Quando coleccionar brinquedos se torna um caso sério
Carlos Anjos dedicou a vida a juntar brinquedos e nem ele sabe ao certo quantos tem. Para o Museu do Brinquedo Português de Ponte de Lima, escolheu quatro mil. Os mais antigos são relíquias oitocentistas em madeira ou lata, outros já nasceram na era do plástico.
Instalado no apropriado Largo da Alegria, num belo edifício do século XIX, a Casa do Arnado, e num local privilegiado da vila, na margem direita do rio, junto às pontes romana e medieval, o Museu do Brinquedo Português de Ponte de Lima (MBP) abriu as portas em 2012, após dois anos de obras de adaptação e de um investimento de cerca de 450 mil euros. É um museu recente, mas a sua colecção, que cobre um século de evolução do brinquedo português – desde as primeiras peças em madeira ou folha-de-flandres, produzidas ainda no século XIX, até meados dos anos 80 –, começou a ser construída há quase quatro décadas.
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Instalado no apropriado Largo da Alegria, num belo edifício do século XIX, a Casa do Arnado, e num local privilegiado da vila, na margem direita do rio, junto às pontes romana e medieval, o Museu do Brinquedo Português de Ponte de Lima (MBP) abriu as portas em 2012, após dois anos de obras de adaptação e de um investimento de cerca de 450 mil euros. É um museu recente, mas a sua colecção, que cobre um século de evolução do brinquedo português – desde as primeiras peças em madeira ou folha-de-flandres, produzidas ainda no século XIX, até meados dos anos 80 –, começou a ser construída há quase quatro décadas.
O homem que a reuniu, Carlos Anjos, consegue apontar o momento exacto em que foi irremediavelmente contagiado pelo vírus do coleccionismo. “Um dia, em 1980, fui a casa de um amigo que morava em Gondomar, o Carlos Magalhães, e ele tinha para lá meia dúzia de brinquedos que me chamaram a atenção porque tinha brincado com alguns iguais àqueles quando era miúdo”. Teve logo vontade de começar a coleccioná-los, sem imaginar que o que assim nascia de modo tão inocente, prometendo ser apenas um passatempo divertido e um pouco nostálgico, iria rapidamente tornar-se num caso muitíssimo sério. Começou a procurar brinquedos portugueses, e toda a documentação que lhes dissesse respeito, com uma paixão e energia tais que ao cabo de poucos anos a quantidade de peças que reunira era já tão extravagante que não havia casa, mesmo espaçosa, que a pudesse conter.
A inauguração do MBP, onde só foi possível fazer caber uma pequena parte (cerca de quatro mil peças) das dezenas de milhares de brinquedos que foi reunindo, representou também o fim de um longo período em que Carlos Anjos se viu dependente dos espaços que várias autarquias lhe foram arranjando para guardar a colecção, enquanto lhe prometiam um museu que acabava por nunca sair do papel. Uma situação que o levou a mudar algumas vezes de casa e de terra, para não se separar dos seus brinquedos.
Agora que conseguiu concretizar o sonho de ver o melhor da sua colecção devidamente exposto num lugar onde todos a podem apreciar, seria de esperar que gozasse o triunfo e abrandasse um bocadinho o ritmo. Mas dir-se-ia que até lhe deu novas energias. Com o museu de Ponte de Lima em velocidade de cruzeiro, quer agora abrir outro exclusivamente dedicado a brinquedos de plástico, e até já decidiu o sítio: “Devia ficar em Leiria, que entre os anos 50 e 70 teve para cima de uma centena de fábricas de plásticos”, diz, explicando que esta inusitada concentração se explica pela proximidade da indústria de moldes da Marinha Grande. Para já, enquanto não convence os autarcas de Leiria, vai ultimando um livro sobre os brinquedos de plástico portugueses, que se somará ao volume O Brinquedo em Portugal, que publicou em 1997 com o fundador e director do recém-encerrado Museu do Brinquedo de Sintra, João Arbués Moreira.
