Na Praia de Lavadores há um laboratório geológico ao ar livre

Um património geológico natural riquíssimo, uma herança da tradição da seca do bacalhau e uma biblioteca em cima da praia. É na Praia de Lavadores.

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A Praia de Lavadores, na freguesia de Canidelo, em Vila Nova de Gaia, é um local riquíssimo, não só pela história das suas gentes dedicadas à pesca e à seca do bacalhau, como pelo património geológico ao ar livre que deve e merece ser visitado.

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A Praia de Lavadores, na freguesia de Canidelo, em Vila Nova de Gaia, é um local riquíssimo, não só pela história das suas gentes dedicadas à pesca e à seca do bacalhau, como pelo património geológico ao ar livre que deve e merece ser visitado.

A paisagem transformou-se drasticamente ao longo dos últimos anos, com uma marginal renovada, com um passadiço junto ao mar, num local onde outrora chegavam os navios bacalhoeiros vindo dos Grandes Bancos da Terra Nova. A pesca do bacalhau dava sustento às gentes da terra, sobretudo às mulheres que se ocupavam da sua preparação em terra, primeiro a lavá-lo e depois a secá-lo. “Era uma vida muito dura”, conta Domingas que cresceu junto à Foz do Douro e com uma vida sempre ligada ao mar – o pai era pescador e a mãe trabalhava na seca do bacalhau.

“O bacalhau não dava grande fartura. Lembro-me da minha mãe ganhar 25 escudos por uma semana de trabalho. Não dava para nada”, recorda. Até porque a seca do bacalhau não dava para o ano todo e, além disso, dependia muito das condições meteorológicas.

Foto 1: Seca do bacalhau

Destes tempos restaram poucos vestígios. Do antigo espaço com cerca de 15 hectares, onde se preparava a seca do bacalhau e que foi mandada construir nos anos 40 pela Sociedade Nacional dos Armadores do Bacalhau – SNAB,  resta apenas um antigo armazém de bacalhau, agora em ruínas, e um depósito de água que abastecia a piscina da Casa de Comando onde morava o capitão e que funcionava como posto de vigia, conta Fernando Santos, nascido e criado aqui.

Nesta época foram construídas casas, creches e uma capela, tudo para servir aqueles que ali trabalhavam – seriam cerca de mil trabalhadores. Fernando Santos recorda-se dos tempos da escola e de muitas histórias nos dias em que via a mãe trabalhar na seca do bacalhau (por lá ficou mais de 20 anos). “Havia pessoas que iam para a praia apanhar o bacalhau que era atirado pelos funcionários que o colocavam propositadamente pelos canos que desaguavam no mar”, conta. Domingas recorda-se que chegava a esconder bacalhaus para trazer para casa. Era a única forma de poderem comer o que garantia o sustento e matava a fome de tantas famílias.

Dos tempos da seca do bacalhau permanece a Capela de S. Pedro de Lavadores, construída em meados do séc. XX (anos 50), um local de culto que surgiu para apoiar os que trabalhavam nesta atividade que perdurou até ao ano 2000 e que foi esmorecendo após os anos 60, quando chegou a seca artificial (a seca do bacalhau era manual e passou a ser feita com recurso a máquinas).

A capela, que tem o S. Pedro e Nossa Senhora da Conceição como padroeiros, destaca-se pelo seu estilo arquitetónico moderno e pelos elementos ligados ao mar, tanto na sua forma exterior a fazer lembrar uma concha, como o vitral ao lado do altar-mor representando Jesus e os discípulos na barca. Nos terrenos junto à capela, onde existia um centro médico e um refeitório, nasceu o moderno Centro Paroquial de Canidelo.

Laboratório geológico ao ar livre

Se as pedras falassem, a Pedra Moura, um dos ex-líbris do património geológico de Lavadores teria com certeza muitas histórias para contar. Reza a lenda que, neste lugar, existia uma moura encantada sobre a qual tinha sido lançada uma maldição e que, por causa disso, tinha que transportar, desde o fundo do mar, uma série de rochedos, empilhados na cabeça, até ao areal da praia. Um desses penedos era tão grande que a moura colocou-o num lugar onde fosse difícil o mar chegar. Diz a lenda que depois desse último esforço a moura nunca mais foi vista em Lavadores. Este penedo era a Pedra Moura. Esta é a versão apresentada por Joel Cleto no III volume do livro Lendas do Porto, haverá certamente outras versões e muitas lendas associadas à figura da moura.

A Pedra Moura integra este autêntico património geológico ao ar livre, com cerca de 300 milhões de anos de história. Situado na fronteira entre a zona Centro Ibérica e a Zona de Ossa Morena, foi a fragilidade da crosta terrestre nesta região de fronteira geotectónica que permitiu que o granito de Lavadores se instalasse e onde se podem ver os blocos de pedra que se vão fragmentando em pequenos pedaços.

