O que fazer com a arte que trazem os corpos dos refugiados?
O maior sucesso da exposição de Kassel é mostrar como os discursos e objectos dos que chegam à Europa não são só testemunhos de uma vida, mas impelem-nas a reconfigurar as nossas ideias de criatividade, de arte e de experiência estética.
Político e política
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Político e política
Desde a sua criação em 1959 que a Documenta — uma das exposições mais relevantes em todo o mundo — procura, a cada cinco anos, mostrar o modo como a arte se tem desenvolvido — em termos materiais, conceptuais e teóricos —, revelando-se, ao mesmo tempo, um importante palco político. Melhor dizendo: trata-se de uma exposição onde a articulação entre arte e política é particularmente relevante.
A história das suas 14 edições é marcada por fortes gestos políticos, desde a criação em 1977 da Universidade Livre Internacional para a Criatividade e Investigação de Joseph Beuys à maneira como, em 1997, a curadora Catherine David desenvolveu uma ideia de exposição como ruína — naquela que foi a última edição do século XX —, antecipando muitas das actuais discussões do colonialismo e do eurocentrismo nas narrativas da história da arte, através da apresentação de importantes núcleos retrospectivos de obras de artistas como Hélio Oiticica e Lygia Pape, salientando a relevância dos modernismos do Sul.
Mas a cada nova edição a Documenta reinventa-se: por exemplo, Catherine David criou o programa 100 dias 100 convidados, onde todos os dias — tradicionalmente cada Documenta dura cem dias — houve discussões com escritores como Edward Said ou arquitectos como Rem Koolhaas. Não há qualquer continuidade nos modelos e nas actividades da exposição, a não ser a sua própria história e a maneira como se cruza com a história da Alemanha moderna do pós-guerra e o modo como essa é uma parte importante do desenvolvimento da arte moderna e contemporânea na Europa. Importa relembrar que a Documenta é proposta por Arnold Bode em 1955 para, finalmente, mostrar aos alemães a arte degenerada (Entartete Kunst) que os nazis esconderam e condenaram na exposição de 1937 em Munique, onde foram expostas cerca de cinco mil obras de arte modernas — fauvistas, cubistas, dadas, surrealistas, etc. — com legendas evidenciando o seu potencial pernicioso. Portanto, a Documenta surge como um evento orquestrado pelo governo alemão no contexto dos seus esforços de reconstrução da sociedade alemã no pós-guerra.
Mas se a questão do político tem sido central desde a sua criação, a política é nesta 14ª edição o grande protagonista. E é-o não num sentido metafórico, mas na medida em que coloca no seu centro a actual crise financeira, humanitária e cultural e assume a exposição, nas palavras do seu director artístico, como um projecto que ambiciona ser um manifesto político a partir do interior de uma estrutura institucional subsidiada por um governo.
Rumo a Atenas
Desde 2013, quando Adam Szymczyk foi nomeado director artístico da Documenta, que a ideia de fazer em Atenas metade da exposição se tornou central. E a capital grega tornou-se o destino inevitável por ser a cidade-emblema da crise global, onde as experiências neoliberais, nomeadamente o uso da dívida soberana como ferramenta política de controlo e opressão, levaram não só à perda de soberania de uma nação mas à destruição do seu Estado Social. Acontecimentos que, quer queiramos quer não, moldaram a vida contemporânea na Grécia e fora dela.
Não se tratou de fazer em Atenas uma pequena representação, mas assumir a Documenta 14 como um ser dividido: "a divided self", nas palavras do seu director. Ou, na fórmula poética do dramaturgo Antonin Artaud, um teatro e o seu duplo. Uma duplicidade com o objectivo de promover uma experiência estética, política e social, a partir do complexo e intenso jogo de forças políticas e financeiras que tecem o tecido do mundo contemporâneo.
A exposição no Museu Fridericianum — e este é um texto incompleto, porque só aborda a parte alemã da exposição — é clara na demonstração do desdobramento entre Atenas e Kassel. Para este espaço, habitualmente lugar da exposição central de cada edição da Documenta, a opção foi trazer de Atenas a sua maior colecção de arte moderna e contemporânea. Entregue a curadoria a Katerina Koskina, directora do museu ateniense, mostra de que modo a arte grega pode ser entendida no contexto mais geral das narrativas correntes da história da arte. A colecção composta por mais de mil obras reúne artistas gregos e internacionais que estiveram activos a partir dos anos de 1960.
