexandra. “Rebentou a luz”. Continuaram a comer com a ajuda da luz dos telemóveis mas as crianças nem conseguiam ver os ingredientes para escolher o que queriam comer.

Todos os Invernos, com a ligação de mais aparelhos eléctricos para aquecimento, há uma sobrecarga da rede que já é instável. O cenário repete-se ano após ano neste bairro que cresceu de forma clandestina ao longo de mais de 40 anos na Trafaria, em Almada, e onde metade das casas não tem saneamento básico e o acesso à água, tal como no caso da electricidade, é precário. “Cheguei a estar 22 dias sem luz”, relata Paulo Faísca, presidente da renovada Associação de Moradores do bairro, que tomou posse em Março. Vive no bairro há 36 anos, já esteve para sair, mas “a vida prega partidas”. Agora, assegura, o 2.º Torrão está a mudar. A Câmara Municipal de Almada (CMA) renovou e reforçou no início de Julho os ramais de água e está a negociar com a EDP a regularização do fornecimento de electricidade ao bairro.

Quando Alexandra Leal chegou à casa onde poderia instalar a Fábrica dos Sonhos não havia água, nem electricidade, nem fechadura na porta. Apenas uma corrente com um cadeado. Limparam o espaço, pintaram-no com tintas recolhidas no lixo. Receberam donativos: um senhor viajou propositadamente de Évora até ao bairro para entregar três armários para a cozinha. Naquele Natal, acabou por levar até ao fim uma colónia de férias “dura” em que os monitores ficaram doentes com o frio que entrava numa casa em que faltavam vidros nas janelas. Restabelecer a electricidade custava 150 euros recorrendo a uma puxada ilegal. “Só tinha 50 euros na conta da Associação”, relata Alexandra.

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No bairro, chamam-lhe “Xana-Banana”. Nos campos de férias, todos têm “nomes mágicos” que ajudam a quebrar o gelo. Uma tradição que começou com as colónias de férias que Alexandra Leal, 33 anos, começou por fazer na Cova do Vapor, no Verão de 2015, depois de um período de esgotamento e exaustão decorrente do stress do trabalho, o chamado burnout. “Sabia que não podia voltar para o emprego, que odiava. Ia voltar a cair”, conta a antiga gestora financeira. Resgatou um sonho antigo: criar uma colónia de férias como aquelas que lhe marcaram a infância. Nos 15 dias de colónia que fazia todos os anos na Verdizela, em Almada, Alexandra fugia da violência doméstica que vivia em casa. “Eram 15 dias sem problemas”, recorda.

Fundou, juntamente com o avô José Gonzalez, de 80 anos, a Associação Cova do Mar, e avançou com os campos de férias gratuitos para crianças desfavorecidas. Quando apresentou o projecto à CMA para pedir apoios, em Novembro de 2016, a autarquia sugeriu que realizasse uma colónia de férias de Natal também no bairro do 2.º Torrão. Se a Cova do Vapor tinha poucos recursos, o 2.º Torrão “ainda tinha menos”, disseram-lhe os técnicos da Câmara.

Alexandra descobriu que o menos do 2.º Torrão era quase nada no que tocava às crianças. Uma realidade que apresentou na Assembleia Municipal de Almada, em Junho deste ano: “Temos mais de 200 crianças a viver em barracas, algumas sem cama, a dormirem no chão, em colchões com baratas, ratazanas, ninhos de carraças e de pulgas em casa”, descreveu, num testemunho que está disponível no canal TV Almada. “Temos crianças que vão à Fábrica do Sonhos com o corpo todo mordido quando acordam de manhã.”

Alexandra tinha já apresentado uma queixa à Amnistia Internacional Portugal (AIP) por violação de direitos humanos no bairro. Em Julho, um mês depois, uma equipa da AIP visitou a Fábrica dos Sonhos, incluindo a presidente Susana Gaspar, Gauri van Gulik, directora adjunta do escritório da Amnistia Internacional, e a investigadora para Portugal Elisa de Pieri. Catarina Prata, Coordenadora de Investigação da AIP e que está a reunir informação sobre o bairro, também participou na visita: “As pessoas às vezes falam das favelas do Rio de Janeiro e têm favelas à porta de Lisboa. Percebe-se o valor imobiliário do sítio do bairro, tanto para questões portuárias, como imobiliárias”, refere Catarina Prata.

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Porto de Lisboa, os “Coutos” e uma solução adiada

Recolhido entre a Cova do Vapor e a Trafaria, “vedado” por uma mata que esconde o seu interior dos milhares de veraneantes que circulam a caminho das praias de São João da Caparica, o bairro do 2.º Torrão começou por ser um sítio de pescadores junto ao rio Tejo. Na década de 70, as primeiras casas clandestinas ocuparam terrenos privados: uma parcela mais pequena, que está sob a jurisdição do Porto de Lisboa, e outra, maior, propriedade da família Couto, dona das empresas Ensul e Meci que detinha a Urbanizadora da Praia do Sol.

