A “era da pós-verdade” em Portugal
Uma sociedade civil que se limite a “ler as gordas” arrisca-se a ficar esquelética de conhecimento e a que os seus ossos sirvam de armas a injustas batalhas.
Faz parte do nosso modo de (procurar) entender o mundo apelidá-lo de variadas formas. As mais recentes apontavam, segundo filósofos e sociólogos, para a “pós-modernidade” ou “modernidade tardia”, de que o há pouco desaparecido Zygmunt Bauman foi um dos principais arautos. Ulrich Beck, com a sua Risikogesellschaft (“sociedade do risco”) e, antes dele, Habermas, com a “teoria do agir comunicacional”, compõem, em extremo esboço, os mais relevantes contributos para sabermos o que somos enquanto comunidades de concretas mulheres e homens.
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Faz parte do nosso modo de (procurar) entender o mundo apelidá-lo de variadas formas. As mais recentes apontavam, segundo filósofos e sociólogos, para a “pós-modernidade” ou “modernidade tardia”, de que o há pouco desaparecido Zygmunt Bauman foi um dos principais arautos. Ulrich Beck, com a sua Risikogesellschaft (“sociedade do risco”) e, antes dele, Habermas, com a “teoria do agir comunicacional”, compõem, em extremo esboço, os mais relevantes contributos para sabermos o que somos enquanto comunidades de concretas mulheres e homens.
Nos últimos dois ou três anos tem-se imposto a chamada “época da pós-verdade”, de inspiração norte-americana (post-truth politics), de acordo com a qual o nosso tempo se caracterizaria por uma acentuada manipulação da informação de massa, pelas fake news, pelo controlo dos media e pelo instantâneo que, muitas vezes, não apresentaria adesão à realidade. Com base em tão fraco suporte, seríamos todos mais facilmente moldáveis aos poderes públicos e económicos, à distância de um tweet, de uma publicação no Facebook ou no Instagram. Não faltariam exemplos, desde o mais óbvio com a eleição de Trump, à guinada política na Polónia, ao Brexit e toda a campanha de desinformação que a acompanhou, até à insuspeita Alemanha, onde a aparentemente sombria Merkel também teria entre os seus sequazes as imprescindíveis agências de comunicação. Os casos de Trump e do Brexit são os mais paradigmáticos: em ambos a opinião pública foi bombardeada com dados mais tarde desmentidos por entidades oficiais, por cientistas, mas que uma vez ditos e repetidos se tornaram verdades. Mais que isso, eram mentiras que uma boa parte da população queria converter em factualidade. Assim, a “liquidificação” das relações humanas (Bauman) foi sendo o caldo perfeito para que cada cidadão se vá arvorando em rei Midas, com um toque transformando uma mentira numa conveniente verdade.
Compreendo a vantagem de tais linhas interpretativas, mas receio que elas pouco ou nada tenham de novo, excepto a dimensão hoje propiciada pelas tecnologias da informação. Tal como sucedeu com a “sociedade do risco” de Beck, vai havendo muito “pouco de novo debaixo do sol”. Compulsei a “Constituição dos Atenienses”, de Aristóteles, e deparei-me com pérolas como esta: na Constituição de Sólon entendia-se que as leis eram propositadamente obscuras, “com o intuito de que o povo se tornasse senhor das decisões”, o que na verdade não aconteceu, tendo o pobre Sólon, depois de dez anos no Egipto para se libertar da dureza do governo, regressado como tirano, aliando-se a ricos e pobres, cada um a seu turno, acabando por todos odiado, mas com a convicção de ter salvado “a pátria e para ela criar as melhores leis”. Mais à frente: “os Atenienses, fazendo uso da habitual doçura do regime democrático, haviam deixado que habitassem na cidade os amigos dos tiranos que se não tinham comprometido com desordens”.
Muitas outras passagens poderiam ser transcritas, mas o ponto é que as datas prováveis deste conjunto de fragmentos aristotélicos é de 329 a 322 a.C. E já aí o Povo era dominável e dominado. Também aí havia desinformação. De igual modo, mais que a verdade, o que se procurava era o bem-estar sócio-económico, mesmo que num quadro de tirania e de homens sebastiânicos e que, em eras de incerteza como são todas, pareça saber para onde nos conduz. A preguiça está subestimada e o ser humano é-o por natureza. Se há alguém que aparenta ter uma ideia para um Estado, mesmo que aqui e além minta e/ou cometa delitos, para quê aborrecermo-nos com “sobressaltos cívicos”? Daí que, em conclusão, acompanhando e respeitando o trabalho de filósofos e sociólogos, não vislumbro nestes epítetos mais que uma mera vantagem heurística.
E Portugal também está na “era da pós-verdade”? Por certo de um modo bem mais pacato, mas os exemplos também não faltam, apresentando-os deliberadamente sem emitir opinião sobre os mesmos. Para me ater aos mais recentes: pessoas que se suicidaram não se suicidando após a tragédia de Pedrógão, piloto de helicóptero de combate a incêndio que morreu ressuscitando, livros de actividades para crianças discriminatórios e sexistas que afinal o não são, valores de dívida que encolhe crescendo no primeiro semestre de 2017. Linchamentos “facebookianos” e quejandos de médicos que afirmam que a homossexualidade é uma “anomalia” ou que quem recorre a “barrigas de aluguer” é “um estupor moral”, de quem na política “sai do armário”, de um tipo tão improvavelmente machista quanto o Chico Buarque… Talvez seja da silly season, mas é patente que o sound bite é amiúde o que fica, ainda que mentira ou meia-verdade. Se vivemos no e do instantâneo, que mais se queria de uma maioria da população que só lê as manchetes nos telemóveis e tem preguiça de investigar pelos seus próprios meios?
Tudo isto seria normal e até relativamente caricatural, não foram os riscos de totalitarismos que se vão fazendo sentir e de termos uma opinião pública cada vez mais desinformada, amorfa e fácil de domesticar ao bel-prazer dos interesses político-económicos. Uma sociedade civil que se limite a “ler as gordas” arrisca-se a ficar esquelética de conhecimento e a que os seus ossos sirvam de armas a injustas batalhas.