E basta visitarmos a nova casa de Carlos Anjos em Ponte de Lima, onde este guarda as aquisições mais recentes – uma parte em expositores envidraçados vindos de uma extinta perfumaria da rua portuense dos Caldeireiros, ainda com os seus rótulos da Gucci ou da Lancôme, o resto acondicionado em caixotes ou espalhado no chão da cave –, para nos persuadirmos de que a sua fúria coleccionista não dá o menor sinal de estar a esmorecer. De objectos de grande dimensão, como carros de pedais, triciclos, trotinetes, barcos, casas de bonecas ou cavalos de pau, passando por miniaturas de automóveis produzidas por fábricas portuguesas, como a Vitesse ou a Luso Toys, até brinquedos em madeira, bonecada diversa em plástico e PVC, há de tudo. Incluindo uma fiel miniatura de Pedro Abrunhosa, com os seus óculos escuros. “Foi feita nos anos 80 pela Vitesse, que é de um primo dele, o Francisco Abrunhosa”, conta Carlos Anjos.
Mas onde se consegue ter a verdadeira dimensão do gigantismo da sua colecção é no armazém onde guarda, e vai pacientemente inventariando, as reservas do museu. São filas e filas de estantes onde os objectos se distribuem por “famílias”, algumas delas totalmente ausentes da exposição permanente do museu, como as máscaras ou os livros infantis. Para já não falar de cerca quatro mil brindes da McDonald’s. Há que reconhecer que o estatuto de grande coleccionador e especialista ainda não o aburguesou. Tanto atravessa o país para ir comprar uma rara e valiosa peça do século XIX como junta entusiasticamente cartazes, copos, embalagens de cartão e recipientes de batatas fritas da McDonalds, e até os próprios papéis que vêm a embrulhar os hambúrgueres. “Ninguém liga a isto, mas daqui a dez anos já não vai ser fácil arranjar estas coisas”.
Um empurrão de Lanhas
Ao contrário do seu amigo João Arbués Moreira, que herdou brinquedos de família e já os coleccionava em criança, Carlos Anjos “juntava cromos e caricas quando era miúdo”, mas era quase trintão quando se tornou um coleccionador de brinquedos. Começou tarde e sem grandes recursos. A família regressara em 1975 de Angola, deixando para trás tudo o que tinha, e Carlos, que andava então pelos 24 anos, instalou-se na zona do Porto e foi trabalhando nisto e naquilo até conseguir entrar para a função pública como funcionário de tribunal, emprego que manteria até se reformar.
É nestes primeiros anos no Porto, onde frequentará a Escola Artística Soares dos Reis, que a já referida visita ocasional à casa de um amigo irá literalmente mudar a sua vida. Mas parte do mérito cabe ao arquitecto e pintor Fernando Lanhas, que então dirigia o Museu de Etnografia e História do Porto e que, sem o saber, ajudou a empurrar Carlos Anjos para o seu destino. “Esse meu amigo tinha um desdobrável feito pelo Lanhas, onde ele inventariava alguns fabricantes de brinquedos e dava as respectivas moradas”, explica o coleccionador. “Quando vi aquilo, disse ao Carlos: ‘Ó pá, a gente podia ir a estes sítios, a ver se ainda tinham alguns brinquedos’”. E foi isso mesmo que fizeram. “Corremos as fábricas todas e apanhámos coisas incríveis, brinquedos do tempo da guerra ainda por abrir, e eu ia comprando tudo o que encontrava”.