“Os Coutos”, como são conhecidos no bairro, tinham planos para erguer uma urbanização de luxo naqueles terrenos, com vista privilegiada para o Tejo e Lisboa, projecto que nunca avançou uma vez que os terrenos fazem parte da Reserva Ecológica Nacional. A família foi deixando os moradores ficarem, mas construiu há mais de dez anos um muro para impedir que o bairro crescesse mais. A Associação de Moradores diz defender o mesmo, para que a “pobreza não cresça mais também” e está a colaborar com a CMA nesse sentido, identificando as casas que vão ficando vazias para demolir.

Os números do último Censos, de 2011, apontam para 1096 habitantes. Na contagem que a Associação de Moradores fez em 2016, estão cerca de 3000. Os moradores pedem apoio nos processos de realojamento. O ano passado foram retiradas do bairro oito famílias. No âmbito do Programa Especial de Realojamento (PER), criado em 1993 para erradicar as barracas na Grande Lisboa e Porto, foram recenseados em Almada 2156 agregados familiares. Em 2005, a CMA tinha em cima da mesa o plano ‘Costa da Trafaria’ com vista a reformular o estatuto daquele território permitindo edificação que “permitisse o realojamento qualificado das populações na zona, não necessariamente naquele espaço”, explica José Gonçalves, vice-presidente da CMA.

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Os cinco planos de pormenor que incluiriam uma solução para o 2.º Torrão foram travados pelo contestado projecto de deslocalização dos terminais de contentores do porto de Lisboa para a Trafaria. “Não houve condições de aprovar esses planos porque havia estratégias diferentes da estratégia municipal”, afirma o vice-presidente, que tem também as pastas da Intervenção Social e Habitação, além de ser presidente dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento (SMAS). “Podemos olhar para trás e compreender que durante algum tempo se acreditou que as soluções definitivas aconteceriam de forma mais rápida. Há uns anos não pensaríamos que em 2017 ainda estaríamos nesta situação”, admite.

“As questões da habitação estão por resolver no nosso país”, justifica José Gonçalves. “Queremos resolver o problema de habitação da população da Trafaria mas o território não permite construção. Temos de tirar as populações da Trafaria, e isso cria outro problema". Almada é um dos municípios que ainda não concluíram o PER. É, além disso, segundo os Censos de 2011, o município do país com maior número de “alojamentos não clássicos”, ou seja, barracas: 297 (logo seguido por Lisboa – 211 – e Loures – 202).

Em Março deste ano, a Assembleia da República recomendou ao Governo que procedesse ao levantamento das necessidades de realojamento e protecção social e que avaliasse a execução do PER. O Instituto de Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) requereu em Julho informação à CMA sobre a concretização do PER no município e diz “continuar a aguardar resposta”. A autarquia está também a responder ao levantamento nacional lançado pelo IHRU, cuja data de conclusão se prolongou de 31 de Julho para 8 de Setembro.

Os miúdos não podem só ver os Silos e o lixo à porta

No bairro, todos sabem onde é a Fábrica dos Sonhos. É a casa casa de fachada azul vibrante que destoa das construções vizinhas. Desde Fevereiro, Alexandra só abre aos Sábados, por falta de financiamento. Sempre que lá está, as crianças batem à porta sem parar. “Xana, podemos entrar?” Ninguém entra sem perguntar. Alexandra acede a todos os pedidos, oferece lanche, dá abraços, beijinhos, colo. Está a angariar verba para poder abrir um espaço de ATL, para responder às necessidades das crianças do bairro ao longo de todo o ano. “22 mil euros, é o custo de abrir a Fábrica dos Sonhos, todos os dias, com uma equipa de monitores fixa, com luz, internet, seguro para as crianças, lanches, desratização, alarme contra roubo, e consumíveis”, lê-se na página do crowdfunding “Anjos da Guarda” que tem neste momento a decorrer. 

Tentou, inicialmente, ter apoio da autarquia de Almada, mas queixa-se de dificuldades em trabalhar no bairro desde que a CMA alegou problemas de “sobreposição” com outros parceiros sociais. A Santa Casa da Misericórdia de Almada (SCMA), que em 2004 ficou com a tutela do Centro Social da Trafaria, tem desde essa altura uma intervenção social no 2.º Torrão. Além de acompanharem famílias no âmbito do Rendimento Social de Inserção, promovem animação comunitária, o emprego e empreendorismo, e apoio às famílias.

Em Novembro de 2016, puseram em acção o projecto Sai e Age, financiado por fundos comunitários em quase 435 mil euros para os territórios do 2.ª Torrão e do bairro vizinho Terras da Costa, na Caparica. O objectivo é trabalhar o território e as comunidades, da intervenção familiar à qualificação laboral, com um foco na comunidade infanto-juvenil. Este Verão, a SCMA promoveu uma colónia de férias de dois meses para 23 crianças do 2.º Torrão.