Foto 2: Pedra Moura

Este maciço granítico tem início no Cabedelo e estende-se para sul até à Praia das “Pedras Amarelas”, em Lavadores, num total de 25 quilómetros de comprimento e quatro quilómetros de largura, sendo composto por rochas magmáticas, isto é, rochas formadas a partir do magma proveniente do interior da Terra que, com o tempo, foi ascendendo até regiões próximas da superfície, arrefecendo e solidificando.

Destaca-se na paisagem natural pela sua tonalidade rósea onde é possível observar cristais de feldspato potássico de grandes dimensões (megacristais) que se formam devido ao arrefecimento lento do magma que está na origem destas rochas – existem, aliás, locais onde se acumulam em grande quantidade, constituindo enxames de megacristais.

Nas rochas de Lavadores é possível observar outros fenómenos como os encraves ou xenólitos – identificam-se pela sua cor escura e forma arredondada ou elipsoidal – ou os filões de quartzo e feldspato que cortam verdadeiramente as rochas por onde passam. São semelhantes a uma cicatriz provocada por uma solidificação mais recente, distinguindo-se visualmente do contexto circundante.

Foto 3: Megacristais e encraves das rochas de Lavadores

Foto 4: Filões de quartzo e feldspato

Percorrendo a pé a Praia de Lavadores é possível observar formas graníticas distintas que “resultaram dos fenómenos de meteorização e erosão, em particular os que decorreram da acção da água do mar e dos ventos litorais”, explica o docente de Geologia Paulo Rocha. “Destas geoformas, destacam-se uma plataforma de abrasão, as marmitas litorais, os blocos graníticos, os caos de blocos, os tafoni, as pedras-boroas, um arco litoral, entre outras”, continua o mestre em Geologia para o Ensino pela Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP).

Foto 5: Marmitas litorais

Neste laboratório geológico natural, ao ar livre, “é possível estudar, conhecer, compreender e consolidar muitos dos conteúdos lecionados no ensino básico, secundário e superior”, adianta Paulo Rocha, até porque “o maciço granítico possui particularidades ao nível da mineralogia, da petrologia, da geoquímica, das relações espaciais, entre outros aspetos”, que atraem estudantes e investigadores de vários pontos do país e do mundo, que aqui podem realizar os seus trabalhos de investigação.

Para preservar este património geológico é preciso continuar a estudar os elementos em constante mutação do local, dar a conhecer a sua riqueza e criar condições para que quem visita este local, nomeadamente com a colocação de painéis informativos e a criação de um percurso interpretativo que “permitisse a obtenção de toda a informação sobre a área e, igualmente, promovesse a realização de visitas guiadas”, defende António Guerner Dias, docente da FCUP. Esse trabalho poderá ser feito em articulação entre a faculdade e o “poder local que possa garantir o suporte financeiro e logístico para as iniciativas que se pretendem desenvolver”, afirma, promovendo, desta forma “a literacia científica e alertando para a preservação do património”.

O primeiro passo nesse sentido já foi dado com a organização de passeio geológico orientado pelo docente de Geologia Paulo Rocha, em parceria com o Café Bar A Mar, situado mesmo em frente ao maciço granítico. Uma iniciativa que será certamente para repetir, garante José Eduardo Teixeira, um dos responsáveis do A Mar, que, no entanto, lamenta a falta de apoios para permitir classificar a zona geológica e fazer a sinalização necessária do percurso.

Todo o tipo de iniciativas, sejam públicas ou privadas (por exemplo, o programa Geologia no Verão ou as aulas na Universidade Sénior), que contribuam para a divulgação do património geológico e, ao mesmo tempo, para a consciencialização da importância da preservação desta riqueza natural são bem-vindas, conclui António Guerner Dias, diretor do Departamento de Geociências, Ambiente e Ordenamento do Território da FCUP.

Poesia com vista para o mar

Em cima da praia, com vista para o património geológico que faz parte desta paisagem natural da Praia de Lavadores, em Vila Nova de Gaia respira-se literatura e poesia inscrita nas vitrinas do Café Bar A Mar, onde pode ler-se o poema “O olhar mais lindo do mundo”, da autoria de Adélia Carvalho e com ilustração de Anabela Dias.

No interior há uma pequena biblioteca com mais de uma centena de livros, de literatura portuguesa, estrangeira e infantil. Pode pegar num livro e ler ali mesmo ou levá-lo para a praia e devolver no final do dia.

Na segunda quinta de cada mês há ainda sessões de poesia, nas quais pode levar os seus poemas para partilhar com o público. José Eduardo Teixeira e o sócio Paulo Araújo querem que este seja mais do que um simples bar de praia, querem “um espaço de proximidade com a parte cultural e recreativa, com ligação aos grupos recreativos da região”.

De Trás-os-Montes, de onde é natural José Teixeira, chegam os produtos da região para a mesa, onde não falta o pão rústico para as tostas e torradas, o Folar de Mirandela, o Pastel de Chaves. Se ainda não é suficiente para abrir o apetite há mais: queijos e presuntos servidos em tábuas de xisto, montaditos, conservas variadas, saladas e, para beber, cocktails, sumos de fruta naturais, e ainda vinhos do Douro e do Porto para brindar ao por do sol.