A estranha paixão da Índia pelos seus gurus
O país de mais de mil milhões de pessoas tem dezenas de milhares de gurus. Mas alguns conseguem grandes impérios económicos e de influência. O "guru do bling", condenado a 20 anos de prisão por violação de duas mulheres, é um deles.
O caos, violência e destruição provocados por apoiantes de um guru indiano condenado a uma pena de 20 anos de prisão são sintomáticos do peso dos gurus na vida do país: seja por liderança espiritual, seja por serem a cara de grandes impérios comerciais, seja por terem ligações a políticos, a modernidade não alterou a importância dos gurus na Índia. Apenas mudou o seu foco.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
O caos, violência e destruição provocados por apoiantes de um guru indiano condenado a uma pena de 20 anos de prisão são sintomáticos do peso dos gurus na vida do país: seja por liderança espiritual, seja por serem a cara de grandes impérios comerciais, seja por terem ligações a políticos, a modernidade não alterou a importância dos gurus na Índia. Apenas mudou o seu foco.
A Índia, escrevia o correspondente da BBC em Nova Deli, é um país de mais de mil milhões de pessoas e dezenas de milhares de gurus. Mas muito poucos assumem a importância de Ram Rahim, que foi condenado por duas violações de duas seguidoras da sua seita e está ainda a ser investigado em dois casos de homicídio, um de uma seguidora e outro de um jornalista que investigou as suas actividades.
No seguimento do anúncio da condenação, na sexta-feira, os seus seguidores levaram a cabo motins e, que morreram 38 pessoas e deixaram cerca de 200 feridas. Dois estados decretaram de novo medidas de emergência para o anúncio da sentença – 20 anos de prisão, dez por cada crime – que foi lida na prisão onde Ram Rahim Singh estava detido, depois de o juiz ser levado de helicóptero para o local e de cinco cordões de segurança garantirem que ninguém chegava perto do local.
Apesar de já ser suspeito há alguns anos, o guru Ram Rahim manteve a sua importância, baseada no que alguns escrevem como “um Estado paralelo”, de uma série de organizações de caridade que garantia serviços aos mais desfavorecidos.
Uma jornalista que visitou a sede da sua seita, um complexo de mais de 100 hectares, contou à BBC que viu exuberâncias como casas com janelas em forma de orelhas, paredes turquesa, reservatórios de água em forma de frutas coloridas. “Parece-me que é um guru que vive as suas fantasias”, comentou a jornalista à BBC. “Estrela de cinema, cantor rock, benemérito, político. Fá-lo através do seu grupo e dos seus devotos.” Ao mesmo tempo, “também ajuda os seus seguidores a sonhar grande.”
Do ascetismo ao bling
A contradição entre uma vida de fantasia e riqueza e a proclamação de princípios de ascetismo não são vistas como contraditórias: o caso do guru agora condenado – o "guru do bling" – é um bom exemplo, transitando, como descrevia a BBC noutro artigo, sem qualquer esforço entre o promover uma vida de “contenção razoável” e viver ele próprio uma vida de opulência e excessos, desde as roupas até ao ser ele próprio uma espécie de estrela tanto de Bollywood (realizando e protagonizando os seus próprios filmes) como rock, dando também concertos em estádios.
Apesar de ter uma maioria de seguidores de classes baixas – muitos de castas inferiores, que sofrem violência estrutural a muitos níveis – Ram Rahim Singh tem também um grupo de seguidores influentes. A troca política é mútua: apoiou o partido do primeiro-ministro, Narendra Modi, e declarou-se favorável a algumas políticas polémicas do Governo. No Twitter, também Modi mencionou o guru já depois de ter sido eleito, saudando em 2014 o seu apoio a uma das iniciativas do Governo, uma campanha apolítica e cidadã para uma “Índia limpa”.
Não é por acaso que outro dos gurus mais importantes da Índia, Baba Ramdev, seja também apoiante de Modi. Se políticos como a antiga primeira-ministra Indira Gandhi tiveram o “seu” guru conselheiro, o fenómeno actual é diferente, explicou ao canal France 24 a analista e especialista em Índia Mira Kamdar.
