A ditadura da memória: um caso exemplar
Cabe aos historiadores portugueses tomarem a palavra. Cabe-lhes mostrar que a história da escravatura, sendo uma matéria complexa, nem por isso deixa de procurar, como todas as outras, a verdade.
Nos dias que correm debate-se o problema da antiga escravatura de uma forma indirecta e por referência ao que se passa nos Estados Unidos com a remoção de estátuas de certas figuras históricas. Mas seja de forma indirecta ou directa, nesse ou noutros debates sobre o passado, é muito frequente confundir-se memória e História. Ao contrário do que geralmente se diz, a História não é escrita pelos vencedores — a memória sim, é imposta por eles. A História é escrita pelos historiadores e há-os de várias correntes ideológicas e a produzir trabalho cujo mérito não depende da eventual proximidade aos vencedores, mas sim da sua profundidade e solidez. A História deve ser sempre informada, crítica e plural. A memória não tem essas exigências. É parcial e selectiva — é a visão que um determinado grupo tem do passado — e é ela que costuma ser alvo de apropriações e imposições. Ora, a memória e a maneira como a usam são ou podem ser perigosas. Porquê? Porque há pessoas que acham, erradamente, que as memórias têm o mesmo rigor e valor da História. Acham, também, que podem impor a “sua” memória dos factos, invadir a História e calar os historiadores; há, até, quem diga que a História não precisa de sentinelas (para que — acrescento eu — o seu território seja mais facilmente invadido e tomado). Tudo isso tem sido muito evidente no debate sobre a antiga escravatura e sobre o que deve ser a nossa posição relativamente a ela, e é justamente sobre isso que quero contar-vos um episódio muito esclarecedor sobre o teor de veneno que as memórias “certas”, e os que se dizem seus paladinos e defensores, podem trazer.
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Nos dias que correm debate-se o problema da antiga escravatura de uma forma indirecta e por referência ao que se passa nos Estados Unidos com a remoção de estátuas de certas figuras históricas. Mas seja de forma indirecta ou directa, nesse ou noutros debates sobre o passado, é muito frequente confundir-se memória e História. Ao contrário do que geralmente se diz, a História não é escrita pelos vencedores — a memória sim, é imposta por eles. A História é escrita pelos historiadores e há-os de várias correntes ideológicas e a produzir trabalho cujo mérito não depende da eventual proximidade aos vencedores, mas sim da sua profundidade e solidez. A História deve ser sempre informada, crítica e plural. A memória não tem essas exigências. É parcial e selectiva — é a visão que um determinado grupo tem do passado — e é ela que costuma ser alvo de apropriações e imposições. Ora, a memória e a maneira como a usam são ou podem ser perigosas. Porquê? Porque há pessoas que acham, erradamente, que as memórias têm o mesmo rigor e valor da História. Acham, também, que podem impor a “sua” memória dos factos, invadir a História e calar os historiadores; há, até, quem diga que a História não precisa de sentinelas (para que — acrescento eu — o seu território seja mais facilmente invadido e tomado). Tudo isso tem sido muito evidente no debate sobre a antiga escravatura e sobre o que deve ser a nossa posição relativamente a ela, e é justamente sobre isso que quero contar-vos um episódio muito esclarecedor sobre o teor de veneno que as memórias “certas”, e os que se dizem seus paladinos e defensores, podem trazer.
O caso passou-se em 2005 com o meu colega Olivier Pétré-Grenouilleau, o mais reputado especialista francês em história da escravatura. Pétré-Grenouilleau, que acabara de ganhar um prémio do Senado pela sua obra Les Traites négrières. Essai d’histoire globale, deu uma entrevista a um jornal na qual falou desse seu livro e afirmou, entre outras coisas, que não faz sentido as pessoas referirem o tráfico de escravos como “genocídio” ou “holocausto”, porque, como é óbvio, a intenção dos negreiros não era matarem os escravos, mas sim transportá-los para a América, onde seriam vendidos. Disse, também, que terá havido mais de um milhão de cristãos brancos escravizados pelos piratas muçulmanos da Argélia e Marrocos. Referiu, ainda, que África foi vítima do tráfico de escravos, mas também responsável principal desse horrível comércio na medida em que houve muitos africanos que estiveram profundamente implicados nele.
Nada do que Pétré-Grenouilleau disse naquela entrevista merece objecção ou contestação da parte dos historiadores, independentemente das suas inclinações ideológicas. São factos incontroversos. Todavia, aquilo que ele disse foi contrariar a memória que certos grupos têm dos acontecimentos passados e, no dia seguinte, o Collectif des Antillais, Guyanais et Réunionnais caiu-lhe em cima. O Collectif é uma organização afro-caribenha que assumiu a incumbência de fazer com que se respeite e preserve a “memória da escravatura”. Ora, a sua comissão de cultura, dirigida por um activista com formação em filosofia chamado Claude Ribbe, considerou que essa “memória” estava a ser afrontada. Numa carta violenta, Ribbe acusou Pétré-Grenouilleau de insultar os africanos e os caribenhos, de ser um revisionista, um falsificador da História, um mentiroso e, claro está, um racista. As redes sociais encheram-se de insultos e de ameaças ao historiador e à sua família. Enquanto isso o Collectif, exigiu que Pétré-Grenouilleau fosse suspenso das suas funções universitárias e processou-o, ao abrigo da lei. Sim, por muito que espante, isso era e é concebível. A França é o único país democrático que impôs aos seus cidadãos um corpus de leis que impõem uma determinada forma de representar e designar factos passados, e, nessa altura, já existia a chamada lei Taubira que, entre outras disposições, obriga o Estado francês a defender a memória dos escravos e a honra dos seus descendentes. Isso quer dizer que, em função dessa lei, as pessoas ficaram impedidas de se pronunciar sobre a questão de uma forma que divergisse da versão que os referidos descendentes de escravos têm do passado.
