O dia em que a comunidade branca da Virgínia deixou de admirar o general Lee e passou a venerá-lo
As estátuas do herói da Confederação estão a ser retiradas um pouco por todos os EUA, onde se debate a herança da guerra civil e a apropriação das suas figuras pelos novos supremacistas brancos.
A canonização do general da Confederação Robert E. Lee começou pouco depois das cinco da tarde do dia 7 de Maio de 1890, nas docas do rio James em Richmond, Virgínia (EUA). Foi nesse dia que mais de dez mil cidadãos usaram mais de vinte mil mãos para pegarem em cordas e rebocarem, ao longo de três quilómetros, três enormes contentores para uma antiga plantação de tabaco na zona alta da cidade, onde é hoje a Monument Avenue.
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A canonização do general da Confederação Robert E. Lee começou pouco depois das cinco da tarde do dia 7 de Maio de 1890, nas docas do rio James em Richmond, Virgínia (EUA). Foi nesse dia que mais de dez mil cidadãos usaram mais de vinte mil mãos para pegarem em cordas e rebocarem, ao longo de três quilómetros, três enormes contentores para uma antiga plantação de tabaco na zona alta da cidade, onde é hoje a Monument Avenue.
Dentro dos contentores, e acabada de sair do atelier do escultor em França, estava a gigantesca estátua que paira desde então não só sobre o horizonte de Richmond, mas também sobre a psique da Virgínia: o imponente Lee, montado no seu cavalo. Esse momento de aclamação popular elevou Lee a um novo patamar de admiração, e ajudou a germinar a crescente visão do general como “o maior filho da Commonwealth da Virgínia”, diz o historiador Edward Ayers, professor na Universidade de Richmond.
“Sem dúvida que Lee foi aclamado no momento da sua morte”, vinte anos antes, diz Ayers. “Mas foi esta extraordinária manifestação pública em 1890 que decisivamente começou a colocá-lo no topo do panteão para os brancos da Virgínia. Houve pessoas que guardaram pedaços dessas cordas para o resto das vidas.”
Nos 127 anos que passaram desde esse dia, os memoriais em honra de Lee multiplicaram-se pelo país, em especial no Sul. E agora estão a desaparecer – a maior parte das vezes durante a noite. Na ressaca da violência na manifestação de supremacistas brancos em Charlottesville – uma iniciativa que inicialmente tinha como objectivo protestar contra a prevista retirada de uma estátua de Lee – as figuras do general têm vindo a ser removidas dos seus pedestais um pouco por todo o lado, desde o Texas à Carolina do Norte ou a Baltimore.
Mas não há sítio onde a presença de Lee se faça sentir tanto como no “Old Dominion”, o seu amado estado-natal. Na Virgínia, os tributos a Lee incluem o seu nome em pelo menos cinco escolas secundárias, duas escolas primárias, uma base do Exército e uma universidade. Dá também título a um feriado e a uma auto-estrada interestadual que se estende de Rosslyn a Bristol. O seu túmulo em mármore, em exposição na Universidade Washington and Lee em Lexington, é digno de uma catedral, e a Arlington House, mansão sobranceira ao Arlington National Cemetery onde Lee viveu, é um memorial gerido pelo National Park Service que atrai mais de um milhão de visitantes por ano.
Esse legado está agora em risco por todo o estado. Espera-se para um futuro próximo a decisão de um juiz federal sobre se Charlottesville pode avançar com a remoção do memorial de Lee na cidade. Em Arlington, há petições para que a administração da escola apague Lee do nome da secundária local, e políticos do condado estão à espera de permissão para mudar o nome da parte da auto-estrada Lee que passa pela área. Até a R.E. Lee Memorial Church, histórica igreja episcopal onde o general fazia as suas preces, está a considerar uma mudança de nome.
Alguns dos próprios descendentes de Lee, incluindo Robert E. Lee V, pediram que os memoriais fossem mudados de sítio em nome da reconciliação do país, algo que dizem ter sido o último desejo do seu antepassado.
E mesmo em Richmond, antiga capital da Confederação, o presidente da câmara, Levar Stoney, do Partido Democrata, disse na semana passada ter pedido à Comissão da Monument Avenue que examine a possível remoção de algumas, ou até a totalidade, das estátuas confederadas – incluindo a de Lee. Instado a revelar mais sobre essa possibilidade, o mayor declinou fazer comentários adicionais.
Para grande parte da comunidade branca da Virgínia, Lee está entre os fundadores sagrados da república: George Washington, Thomas Jefferson, James Madison. Quando a Assembleia Geral da Virgínia teve de escolher dois notáveis do estado para figurarem no Capitólio, foi Lee, e não Jefferson, o escolhido para acompanhar Washington no Statuary Hall. A escolha para o Capitólio de alguém que lutou contra a nação foi muito criticada fora dos estados da “Commonwealth” [Virgínia, Kentucky, Pensilvânia e Massachusetts].
A ligação entre os nomes dos dois generais da Virgínia (Washington e Lee) vem já desde quando, pouco após a morte de Lee em 1870, a Universidade Washington em Lexington acrescentou “Lee” ao seu nome em honra do general, que passara os seus últimos anos como presidente da instituição.