A operação foi tão bem sucedida que se tornou um problema, porque, por muito estranho que isso hoje pareça, com a eBay, a OLX e a profusão de feiras de velharias, em 1980 eram poucos os que coleccionavam brinquedos em Portugal, e mesmo esses não se conheciam uns aos outros. “Fiquei com uma quantidade enorme de brinquedos repetidos e não sabia o que lhes havia de fazer”, conta Carlos Anjos. A solução que encontrou foi começar a vendê-los na feira de velharias de Vandoma, no Porto. “Ia aparecendo malta que se interessava por brinquedos e eu tomava nota dos contactos deles”. Fez depois o mesmo na feira da Ladra, em Lisboa, onde conheceu João Arbués Moreira. Lentamente foi-se criando um círculo de coleccionadores, que começou a reunir-se em jantares seguidos de sessões de trocas, organizados por Carlos Anjos e pelo futuro director do Museu do Brinquedo de Sintra (a sua notável colecção está empacotada desde que o museu fechou as portas em 2014).
O passo seguinte foi organizar feiras de trocas. Promoveu dezenas, em vários locais. “Como ninguém ligava aos brinquedos portugueses, preferiam os Dinky Toys, eu andava pelos bazares a comprar grandes quantidades de brinquedos estrangeiros para os trocar pelos nossos”. No final dos anos 80, a colecção de brinquedos já tinha alcançado proporções tais que começou a pensar na hipótese de um museu. A primeira porta a que bateu foi a Câmara da Maia: “Estive por lá uns anos, com o Vieira de Carvalho a dizer que ia abrir o museu, mas nunca abriu, e eu um dia chateei-me com aquilo tudo e vim-me embora com os brinquedos sem dar cavaco às tropas”.
Voltou então ao Porto, onde o arquitecto Rui Losa, então responsável pelo CRUARB (Comissariado para a Renovação Urbana da Área de Ribeira/Barredo), lhe arranjou espaço para armazenar a colecção, enquanto o cenário de um futuro museu do brinquedo ia sendo negociado com a autarquia presidida por Fernando Gomes. “Tinha um edifício de cinco pisos na Ribeira, e ainda um armazém na zona da Batalha, tudo cheio de brinquedos”, diz. Mas, uma vez mais, o museu nunca passou das intenções, e quando Gomes perde para Rui Rio, Carlos Anjos deixou-se estar sem fazer muitas ondas: “Muitos vereadores nem sabiam que eu tinha na Ribeira um prédio inteiro à minha disposição”.
É nesta situação que se encontra quando recebe, em 2009, um telefonema de um vereador da Câmara de Ponte de Lima, Franquelim Sousa, a perguntar-lhe se não estava interessado em abrir lá o museu. Estava, claro, embora receasse uma nova decepção. “Puseram-me à disposição uns camiões, carreguei tudo para Ponte de Lima, e depois foram mais dois anos para montar o museu”, resume.
O soldado que recuperou a perna
Visitar o “seu” museu guiado por ele é um privilégio, porque Carlos Anjos tem uma excelente memória e recorda as circunstâncias em que adquiriu cada peça. Por exemplo, ao passarmos por um soldado em folha dos anos 30, que está com um joelho em terra a manobrar um canhão, conta que quando o comprou, no Porto, vinha sem a tal perna flectida. “Fui encontrá-la anos depois em Penamacor, quando andava a vasculhar, quase às escuras, uma data de brinquedos que um homem tinha numa adega sem luz eléctrica”.
E uma bela mota com side car produzida em Ermesinde, em 1945, por um dos grandes fabricantes portugueses de brinquedos em folha, Luciano Moura, foi adquirida em Londres a um vendedor que insistia que a peça era francesa.
Mas a história de que Carlos Anjos mais gosta é a do modo como entrou na posse de um raríssimo carro de bombeiros em madeira fabricado por um dos pioneiros da arte, Carlos Lopes. Numa visita ao seu filho, e também fabricante de brinquedos, Alcino Moutinho, o coleccionador viu a peça toda desfeita no caixote do lixo e perguntou se a podia levar. “Voltei lá depois com o carro todo montado e limpo, e ele ficou tão sensibilizado que me ofereceu um outro que lá tinha, e agora estão aqui os dois em Ponte de Lima”. Um dos espaços visitáveis do museu, que já recebeu mais de cem mil visitantes desde a sua inauguração, é justamente a oficina onde Carlos Anjos restaura os brinquedos. “Sempre tive jeito para arranjar coisas”.