A parte da colecção que viajou para Kassel pretende ser um comentário à complexidade da vida na Grécia e tenta, fundamentalmente, criar um contexto internacional para os trabalhos desenvolvidos pelos artistas gregos. É com esta moldura conceptual que surgem lado a lado artistas como Haris Epaminonda, Jan Fabre, Carlos Garaicoa, Hans Haacke, Mona Hatoum, Lucas Samaras, Pedro Cabrita Reis ou Walid Raad, entre muitos, muitos outros. No conjunto trata-se de uma exposição ao “estilo internacional”, em que se não fora o contexto particular da política cultural grega não teria qualquer sentido ou pertinência num contexto como o da Documenta. A relação entre as diferentes obras mostra-se casual e é difícil compreender a junção daqueles artistas, naquele museu, naquela cidade e naquele tempo.
O gesto de implantar em Kassel uma espécie de museu grego é, em teoria, excelente, mas a experiência expositiva e a eficácia política do gesto fica muito aquém da expectativa da comunidade artística grega e do público da Documenta.
No meio da exposição, num estilo provocatório à Joseph Beuys, Adam Szymczyk colocou o seu Parlamento dos Corpos. Fundado em 2016, este projecto artístico proposto pelo director artístico conta com um programa público que reúne artistas, activistas, teóricos, performers, trabalhadores, migrantes, etc., com o objectivo de propor diferentes experiências colectivas de construção das novas formas de subjectividade.
Esta organização informal nasceu como reacção dupla: por um lado, às novas filosofias materialistas e realistas, cujo foco está nas ideias de objecto e matéria — numa espécie de parlamento de coisas —, repudiando qualquer ideia de construção do indivíduo e da sua subjectividade; por outro lado, às migrações para a Europa e ao modo como essa movimentação de corpos denunciou não só a falência das instituições democráticas modernas, mas também as suas más práticas éticas de hospitalidade.
Este Parlamento é fundamentalmente uma defesa da individualização dos corpos, contra a sua transformação numa massa pública anónima alvo das manipulações do marketing. Trata-se de um espaço de activismo cultural, onde através de cada participação individual, se procuram novas formas de soberania e de sobrevivência. Activistas que propõem micropolíticas e modelos de autogoverno, práticas colaborativas, pedagogias radicais e experiências artísticas. Para o director artístico da Documenta 14, o Parlamento dos Corpos é um dispositivo crítico para questionar as instituições democráticas, bem como os formatos tradicionais de exposições e de experiências artísticas.
Ainda que o Parlamento tenha já tido alguns resultados — por exemplo, surgiu uma associação informal para procurar assassinos de imigrantes —, a menos que o visitante esteja atento à programação exaustiva (dura cem dias), a expressão deste Parlamento enquanto elemento expositivo fica por cumprir. A preocupação, justa e urgente, com a ordem do discurso cultural, habitualmente neocolonial, patriarcal e heteronormativa, não é suficiente para, como anunciado, pôr em causa o complexo expositivo do qual fazem parte os artistas convidados, a equipa de produção e o próprio público.
Neste sentido, o díptico de Maria Hassabi (n. Chipre, 1973) Stage (2016) e Staging (2017) é muito relevador: um conjunto de luzes intensas a iluminar coisa nenhuma. Luzes que encadeiam e cegam e que são a boa metáfora, acreditamos, para o modo como a Documenta 14 foi recebida em Atenas: “maquilhagem burguesa” chamou-lhe um crítico de arte grego.
Histórias de violência
Mas há uma história que esta Documenta 14 recupera e que é relevante. Uma história longa na qual a Grécia surge como vítima da violência alemã, de que a pilhagem de que foi vítima à mão dos nazis é o exemplo mais marcante. Uma história de violência que, de algum modo, todas as obras e exposições que compõem o braço alemão da Documenta 14 contam.
No imenso e impressionante vídeo de Michel Auder (n. França, 1945), a violência não surge circunscrita a nenhum momento histórico, cultural ou político, mas apresenta-se como uma história do mundo. The Course of the Empire (2017), uma instalação vídeo com 14 canais, resulta de uma leitura da história do mundo e da arte enquanto história de violência, opressão, submissão, poder. Os diferentes registos de violência que o artista reúne criam um horizonte comum para a compreensão e leitura da guerra, do novo totalitarismo de Trump às guerras contemporâneas feitas através de armas financeiras. Nas guerras bélicas há ecos de outras guerras: leis que proíbem, limitam acções, tiram a palavra ou excluem corpos, encerrando-os em campos bem isolados.
