“O estado de paixão é perigoso para escrever uma biografia”
O que leva alguém a ser biógrafo? Maria Antónia Oliveira apaixonou-se pelo género quando estava a escrever a biografia de Alexandre O'Neill. Quando lhe perguntam qual a sua profissão, gostaria de poder responder biógrafa. Em Portugal é complicado, mas já escolheu o próximo biografado: Cesário Verde.
A conversa ocorre poucas semanas antes dos 31 anos da morte de Alexandre O’Neill. Não é um número redondo, mas foi no Verão, a 21 de Agosto, muitos dos amigos do poeta estavam de férias. Maria Antónia Oliveira já arrumou os livros por agora. Ela é a biógrafa de O’Neill (Alexandre O’Neill: Uma Biografia Literária). Não se importa que lhe chamem assim, mas não quer ser biógrafa de um só biografado. Já não vive no bairro do poeta, mudou-se para outro lugar, mas permanece na cidade sobre a qual irá continuar a escrever quando voltar às vidas de outros escritores. A geografia importa, como a poesia, o tempo, o quotidiano. Ela é uma curiosa que gosta de se evadir nas existências alheias para criar narrativas em que se descobre a si mesma. Acende o cigarro, enche um copo de vinho branco gelado, deixa entrar o ar pela janela e o som da vizinha com o neto pequeno. O mundo privado de Maria Antónia Oliveira está cheio de contágios das vidas dos outros. Deixa-se seduzir por elas para as contar segundo regras e uma tradição que não é portuguesa. Ou não era.
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A conversa ocorre poucas semanas antes dos 31 anos da morte de Alexandre O’Neill. Não é um número redondo, mas foi no Verão, a 21 de Agosto, muitos dos amigos do poeta estavam de férias. Maria Antónia Oliveira já arrumou os livros por agora. Ela é a biógrafa de O’Neill (Alexandre O’Neill: Uma Biografia Literária). Não se importa que lhe chamem assim, mas não quer ser biógrafa de um só biografado. Já não vive no bairro do poeta, mudou-se para outro lugar, mas permanece na cidade sobre a qual irá continuar a escrever quando voltar às vidas de outros escritores. A geografia importa, como a poesia, o tempo, o quotidiano. Ela é uma curiosa que gosta de se evadir nas existências alheias para criar narrativas em que se descobre a si mesma. Acende o cigarro, enche um copo de vinho branco gelado, deixa entrar o ar pela janela e o som da vizinha com o neto pequeno. O mundo privado de Maria Antónia Oliveira está cheio de contágios das vidas dos outros. Deixa-se seduzir por elas para as contar segundo regras e uma tradição que não é portuguesa. Ou não era.
Todas as vidas podem dar um livro?
É uma questão muito pertinente da biografia. [Gilbert Keith] Chesterton tem uma biografa de Dickens em cujo prefácio diz: “Nesta era da igualdade, todos os homens merecem uma biografia.” Muitas vezes acordo a pensar que todo o indivíduo merece uma biografia, o problema está na arte de a contar; a coisa toda está nessa palavra porca, como diz o [Julian] Barnes, que é a arte. Toda a gente merece uma biografia? Não sei. Interesso-me mais por biografias de escritores e penso na vida do escritor de quem se sabe ser apenas casa-trabalho, trabalho-casa. A vidinha, uma vida que não tem história. É muito mais difícil escrever sobre isso, mas é tudo uma questão de arte.
Qual é a arte da biografia?
É dar a ilusão de vida. Há uma parte de investigação, de pré-produção da escrita, que é procurar arquivos no sentido mais lato, papéis, fotografias, filmes, ler as entrevistas, e depois ir nos passos do biografado, ou seja, visitar os lugares que ele visitou, em que viveu ou com que sonhou, que podiam ser locais míticos para ele. Acho muito importante a geografia do biografado. Se possível, entrar na casa e olhar o mundo a partir da varanda dele. Por não poder fazer isso não escrevi a biografia do Camilo Castelo Branco; sei que o território do Camilo é o Norte. Nasceu em Lisboa, mas a partir dos dez anos tudo se passou no Norte. Quando ele fala em x léguas para ir de Viana não sei onde, tenho de saber a que corresponde essa paisagem. Eu estive lá, a luz é diferente. Tem de se ir, de se estar. É importante para depois conseguir dar ao leitor essa tal ilusão de vida.
