Dívida do SNS põe fornecedores de equipamento médico em crise

A dívida pública é “crónica”. Mas tem vindo a agravar-se mês após mês. E já ultrapassa os 300 milhões de euros. Há despedimentos. E a qualidade dos equipamentos que chegam aos doentes também sofre, garante associação das empresas de dispositivos médicos.

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O secretário-geral da Associação Portuguesa das Empresas de Dispositivos Médicos diz que "tudo está pior do que no ano passado e não há soluções à vista" Miguel Manso

A situação é de “asfixia”. A dívida do Serviço Nacional de Saúde (SNS) às empresas de dispositivos médicos — que fornecem aos hospitais materiais tão diversos como ligaduras, seringas, próteses ou instrumentos cirúrgicos — ultrapassou os 300 milhões de euros, nas contas da associação que representa a maior parte das firmas que operam no país. Este problema, “crónico”, arrasa o investimento e a inovação, diz.

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A situação é de “asfixia”. A dívida do Serviço Nacional de Saúde (SNS) às empresas de dispositivos médicos — que fornecem aos hospitais materiais tão diversos como ligaduras, seringas, próteses ou instrumentos cirúrgicos — ultrapassou os 300 milhões de euros, nas contas da associação que representa a maior parte das firmas que operam no país. Este problema, “crónico”, arrasa o investimento e a inovação, diz.

Várias empresas já deslocalizaram parte dos seus serviços para o estrangeiro. Em Portugal, fica só a rede de comerciais e “há centenas de despedimentos”, garante o secretário-geral da Associação Portuguesa das Empresas de Dispositivos Médicos (Apormed).

A dívida “não é a única, mas é a maior culpada”, diz João Gonçalves, que aponta o dedo ao “financiamento insuficiente” do SNS: “O subfinanciamento na saúde arrasta um sector para uma situação incomportável. Era impensável há uns anos haver esta saída” de empresas do país e descentralização das chefias de multinacionais.

Os problemas da dívida na saúde têm décadas, mas os dados recentes, fornecidos pela associação ao PÚBLICO, mostram uma escalada dos pagamentos em falta dos hospitais, centros de saúde e outras entidades do SNS. “Há hospitais a demorar mais de dois anos a pagar”, diz João Gonçalves, dando como exemplo os centros hospitalares de Setúbal, Médio-Tejo e Lisboa-Norte.

Em Junho, o SNS devia, só às 58 empresas que a Apormed representa, 301,5 milhões de euros, mais 10% em relação ao mesmo mês do ano passado. A dívida vencida — não paga ao fim de 90 dias — também cresceu 14% nesse período. É de 201 milhões de euros e, em média, está a demorar 355 dias a ser paga.

Aumentar

“Tudo está pior do que no ano passado e não há soluções à vista. As empresas não conseguem ter uma actividade normal. A maioria endivida-se. Outras, para evitarem a insolvência, juntam-se a outras empresas, a maioria espanholas”, explica João Gonçalves. A “iberização” do sector é “fortíssima”. “Mas quando uma empresa se iberiza, vai tudo para o outro lado”, afirma. Na maioria dos casos, “não há a oferta” de levar malas e bagagens para o país vizinho. “As pessoas são despedidas. Em cerca de dois anos, houve várias centenas de despedimentos.”

“Raríssimas” são as empresas de distribuição destes produtos que mantêm hoje altos e médios cargos de gestão no país, prossegue. Muitas mantêm apenas uma rede de comerciais em Portugal. É o caso de 12 das 58 empresas associadas da Apormed — que asseguram 74% do fornecimento de material ao SNS e 44% do mercado nacional. “Quando os altos quadros vêm cá, reúnem-se em restaurantes ou estações de serviço. Quando a situação é mais séria, alugam uma sala de hotel, porque deixaram de ter um espaço físico em Portugal”  — uma situação iniciada com a crise económica e que conheceu um agravamento nos últimos dois anos, denuncia.

Dependência do SNS

O secretário-geral da Apormed destaca: se os hospitais pagassem no período de 90 dias acordado com as empresas, “poderia haver condições vantajosas para ambos, porque algumas empresas teriam margem para fazer descontos”. Desta forma, não “têm sequer margem para inovar”.

Estas empresas têm “uma dependência brutal” do SNS, que gasta cerca de 700 milhões de euros por ano nestes produtos. “Quando o ministro nos diz que a indústria deve fazer esforços na exportação, nós não temos como, porque as multinacionais, que são a grande parte do nosso mercado, não podem exportar para países onde já têm filiais”, diz João Gonçalves.

Ainda assim, a exportação é particularmente relevante nas empresas produtoras. “É assim que sobrevivem desde a crise”, refere João Gonçalves. O sector exporta 268 milhões de euros por ano.

“O preço mais barato”

A crise atingiu — “e não largou” — principalmente as distribuidoras de produtos diferenciados. Nos concursos públicos para compra de equipamento é dado privilégio ao “preço mais barato”, em detrimento da “proposta economicamente mais vantajosa”, que considera a relação qualidade-preço, explica. “Com esta estratégia o Governo não está necessariamente a poupar, porque em vez de um par de luvas por cirurgia, são precisas três.”

Por este motivo, acrescenta João Gonçalves, “os produtos inovadores têm dificuldade em estar neste mercado”, onde o ciclo médio de renovação de um dispositivo médico é de 18 a 24 meses. Situação que afasta investidores e leva outros a abandonar o país. E torna “obsoletos” os equipamentos do SNS.

A deterioração do sector afecta directamente a qualidade dos serviços de saúde, diz ainda João Gonçalves. Dá um exemplo: “Uma lente intra-ocular normal cura a catarata. Mas uma lente intra-ocular mais diferenciada, para além de curar a catarata, trata também a presbiopia [dificuldade em ver ao perto].”

“Pelo contrário, lá fora estão a recuperar. Fomos ultrapassados pela Grécia e somos o pior país da Europa neste sector”, diz o secretário-geral da Apormed, que pertence à associação europeia do sector, a MedTech Europe.

As consignações são outro problema que destaca. O recurso a este procedimento que permite aos hospitais usar os produtos e só mais tarde iniciar o processo de pagamento é cada vez mais frequente — o SNS gastou oito milhões de euros só entre Dezembro e Março em consignações. “Mas a novidade é que antes os hospitais demoravam uma semana, 15 dias, no máximo, a emitir factura. Hoje demoram meses. Há hospitais a demorar um ano a emitir a nota de encomenda e mais dois anos a pagá-la”, denuncia.

O PÚBLICO pediu dados oficiais ao Ministério da Saúde e uma reacção a estas queixas, mas não obteve resposta.