“O dinheiro e os milhões de seguidores atraídos por estas personalidades interessam aos políticos”, disse Kamdar. “Mas se o fenómeno dos gurus na Índia vem de há muito e precede o poder actual, o Governo Modi promoveu-o, já que permite manter uma ideologia e identidade hindu” – muitos liberais seculares, assim como muçulmanos e cristãos, temem o nacionalismo hindu de Modi.
Ioga e massa instântanea
Os indianos recorrem aos seus gurus, como sublinha o Guardian, para questões tanto mundanas como religiosas. Nos anos 1960, alguns gurus indianos ajudaram a criar uma imagem do país, quando eram procurados por ocidentais – com visitas como a dos Beatles ao guru Maharishi Mahesh Yogi. Este foi um dos primeiros gurus com um império de negócio: o de vender espiritualidade, ioga e meditação, a estrangeiros.
Mas, como explica Lise McKean, antropóloga e autora de Divine Enterprise, um livro que analisa os negócios do hinduísmo, “as actividades de muitos gurus e das suas organizações nos anos 1980 e 1990 estão relacionadas com a expansão simultânea do capitalismo transnacional tanto na Índia como no estrangeiro”.
Os gurus começaram assim a ter linhas de produtos próprias – a maioria ayurvédicos e biológicos.
O guru Baba Ramdev (apesar de ambos apoiarem Modi, é muito diferente de Ram Rahim, vestido com um mero pano cor de laranja e famoso pela prática de ioga) foi um dos primeiros e tem o que a revista Forbes chama “a versão indiana da Body Shop”, tendo causado um grande frisson quando lançou uma linha de noodles (massa) instantâneos, concorrendo com o mesmo produto da Maggi, da Nestlé.
Este ano, o guru anunciou a sua entrada noutro sector de negócio: segurança privada. A busca de lucro não está evidente na apresentação da iniciativa: o novo negócio “irá ajudar a desenvolver o instinto militar em cada um dos cidadãos do país e acordar o espírito e determinação para a segurança individual e nacional”.
Ram Rahim seguiu as pisadas de Ramdev e começou o ano passado a sua linha de produtos alimentares, no que classificou como mais um passo para que “o país seja mais saudável”.
Outros gurus têm linhas de produtos ayurvédicos, com base na medicina tradicional indiana: Sri Sri Ravishankar, por exemplo, tem uma linha que inclui pastas de dentes, champôs, bálsamos, chás e xaropes. A guru mais famosa da Índia, Mata Amritanandamayi tem-se dedicado a saúde e educação, gerindo hospitais, universidades, e um canal televisivo.
A promessa da igualdade
A dedicação a acções de caridade permite também chegar a outro público, o de pessoas marginalizadas, que não se sentem incluídas nas preocupações do poder político e se sentem apoiadas pelas seitas. Uma Índia dividida em castas também promove este fenómeno. No caso dos seguidores do "guru do bling", adoptavam todos o mesmo apelido, Insan (humano), em vez do tradicional, que que indica a casta e lugar na sociedade de cada um.
A ligação dos seguidores ao seu guru resulta frequentemente em acções extremas. Quando o guru Ashutosh Maharaj morreu em 2014, aparentemente após um ataque cardíaco, os seus seguidores recusaram-se a aceitar a sua morte, considerando que ele estava apenas a meditar. Decidiram congelar o seu corpo para que pudesse mais tarde acordar – uma decisão desafiada em tribunal por um homem que dizia ser um antigo motorista do guru e que acusava os seguidores de quererem manter o usufruto das propriedades do guru, sem sucesso.
Antes, em 1993, um tribunal ordenou a retirada aos seguidores do corpo de um outro guru, Balak Brahmachari, que também diziam que o seu líder não estava morto mas sim a meditar. Nessa altura, foram precisos 450 polícias para retirar o corpo do guru dos devotos.
Outros gurus foram também acusados por crimes de violação (Asaram Bapu, de 76 anos, preso em 2013), assassínio (Rampal, cuja tentativa da polícia o levar a tribunal levou a confrontos com seguidores que provocaram seis mortos), e ataques sexuais (Sathya Sai Baba, que morreu em 2011, nunca foi formalmente acusado). Em todos estes casos, os seguidores formaram uma frente de apoio.