A recente controvérsia tem levado muitos a manifestarem-se contra a retirada das estátuas de Lee, incluindo o Presidente Donald Trump.
“Esta semana é a de Robert E. Lee”, disse Trump numa acalorada conferência de imprensa na semana passada. “Soube que querem deitar abaixo a de Stonewall Jackson também. Será que na próxima semana é a de George Washington? E na seguinte, a de Thomas Jefferson?”
Seja qual for o papel de Lee na enorme polémica que engole o país, o estatuto que detém no seu estado-natal vai influenciar o debate nos estados da “Commonwealth”.
“Washington e Jefferson pertencem ao país”, afirma Ayers. “Lee pertence à Virgínia.”
O escritor Roy Blount Jr., que em 2003 escreveu uma biografia de Lee, marcou presença no desmantelamento de uma estátua do general em Nova Orleães, em Maio último. Blount, observando que a famosa rectidão de Lee não fazia dele “propriamente um tipo à la Nova Orleães”, relatou que os presentes faziam mais piadas do que levantavam objecções. E previu que na Virgínia as coisas seriam diferentes.
“Imagino que em Richmond não fosse tanto laissez les bom temps rouler [expressão do francês cajun, do Louisiana, tradução literal de let the good times roll], disse Blount. “Seria como alguém querer deitar abaixo a estátua de Louis Armstrong em Nova Orleães.”
O ajuntamento popular de 1890 em Richmond não foi espontâneo, e gerou controvérsia. Foi planeado para servir como meio prático de transporte da maciça escultura de pedra para o seu sítio, mas também como rampa de lançamento das cerimónias de inauguração e dedicatória que aconteceriam três semanas depois. John Mitchell, negro, membro do conselho municipal e editor de um jornal para a comunidade afro-americana, condenou a empreitada, afirmando que celebrava o “legado de traição e sangue” de Lee, de acordo com Richard Schein, autor de Landscape and Race in the United States.
Mas para os brancos, essa segunda-feira era o momento oportuno para demonstrarem em massa a sua bênção a Lee e aos seus esforços de guerra. Vinte anos decorridos sobre a morte de Lee e vinte e cinco sobre a rendição em Appomattox, os veteranos estavam a desaparecer cada vez em maior número, e em consequência despontavam sociedades para homenagear os heróis da Confederação. O movimento revisionista Lost Cause começava a afirmar-se e Lee, cuja reputação de honradez fazia dele um ícone aceitável até para alguns brancos do Norte, era o “homem de mármore” perfeito para que a história da rebelião se passasse a focar na honra em lugar da escravatura, afirma Blount.
“Ele fez com que fosse possível dar à Confederação um rosto de cavalheirismo e superioridade moral”, continua Blount. “Foi nessa altura que se estabeleceu a ideia do supremacismo branco. Podem apostar que as 20 mil pessoas que apareceram eram brancas.”
Assim parece ter sido, de acordo com o correspondente de The Washington Post presente e que, sob o título “Erguido por mãos alvas”, afirma que boa parte dos que se acotovelavam para participar no reboque eram mulheres, raparigas jovens e crianças de colo: “Crianças pequenas foram levadas para as ruas pelas mães, e as suas pequenas mãos colocadas nas cordas”, pode ler-se na notícia.
A edição do dia seguinte do Chicago Tribune descrevia uma multidão em festa, veteranos nos seus uniformes e bandeiras confederadas a agitarem-se sobre as cabeças. Os enormes contentores, carregados com oito toneladas de Lee e do seu cavalo, foram montados em três vagões aos quais foram amarrados 70 metros de corda. Um foi puxado por cidadãos, outro por veteranos, e o terceiro por mulheres. Ao longo do caminho os alpendres encheram-se de curiosos, e tantas pessoas quiseram ajudar a puxar que foram acrescentados 230 metros de corda ao esforço colectivo.
“Quando a procissão chegou ao pedestal do monumento as pessoas começaram a cortar pedaços das cordas”, contou então o Tribune. “A princípio a polícia tentou impedi-las, mas não havia nada a fazer e as cordas acabaram a fazer de souvenirs.”
O próprio Lee teria desdenhado de tais relíquias e rituais, dizem os historiadores. Blount refere que ele olhava para os monumentos como irritantes “feridas da guerra”, e que a sua modéstia teria feito com que rejeitasse o estatuto de herói venerado. E ainda que Lee também não apreciaria que, como aconteceu este mês, supremacistas brancos e neonazis se juntassem para protestar contra a proposta de remoção de uma estátua sua de um parque em Charlottesville.
“Ele teria olhado para eles como canalhas”, diz Blount. “Não quereria ser homenageado por estes desordeiros.”
Mas as sementes que fizeram florescer o culto a Robert E. Lee, hoje sob intenso escrutínio, foram plantadas muito antes. E não haverá memorial mais difícil de remover que a imagem de Lee que paira sobre Richmond – a que foi lá posta por “mãos alvas” e longas cordas há um século e meio atrás.
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post
Tradução: António Domingues