A vídeoinstalação de Auder é mostrada num túnel do antigo metro de Kassel, onde só se tem acesso andando sobre pedras e carris, mas estas guerras contemporâneas infligidas sobre os corpos de que as imagens são um reflexo também se encontram no enorme projecto do artista espanhol Daniel García Andújar (n. Espanha, 1966), The Disaster of War/ Trojan Horse (2017). Nesta obra, o artista reúne um enorme conjunto de artefactos que evocam as gravuras do pintor espanhol Goya feitas entre 1810 e 1820, com a intenção de criticar a violência exercida contra os civis durante as lutas entre o império de Napoleão e Espanha, em que os corpos de Goya se transformam em esculturas feitas numa impressora 3D, encerradas em estruturas de madeira que parecem jaulas. Elementos quotidianos a mostrar como a violência deixou de ser um estado de excepção, mas, como tão bem mostra o filósofo Walter Benjamin, é agora a regra, a nova lei, o novo quotidiano.
Outro tipo de violência é a exercida pelos refugiados limitados no seu movimento e na sua liberdade. Esta espécie de guerra, que é um inferno mesmo no centro da Europa, é o elemento central do vídeo da artista alemã Angela Melitopoulos (n. Alemanha, 1961). O seu trabalho com o título Crossings (2017) é uma das obras mais notáveis desta edição da Documenta 14. Claro que há Goya, Tintoretto, Richter e muitos outros artistas célebres no panteão da história da arte ocidental, mas Melitopoulos consegue de uma forma crítica e estética abordar o tema dos refugiados e simultaneamente explorar questões plásticas relativas à imagem, ao tempo e à montagem como construção de sentido e narrativa.
As filmagens feitas num campo de refugiados na ilha grega de Lesbos podem ser vistas como uma espécie de cartografia cinematográfica, ou seja, não se trata de reunir e recolher testemunhos e documentos, mas mapear os diferentes territórios — culturais, emocionais, políticos, sociais — habitados pelas pessoas retidas em campos de refugiados.
Na sala surgem diferentes projecções organizadas circularmente que criam uma sensação imersiva e mostram diferentes aproximações à vida dos refugiados. A mistura entre relatos, paisagem e metáforas visuais é muito potente e possibilita a criação de horizontes plásticos, sonoros e poéticos. Às suas mãos, os refugiados não são só uma realidade política, mas igualmente uma realidade emocional.
A questão do cânone
Uma das consequências da intensa movimentação de pessoas na Europa, que os artistas convidados para esta Documenta 14 tão bem apresentam, é não só uma reconfiguração dos habituais territórios sociais (com fortes consequências na organização social), mas também da nossa cultura e dos protocolos que regem a relação com diferentes práticas artísticas e funções das coisas da arte.
A integração e a vida em conjunto não é só um desafio económico e social, mas também cultural e científico: como fazer das nossas exposições, galerias e museus lugares de reconhecimento do outro e palco de uma arte com funções e genealogias totalmente diversa da nossa? E neste aspecto, essencial, a Documenta 14 é um sucesso: a exposição na Neue Galerie é notável na forma como justapõe cronologias tão diferentes como os séculos XIX, XX e XXI, e como navega entre as questões da escravatura no império francês de Luís XIV em 1685, ao modo como os nazis tentaram através de tácticas de reescrita e escamoteamento reescrever a história da arte e do mundo, até aos objectos etnográficos trazidos pelos novos habitantes da Europa.
Aqui coabitam Courbet com Marcel Broodthaers, Samuel Beckett com Maria Eichhorn, George Maciunas com Winckelmann, entre muitos outros artistas anónimos cuja função é questionar não só o papel da arte, mas o próprio sistema de construção da sua narrativa. Um confronto e mistura que desafiam, sobretudo, o cânone artístico ocidental e todos os protocolos de experiência expositiva e artísticas: como olhar para objectos semelhantes a esculturas mas cuja função era mágica? Como conceber a justaposição e confronto entre a nossa cultura de celebridade (como lhe chama Isabelle Graw) e artistas, artesãos e religiosos totalmente desconhecidos? Coisas com funções mágicas que abalam não só as nossas certezas acerca do que deve e pode a arte, mas obrigam a própria história da arte a pensar nas categorias utilizadas para classificar os seus objecto disciplinares.
Mas são estas histórias e estas coisas que através da intensa movimentação de populações são transportadas para o centro da nossa realidade. Discursos e objectos que testemunham não só uma vida, um território, uma sensibilidade, mas nos impelem a reconfigurar as nossas ideias de criatividade, de arte e de experiência estética. Portanto, o desafio que esta crise representa não diz só respeito às politicas, à habitação ou à ética do acolhimento, mas é também um desafio à nossa sensibilidade e um teste à maneira como a cultura ocidental se pode, ou não, rever como uma cultura de hospitalidade.
Até 17 de Setembro.