Se não estivesse na colónia Férias à Vista, Abel Piedade, 11 anos, diz que nunca faria o que ali pode fazer: ir à piscina, a museus, ao Jardim Zoológico. “Se calhar até ficava trancado em casa sem sequer ver a rua”, confessa. “Grande parte das famílias destas crianças são desestruturadas”, explica Lígia Almeida, responsável pela colónia. Já teve crianças a relatar problemas de violência doméstica em casa. A par das carências financeiras, há as afectivas. “Acima de tudo, precisam de um espaço para serem ouvidos”, diz.

Na Fábrica dos Sonhos, faz-se o mesmo. E dá-se poder e responsabilidade aos miúdos do 2º Torrão: Alexandra Leal elege um capitão de equipa que fica encarregue de fazer cumprir as regras das brincadeiras, ou de escolher o lanche que todos vão comer. “Chegamos todos à mesa e quando dizem que o lanche é espectacular o capitão de equipa fica orgulhoso. Para eles, isso é muito importante”.

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O vice-presidente da CMA reconhece que a instalação da Fábrica dos Sonhos no bairro resultou de “diálogo com a autarquia, “mesmo a localização”, mas queixa-se da sobreposição de projectos e ” e apela à “ligação entre as várias instituições”. Argumento que  Alexandra Leal contesta, uma vez que há reuniões mensais da CMA com os parceiros sociais: “A Câmara sabe do projecto ‘Sai e Age’, é apoiado por eles. Ao final do dia eles têm toda a informação”, defende.

A SCMA nega qualquer intenção de condicionar o trabalho da Fábrica dos Sonhos e prefere enfatizar a necessidade de acompanhar as crianças do 2.º Torrão: “As escolas do concelho não têm actividades. Miúdos com potencial risco é importante que estejam ocupados, porque tendem a regredir em termos de sucesso escolar”, explica Maria de Assis Almeida, directora e coordenadora técnica da SCMA.

Joaquim Barbosa, provedor da SCMA, reitera a importância de se olhar para um território que diz ter sido negligenciado durante décadas: “ainda no princípio do século passado, a Trafaria funcionava com um local de quarentena antes de se entrar em Lisboa. Isto sempre foi a parte de trás do quintal de Almada. E aqui a zona do 2º Torrão é provavelmente a pior”, afirma. “Os miúdos não podem só ver os Silos [da Trafaria] e o lixo à porta. Melhorar habitação é essencial.”

“Meio século para resolver um problema?”

Numa volta pelo bairro, Paulo Faísca, presidente da Associação de Moradores, mostra a Maria João Berhan, do Colectivo Habita – que luta pelo direito à habitação - os postes de electricidade que estão “a dormir”, tombados e a sustentar um emaranhado caótico de fios. Maria João está a conhecer melhor o bairro, depois de o Colectivo ter decidido incluir o 2.º Torrão no programa da Caravana pelo Direito à Habitação que vai promover durante este mês. “Queremos dar visibilidade e pôr em contacto bairros diferentes com problemas comuns”, explica Maria João. “O nosso pequeno bairro pode dar força a outros bairros porque a CMA está a colaborar connosco”, diz Paulo Faísca. “Não há perspectivas lá fora, então vamos melhorar cá dentro”, remata Paulo.

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Este Verão, a CMA iniciou um processo de reforço e renovação de abastecimento de água e de regularização no fornecimento de electricidade. Carminda Calado está no bairro há 46 anos e diz ser como São Tomé: “ver para crer”. Nos meses de Inverno, são poucas as vezes que consegue ter aberta a porta do seu Café Netos. “Ou então estamos às escuras a vender bebidas, porque café não há”, conta. “Agora estamos em negociação com a EDP para haver um controlo da luz”, explica Paulo. “É um caminho que a EDP só aceita fazer porque os moradores estão organizados e assumem responsabilidade”, reforça José Gonçalves.

Em relação à água, a autarquia afirma que os problemas de pressão nas condutas estão resolvidos. “Perdíamos noites a puxar mangueiras para encher bidões”, recorda Paulo Faísca. “Esta água tem melhor qualidade, tem mais força. Há três semanas que consigo sentir a água do chuveiro no meu corpo”, garante. Os moradores beneficiam de isenção de taxa municipal, mas têm de custear a ligação aos novos ramais.

Soraia, 29 anos, vive no bairro há 11. Tempo suficiente para sentir a invisibilidade de morar no 2.º Torrão. “Estamos aqui tapados. Ninguém nos vê”, diz. Está contente por ver que há mudanças no bairro, mas em sua casa ainda está tudo na mesma. Banhos – para ela, o marido e os três filhos - só na casa da sogra. Soraia sonha com uma vida fora daqui. Numa das reuniões de trabalho com a CMA e os parceiros sociais, Alexandra Leal questionou a autarquia sobre o realojamento do 2.º Torrão. “A médio prazo”, disseram-lhe. “Eu sou de gestão, médio prazo é quatro ou cinco anos”. É também nesse horizonte temporal que vê a Fábrica dos Sonhos crescer. “Disseram-me, ‘não, não, são três ou quatro mandatos’”, recorda. “São 16 anos. O bairro já tem 40 anos. Vai [ser preciso] meio século, para resolver um problema?”