O Peter era uma grande besta, mas agora é “politicamente incorrecto”
Quando eu era muito jovem, ali entre a meninice da infância e a infantilidade da adolescência, havia na minha rua um rapaz que dizia muitos palavrões. E não estou a falar de anticonstitucionalissimamente, esternocleidomastóideo ou pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiose – estou a falar de palavrões a sério, daqueles que acabam em alho quando saem de uma boca irada e que terminam em asteriscos quando são impressos nas páginas de um jornal corado.
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Quando eu era muito jovem, ali entre a meninice da infância e a infantilidade da adolescência, havia na minha rua um rapaz que dizia muitos palavrões. E não estou a falar de anticonstitucionalissimamente, esternocleidomastóideo ou pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiose – estou a falar de palavrões a sério, daqueles que acabam em alho quando saem de uma boca irada e que terminam em asteriscos quando são impressos nas páginas de um jornal corado.
Lembro-me bem do dia em que o Peter “vamos chamar-lhe assim” Parker (se é para usar um nome fictício, que seja com estilo) se chegou ao pé de mim e me disse, naquele seu jeito espalhafatoso mas ao mesmo tempo ainda mais espalhafatoso, que tinha escapado à rasca de ser atropelado: “A p*** da velha fugiu, mas ainda a mandei p’ró c******, a preta de m****!”
Era assim que ele falava todos os dias, de manhã à noite, só que sem os asteriscos. Como se dizia na altura, o Peter era aquilo a que os especialistas em comportamento juvenil chamavam “uma grande besta”.
É claro que eu não fiquei calado. Que não se falava assim, muito menos se andava para aí no meio da rua a chamar pretas e velhas às pessoas, mesmo que quase nos tenham atropelado, com certeza foi sem querer, não vês que às vezes isso acontece. “Então ela não é preta? Olha, vai p’ró c****** tu também!”
Era amigo do seu amigo, o Peter. Dava tudo o que tinha e, caso o vazio dos companheiros só pudesse ser preenchido por património tangível, era até capaz de roubar o que não tinha. Mas, neste caso, não há como discordar dos especialistas: o Peter era mesmo uma grande besta.
Muitos anos depois, o Peter continua igual. Diz tudo o que lhe apetece e tem sempre uma ofensa preparada na ponta da língua, que exercita dentro da boca como se fosse a Nadia Comaneci do Ku Klux Klan. Como costumo dizer-lhe das poucas vezes que nos cruzamos, tens-te revelado um homem coerente e de convicções fortes.
Há uns dias encontreio-o num café. A ele e à namorada, a Mary “vamos chamar-lhe assim” Jane.
É claro que a Mary nunca diria que o Peter é uma grande besta – em vez disso, chamou-lhe “uma pessoa politicamente incorrecta”. Tive o cuidado de não assinalar a ironia, para não provocar sentimentos desagradáveis a um casal tão assertivo: então não é que “uma grande besta” se transformou em “pessoa politicamente incorrecta”? Modernices.
É um problema grave, que se tem alastrado pela sociedade e que envenena o discurso público e põe em causa princípios fundamentais da nossa democracia, como a liberdade de expressão: numa lógica profundamente moralista e a fazer-se de pudica, há grandes bestas que passaram a apresentar-se como pessoas politicamente incorrectas, e há grupos de neo-nazis e supremacistas brancos que se apresentam agora como alt-right. O Peter disse-me até que as pessoas já não mentem; limitam-se a apresentar factos alternativos.
A nossa sociedade não pode continuar neste caminho. Qualquer dia, as pessoas que não lêem as notícias até ao fim antes de escreverem uma parvoíce qualquer nas caixas de comentários vão deixar de se chamar analfabetos funcionais e passar a chamar-se utilizadores de redes sociais. (E digo isto no bom sentido e com todo o respeito, não vá alguém chegar ao fim deste texto e sentir-se ofendido.) Como esse risco é muito reduzido, aproveito este último parágrafo para me despedir de mim mesmo.