Mas estamos a adiantar-nos, que o percurso começa na sala da bilheteira, onde se expõe um único brinquedo, que o coleccionador admite ser o seu preferido: um grande carro a pedais, com acabamentos de luxo, produzido nos anos 40 pela prestigiada Fabrinca, de S. João da Madeira. Carlos Anjos diz que não conhece outro igual.
A primeira paragem da visita é num pequeno auditório onde se exibe um filme que mostra a evolução da indústria do brinquedo em Portugal. O restante rés-do-chão – todo o museu está concebido de modo a dar ao visitante a sensação de que se passeia pelas carruagens de um desses comboios de brincar em zinco – é dedicado aos fabricantes nacionais, organizados por ordem cronológica, desde os últimos anos da monarquia até à adesão à CEE, em 1986, quando a livre circulação de produtos e a imposição de regras de segurança mais rígidas no fabrico de brinquedos veio ditar o declínio da frágil e conservadora indústria portuguesa do sector. Esta primeira parte do percurso termina precisamente com duas vitrinas em que se comparam brinquedos estrangeiros com as suas geralmente menos sofisticadas réplicas portuguesas.
Prò menino e prà menina
No segundo andar, a cronologia mantém-se, mas as peças estão agora agrupadas em grandes períodos, com uma primeira sala que vai até ao final dos anos 20, mostrando uma extensa colecção de pioneiras peças em madeira, folha ou pasta de papel. A segunda abarca os anos 30 e 40, em pleno Estado Novo, e mimando a educação pelo género imposta pelo regime, está divida em duas longas vitrinas: uma dedicada aos meninos, com os seus carrinhos e brinquedos bélicos, a outra às meninas, com os electrodomésticos e serviços de louça.
O núcleo relativo às décadas de 50 e 60 coincide com a revolução do plástico e mostra como nos brinquedos desta época os materiais tradicionais foram coexistindo com a nova e maleável matéria-prima, e por vezes num mesmo objecto. E chega-se finalmente aos anos 70 e 80, com os seus bonecos em PVC e os carrinhos à escala 1/43.
Mas não é ainda o fim do trajecto: faltam três salas temáticas, respectivamente dedicadas aos soldadinhos – um mini-Mussolini de braço erguido e um mini-Hitler a fazer a saudação nazi dirigem as miniaturais tropas do Eixo –, a instrumentos musicais e outros brinquedos que produzem sons, e a jogos de todo o tipo, do velho prego de brincar na praia, que foi desaparecendo dos areais portugueses após o 25 de Abril, a baralhos de cartas, jogos de tabuleiro, ou a esses cubos-piões que serviam para o outrora popular jogo do rapa, com as suas quatro faces a ostentarem as consoantes R, T, D e P, iniciais de “rapa”, “tira”, “deixa” e “põe”).
Tudo visto, volta a descer-se, atravessa-se um jardim onde Carlos Anjos tentou sem êxito instalar um carrossel antigo e um pequeno comboio para transportar crianças, e entra-se numa sala onde os mais pequenos podem brincar, enquanto os mais crescidos se espantam com uma maquette de cidade que ocupa 18 metros quadrados e tem tudo o que se possa imaginar: prédios ao estilo da arquitectura modernista dos anos 50, uma estação de onde partem sete linhas de comboio, um parque de campismo, candeeiros de rua e semáforos acesos, e ainda pormenores tão requintados como uma casa a arder, já com vários carros de bombeiros a tentar debelar as chamas, de cujo telhado esburacado e enegrecido sai um clarão vermelho e fumo. “Passei aqui muitas horas de cócoras a montar isto, e um dia, ao levantar-me, senti um estalo num joelho e vi logo que estava tramado, tive de ser operado e tudo”. O que vale é que o acordo que assinou com a Câmara de Ponte de Lima vigorará pelo menos até 2025, de modo que tão cedo não se arrisca a dar cabo do outro joelho.