Usa a palavra ilusão. É diferente de verdade.
Sim. A verdade está nos factos. Como dizia a Virginia Woolf, o granito são os factos e a biografa é juntar o granito e o arco-íris. Ela dizia mesmo que tem de se manipular os factos. Manipular no sentido de mão, de lhes dar vida, por se estar a ressuscitar um morto e um mundo; tem de se dar vida a esse mundo.
Fala de biografados mortos.
Estou sempre a falar de biografados mortos, porque biografados vivos... percebo que se faça, mas acho bastante complicado. É ter um papagaio de pirata sempre a tentar controlar. Se alguém me dissesse “Pode dizer tudo o que quiser”, soava-me logo um alarme. Nunca se pode dizer tudo. E é normal que assim seja, porque é a vida das pessoas. A verdade é uma espécie de luz, não é muito fácil de determinar, porque a biografia é um trabalho melancólico.
Como assim?
Porque é preciso assumir que a biografia não é a vida. A vida é a vida e a biografia é um livro, uma representação da vida, portanto é sempre lacunar. Não se pode pensar que se vai saber tudo sobre a pessoa, tudo o que lhe aconteceu e que ela foi. Há coisas que escapam. Mas tem de haver essa espécie de ingenuidade...
De achar que se chega lá?
Isso. Tem de ser um trabalho de rigor, sério, e de persistência, de seguir uma pista e, se não der, voltar atrás. Imagino uma mesa enorme com os factos todos, como as exposições de droga da polícia; tudo muito arrumadinho. Como é que pego naquilo para dar uma narrativa? Para mim, uma biografa é uma narrativa factual. Há na biografia um pacto de verdade com o leitor; o leitor tem de acreditar que estou a escrever a verdade. Por isso estão lá as notas todas de rodapé, mesmo que o leitor não as leia. São o garante, a caução de verdade. E claro que a biografa é especulatória, mas é preciso que esteja lá escrito de alguma maneira ou implícito, quando estou ou não a especular.
E a parte da ilusão de vida?
A parte da ilusão é a parte da escrita. É escrever como um romance. E é aí que a biografia vai buscar muitas técnicas à ficção.
Está-se também sempre perante outra forma de ficção, a fragilidade e as nuances da memória para contar a vida de alguém o mais próximo possível da verdade?
A memória é complicada. Mesmo a do próprio, que ele deixou. Em 1983, o Alexandre O’Neill fez uma cronologia para uma namorada. Eu devia confiar naquilo, na fonte primária. É ele a dizer. Depois descobri que ele tinha mentido. Está lá que acabou o curso de liceus. Não acabou nada. Fui investigar e não tinha acabado. Por que raio um homem destes, ao fim da vida, precisa de mentir, quando há tantos génios que não acabaram o liceu e eram maus alunos? Acho que foi porque teve de mentir aos pais e depois teve de aguentar a mentira e foi por ali na vida e aquilo tornou-se uma verdade. Mas está-se sempre a lidar com a memória. Se se fizer a biografia de alguém morto recentemente, há um rasto, de amigos, de histórias, e é preciso ir lá, pôr o microfone. A entrevista é muito complicada, porque se está também a lidar com luto e pode ser doloroso despertar a memória.
Alguma vez sentiu estar a despertar esse tipo de memória?