Pétré-Grenouilleau tratou da sua defesa na justiça. Vários historiadores (entre os quais me incluo) foram chamados a atestar o seu saber e competência profissional na área da história da escravatura. Mas as acções judiciais contra ele multiplicaram-se. A coisa foi de tal ordem, assumiu tais proporções, que levou os mais prestigiados historiadores franceses a assinar uma petição para que as leis que restringem a liberdade dos historiadores e os subordinam à “ditadura” das memórias fossem todas revogadas. Há tempos, um dos meus contraditores — o mesmo que não gosta que a História tenha sentinelas —, sugeriu-me que lesse Jacques Le Goff e Marc Ferro, para perceber a relação entre História e memória (coisa que, em sua opinião, eu não perceberia). Pois bem Jacques Le Goff e Marc Ferro foram dois dos referidos signatários da petição. Outros foram Emmanuel Leroy Ladurie, Paul Veyne, Pierre Nora, René Rémond, Jean-Pierre Vernant, Pierre Vidal-Naquet, isto é, a nata da historiografia francesa de então.
A petição que assinaram esteve na génese da associação Liberté pour l’Histoire, uma associação que visa pôr trancas à porta da nossa sanidade mental e conter as memórias nos espaços que lhes competem. A associação ainda existe e mantem-se activa e vigilante. É claro que, do lado oposto, havia outros historiadores — como também por cá os há —, que queriam valorizar a memória, impô-la como palavra final, dar-lhe foros de cidadania. Todavia, não tendo os argumentos dos seus opositores tiveram de ceder o terreno. A associação Libérté pour l’Histoire e outros participantes no debate conseguiram fazer sentir à população e aos poderes políticos que as organizações que se dizem defensoras da memória podem ser uma ameaça ao livre exercício do métier de historiador, restringindo-lhes a liberdade de investigar, de chegar a conclusões e de as expor aos leitores. A acção judicial contra Pétré-Grenouilleau não prosseguiu e o historiador ensina, actualmente no Institut d'Études Politiques, em Paris. Tout est bien qui finit bien.
Mas o caso Pétré-Grenouilleau tornou-se o símbolo da utilização chocante da memória (e da lei) contra a História, e vale como um sério aviso porque os memorialistas perderam essa batalha, mas não desistiram. A pulsão para aprisionar a História da escravatura dentro de um molde, um espartilho politicamente correcto, é internacional, vem de vários lados, obedece a uma agenda definida na década de 1990, e combatê-la é difícil porque a maior parte das pessoas não está a par do que se joga nem de como se joga. Há, hoje em dia, um enorme esforço para impor uma determinada memória e apagar ou derrubar tudo o que a contradiga, como se vê por estes episódios de demolições/remoções de estátuas a que temos vindo a assistir nos Estados Unidos. Ao invés de erigirem estátuas a figuras que reputem importantes para a perpetuação da “sua” memória, os novos iconoclastas querem bloquear e apagar a memória dos outros; ao invés da coexistência pacífica de memórias numa sociedade aberta e plural, querem a censura e o desaparecimento de memórias que consideram “erradas”. No prefácio de um livro que publiquei há uma dúzia de anos eu manifestava o meu desejo e a minha esperança de que “os fenómenos fanáticos que se verificaram em França, em 2005” — e que se verificam agora nos Estados Unidos —, nunca chegassem a Portugal. Infelizmente parece que chegaram. Por isso vemos actualmente um pelotão de antropólogos, filósofos, jornalistas, economistas, activistas e especialistas em literaturas várias, pessoas que se auto-atribuiram competências e conhecimentos no campo da História que ninguém sabe onde nasceram e de onde vêm, a quererem impor uma visão dos acontecimentos e a acusarem quem diz diferente de ser “intelectualmente desonesto” ou de estar a “branquear” a História. Estas pessoas estão certas das suas certezas com o fervor religioso dos sectários. Porquê? Porque se acham defensoras da memória — de uma determinada memória. Cabe aos historiadores portugueses tomarem a palavra, se assim o entenderem. Cabe-lhes mostrar que a história da escravatura, sendo uma matéria complexa, que toca questões dramáticas e delicadas, e que lida de perto com o que foram graus muito elevados de injustiça e de sofrimento humano, nem por isso deixa de procurar, como todas as outras, a verdade.