O adultério em visita
Filipa Melo cria um divertido e criativo tratado histórico e social, a que não falta o cunho muito pessoal, erudito e sarcástico da autora.
De que falamos quando referimos — ou praticamos — o adultério? Em Dicionário Sentimental do Adultério, Filipa Melo dá (quase) todas as respostas. Ao longo de um número considerável de entradas, organizadas de A a Z — começa em Abraão e termina com Zeus, o que não deixa de ser uma ironia —, a autora explica e relata, numa espécie de jogo de referências que abrange a história do mundo e a do ser humano, esse impulso de “trair” — sexual e sentimentalmente —, umas vezes por puro desejo, outras por interesses confessados ou inconfessados.
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De que falamos quando referimos — ou praticamos — o adultério? Em Dicionário Sentimental do Adultério, Filipa Melo dá (quase) todas as respostas. Ao longo de um número considerável de entradas, organizadas de A a Z — começa em Abraão e termina com Zeus, o que não deixa de ser uma ironia —, a autora explica e relata, numa espécie de jogo de referências que abrange a história do mundo e a do ser humano, esse impulso de “trair” — sexual e sentimentalmente —, umas vezes por puro desejo, outras por interesses confessados ou inconfessados.
Logo na página 13, o significado de adultério é-nos apresentado da seguinte maneira: "uma relação sexual voluntária entre uma pessoa casada e alguém que não é o seu cônjuge.” Uma vez que o casamento é uma convenção — legal ou religiosa —, não será o adultério, tão somente, a quebra dessa mesma convenção? Adultério e infidelidade serão uma e a mesma coisa? (Sabemos que pode haver infidelidade sem adultério mas não adultério sem infidelidade.) O sexo extra-matrimonial terá implicações profundas a nível sentimental e psicológico ou será apenas um exercício — mais “aceitável” nos homens do que nas mulheres — ditado pelo instinto? Embora haja antropólogos e sociólogos — e cientistas — que defendem a ideia de que o ser humano é naturalmente, e essencialmente, poligâmico, a verdade é que o adultério, na maior parte das sociedades, tem sido condenado, com maior ou menor vigor através de leis, tanto laicas como religiosas, à luz de escrúpulos morais, de interditos sociais e de tradições arreigadas. Embora, hoje em dia, já ninguém vá parar à prisão por adultério — as mulheres, como sempre, foram as mais castigadas nesta matéria, chegando a ser punidas com a morte ou sujeitas a pressões e sevícias brutais —, o sexo dito “proibido” pode provocar devastação sentimental mas é, simultaneamente, uma das transgressões mais sedutoras e mais excitantes, como o demonstra Filipa Melo, ao longo de incontáveis exemplos, da Bíblia a Shakespeare, de Eça de Queirós a James Joyce, de Cleópatra à série televisiva Mad Men. O antigo mito platónico da procura da outra metade de cada ser humano — metades separadas pela ira de Zeus — poderá servir às mil maravilhas para justificar o adultério, uma vez que o adúltero e a adúltera podem sempre alegar “ainda não foi desta que encontrei o meu par, o outro eu que me completa, a 'minha cara metade', tenho de continuar a procurar", para explicar a ansiosa demanda.
E se considerarmos, cinicamente — ou realisticamente — o casamento (à luz da religião e das leis) e a fidelidade (de acordo com ideais românticos) como meras convenções — por razões económicas (heranças de filhos bastardos) ou pela tão apregoada “honra", que também estava ligada à defesa do património de cada um —, será mais fácil compreender como, em determinadas alturas da História, pontualmente, se tenham levantado os interditos e fomentado o adultério. Como exemplos, temos, na Idade Média, o breve interregno do “amor cortês” onde se punham em prática as “Leis de Cavalaria” que incluíam, para além de boas acções e uma obediência total dos cavaleiros às suas damas, a prática do adultério. Lord Byron, Shelley e o grupo de poetas e pensadores do início do Romantismo também pregaram e praticaram o “amor livre” — com consequências devastadoras para as mulheres que escolhiam acompanhá-los. Mais tarde, nos anos 60 do século XX, durante o Flower Power californiano que se espalhou pelos Estados Unidos e pela Europa — com consequências, também, funestas, como a eclosão da sida e o aumento exponencial de uso de drogas —, o sexo com um número infindável de parceiros tornou-se um imperativo.
Ao longo da História, é possível encontrar razões e causas para estes epifenómenos, geralmente relacionados com guerras — o resultado das Cruzadas na Idade Média, das Guerras Napoleónicas no século XIX, das duas guerras mundiais no século XX. O dizimar da população masculina permitiu que os homens tivessem múltiplas parceiras — e vice-versa — com álibis aceitáveis, tais como a glorificação da arte e da poesia no século XII, da liberdade individual no século XIX e do prazer sem limites no século XX.
Outro aspecto interessante do adultério poderá ser o impacto que sempre teve na literatura, com a aparição do romance moderno, um género essencialmente burguês — e o adultério é uma prática essencialmente burguesa, uma vez que está ligada à posse. Não é por acaso que duas das figuras mais marcantes do romance são mulheres, Ema Bovary e Anna Karenina, adúlteras castigadas brutalmente pela sociedade em que estão inseridas e destinadas a um fim trágico.
Na realidade, este dicionário é bastante mais do que uma enumeração de pecados e pecadilhos, de histórias, de mitos e de espreitadelas atrevidas pelo buraco da fechadura. Com notável sentido de humor e perspicácia, Filipa Melo cria um divertido e criativo tratado histórico e social, a que não falta o cunho muito pessoal, erudito e sarcástico da autora.