Há uma história com a Noémia Delgado [realizadora, primeira mulher de Alexandre O’Neill]. A casa da Rua do Jasmim, que entra num poema, a certa altura vagou. As freiras do Convento dos Cardais eram as senhorias e sugeri-lhes ir lá com uma pessoa tinha vivido ali. Levei a Noémia. Achava que o lugar lhe ia despertar sensações e memória. Foi um desastre. Ela não conseguiu articular. Entrou, suspirava, dizia frases soltas, palavras incoerentes, mas não consegui nenhuma informação. Não havia discurso, só emoção. E com a mesma Noémia tive uma surpresa, já estava a acabar a biografia. O nosso convívio era de eu a levar a passear e ser amiga dela, já não falávamos do O’Neill, ela tinha dito tudo. Mas era Carnaval, passeávamos e ela viu uns miúdos a brincar com umas pistolas de água e disse que se tinha lembrado de uma coisa que me contaria depois. Tinha que ver com uma pistola de água. Ela era jovem e estava a ser requisitada por vários pretendentes. Retirou-se para Sintra para pensar e o O’Neill apareceu-lhe com uma caixinha com uma pistola de Carnaval em prata a dizer que se ela se queria suicidar que fosse já. Ela achou aquilo de um homem cheio de humor e foi assim que decidiram casar-se.
A história acabou por iluminar a biografia?
Sim. Ainda por cima a pistola é um objecto-fetiche surrealista, e ele tem um poema O revólver, “querem fazer de mim o revólver de trazer por casa...” Funcionou essa memória espontânea. Trabalhar com a memória é trabalhar com uma das coisas mais frágeis. Mas a biografia é também a preservação da memória.
Porque temos tão pouca tradição de biografia em Portugal?
Não temos tradição. Espanha também não, Itália também não. França tinha os elogios fúnebres, mas são outra coisa, uma homenagem. A biografia tem que ver com o indivíduo, é a história de um indivíduo. A Inglaterra é a pátria do individualismo e tem uma forte tradição biográfica. Não sei se a pouca tradição em Portugal não terá que ver com o catolicismo. Uma vez falava disso com uma amiga biógrafa, catalã, e falou-se das ditaduras. Fazem com que as pessoas se fechem para falar. Mas há uma certa maneira de viver que tem que ver com a cultura católica, que não propicia a biografia; há um fechamento. E temos muito pouca cultura do indivíduo.
Como decidiu contar as vidas dos seus biografados?
Tinha escrito um livro sobre o Alexandre O’Neill, um ensaio, e alguém que me disse: “Deixa-te lá de escrever ensaio, não estás farta da sinédoque e da metáfora? Escreve mas é a biografa do O’Neill.” Na altura já estava a deixar o ensaio, tinha feito uma edição do [Mário] de Sá-Carneiro, achava o discurso ensaístico estéril e chato. Levei a sério a proposta e fiz a biografia.
Quanto tempo demorou?
Cinco anos. Não em exclusividade, é impossível em Portugal. Era professora universitária.
Como evoluiu a relação com o O’Neill depois de entrar na vida dele?
Não sabia que iria ser tão intenso. Passo a vida a deitar-me para fora de pé. Comecei a investigar e começou a avolumar-se. Sou algo obsessiva e aquilo tem um carácter muito obsessivo. É uma pessoa a instalar-se na nossa vida. Mas gosto disso, é o que me apaixona. Esse tal vaivém entre o meu mundo e o mundo dele, entre a pessoa dele e eu. E há sempre duas subjectividades, uma coisa que na biografia é um bocadinho negada. Quando se vai à livraria comprar uma biografia, não se vai ao nome do biógrafo, mas ao do biografado. O biógrafo é suposto apagar-se e estar apenas nas notas de rodapé.
Há excepções.
Há, mas são recentes e as antigas são experimentais. A biografia é um género um bocadinho conservador. “A marquesa saiu às cinco horas...” E o biógrafo apaga-se.
Foi descobrindo que estava a entrar naquela biografia, que não se estava a apagar?
Fui descobrindo, tinha não só de procurar uma cronologia, mas também uma personalidade. Era como se tivesse uma fotografia desfocada que ia focando cada vez mais e começava a ver pormenores; como estava vestido, qual o gesto, quem estava à frente dele, atrás, e a fotografia ficava cada vez mais nítida. E isso demora, é mesmo assim. É um processo obsessivo que me ajuda também a compreender a mim própria. É um alívio sair de mim própria. Neste momento já ando aqui há 52 anos, e na altura havia 30 e tal, estava farta. Quando volto, sei mais sobre mim. Senti isso e muitos biógrafos dizem o mesmo.
Pode descrever esse processo?
Temos de entrar dentro de uma pessoa sem deixarmos de ser nós. Talvez como um actor. E sou mulher e ele era homem. é preciso compreender o que é estar doente e saber que o fim se aproxima. Isso amadurece-nos muito. Tive um grande elogio do meu pai que me disse: “Percebeste muito bem o que é ser velho e estar doente.” Não há muita gente que goste disso, sair de si mesmo. Mas acho saudável. Richard Holmes, um biógrafo de que gosto muito, diz que a biografia é um género humanista por causa disso, a procura do outro que reverte indirectamente a favor de quem a escreve.
Falava de duas subjectividades na biografia. Tentou apagar a sua?
Acho que não me apaguei. Fui eu que escrevi. Se der toda a informação que recolhi a outra pessoa, ela fará uma biografia completamente diferente. Estou muito ali.
A sua relação com O’Neill era de leitora?
Era. E ensaísta. Em 1999 continuava a não haver nenhum livro sobre ele. O O’Neill era um bocadinho mal-amado. Estava a começar a escrever e perguntavam-me se eu gostava do O’Neill. Sempre foi lido, mas pouco compreendido pelos pares, acho. Gostava da poesia dele, embora não tenha nada a ideia de que seja o maior poeta português. A minha relação com ele nunca foi de paixão. Nem no sentido de paixão pela poesia, nem pela pessoa ou personalidade. Aliás, acho que o estado de paixão é um bocado perigoso para escrever uma biografia. Há o risco de se fazer uma hagiografia. Mas a dada altura descobri em mim uma certa identificação com ele, a ideia de um individualismo muito forte, feroz mesmo, e às vezes um bocado cruel.
Pode-se contar tudo numa biografia ou há coisas onde não se entra, censura?
Há, mas não chamo a isso censura. Tem que ver com a minha sensibilidade enquanto biógrafa e também haver pessoas vivas que o acompanharam, descendentes, gente que o conheceu. Quis subtrair o O’Neill à ideia de que havia dele, aos tais mitos. Era uma pessoa que não se levava a sério, é uma parte que admiro, mas claro que tem o reverso da medalha: se não nos levamos a sério, não nos levam a sério. Queria subtraí-lo a isso sem o branquear. Também não queria falhar a imagem dele, a imagem e a pessoa. Houve coisas que soube e não contei por achar que eram redundâncias. E uma bisbilhotice.
Biografia é bisbilhotice?
O biógrafo é um bisbilhoteiro. Espreita pelo buraco da fechadura. O biógrafo é voyeur, ouve o que quer e o que não quer. E depois há uma parte muito importante: a selecção, o que deitar fora. Não tem apenas que ver com ser sumarento ou não. Veja-se o exemplo da Virginia Woolf, há biografias só com o pequeno-almoço que tomou no dia tal. O que é que isso interessa? Se se quer dar ilusão de vida, não pode haver tecido morto. A manipulação dos factos, o tratamento e a selecção têm de obedecer a essa linha narrativa. A parte mais ou menos sensacionalista foi escolha minha. Janet Malcolm, a jornalista que escreveu sobre a [Sylvia] Plath, diz que o biógrafo se assemelha a um arrombador, que abre a gaveta, tira as jóias e sai para a rua agitando-as para toda a gente ver. Eu vejo a biografia mais como uma coisa de sair de si e voltar a si, mais como humanismo do que bisbilhotice. Mas também é.
Vale perguntar tudo?
Tudo. E há coisas que dizem sem que seja preciso perguntar. “Desligue lá o gravador”, quando pedem isto lá vem trapalhada.
O que faz a essa trapalhada?
Está lá. Não está é ipsis verbis.
Alguma vez se zangou com o O’Neill?
Zanguei. Deu-me uns ataques de feminismo. Já estava farta de histórias com mulheres. Não é que ele fosse especialmente femeeiro. O José Fonseca e Costa disse-me: “Nós éramos assim! Educados de que podemos fazer, mas elas não.” Tenho sempre de pensar que aquilo era uma época, não se faz biografia a fazer juízos a partir de valores actuais.
Não se pode especular?
A especulação é necessária e recorrente, mas é uma especulação dentro daquele tempo. Se se sai, começa-se a romancear.
Fala de vida privada...
Sim. Uma biografia sem vida privada é uma chatice.
Qual a diferença entre íntimo e privado?
O privado é o que se passa dentro de casa; o íntimo é o que se passa só connosco.
Entrou no íntimo?
Acho que entrei. Queria dar o íntimo sem exibir. Queria a biografia de um escritor que falasse da obra dele, mas que entrasse no privado. Queria dar a íntima personalidade sem contar pormenores íntimos.
Confessou que partiu um pouco ingénua para a biografa do O’Neill. Levava algum modelo de biografia?
Não. Tinha lido biografias quando era mais jovem, e ia lendo, mas muito pouco. Em 1999 quase não havia Internet, para comprar livros estrangeiros havia a Buchholz e pouco mais. Fui aos poucos, comecei um bocadinho por intuição e a pesquisar, a ler biografias, umas atrás das outras. Foi uma coisa muito autodidacta, muitas horas de pesquisa tanto de teoria como de biografia. Hoje tenho uma razoável biblioteca de teoria da biografia. Toda a teoria da biografia é feita pelos próprios biógrafos. É uma reflexão sobre a experiência. Ao contrário, por exemplo, do romance ou da poesia. Há muita gente a escrever sobre poesia sem nunca ter escrito um poema e há poucos romancistas que escrevem teoria do romance. O [David] Lodge faz isso, mas ele é professor de Literatura. Nos biógrafos isso é diferente e agrada-me.
Um bom biógrafo é um bom escritor?
É bom que seja. É como um romance verdadeiro, como lhe chama Roland Barthes.
No romance não há pacto de verdade com o leitor.
Não. Acerca da ficção temos a célebre expressão de Coleridge: suspensão voluntária da descrença. Na biografia temos uma espécie de imposição da crença. Depois há a minha liberdade, mas sobretudo a minha sabedoria, as peças com que vou fazer o puzzle. Na ficção tudo se passa dentro da cabeça.
Começa a biografia pela morte. A morte dá pistas sobre a vida?
No meu caso foi uma opção para passar depois a contar a vida. A morte só dá pistas se for sobre um suicida. Os suicidados são muito biografados. A [Sylvia] Plath, a Woolf... Há um mistério e os biógrafos acham que o vão resolver, aproximar-se da resolução. Mas volto ao que é para mim o perigo dos biografados vivos.
A vida de uma pessoa só está completa com a morte.
Contar uma vida que ainda não se completou é complicado. Na morte encerra-se um ciclo. Caso contrário, há sempre um “e depois?” Isso só não me chega. Talvez a biografia seja bastante clássica e conservadora: há um desenlace.
E quando parou de perguntar “e depois”?
Quando me encontrei com uma pessoa e ela me disse: “Já sabe mais do que eu sobre ele.” Foi quando comecei a escrever, porque a tentação é continuar a perguntar. Tem de se assumir que a biografia é lacunar, precária e perecível. Porque é que há tantas biografias do Oscar Wilde? Porque cada época o olha de uma maneira diferente. Se a uma subjectividade diferente se juntar mais uns anos, sai outro livro.
Houve uma segunda biografia. Diferente.
Voltei a deitar-me para fora de pé. A segunda foi-me encomendada e foi de um não humano, a de uma escola, o Ar.Co. A encomenda veio de uma pessoa que já estava fora do Ar.Co, de outro modo não aceitaria, seria como fazer um biografado vivo. Tive de fazer uma opção que me custou: entrar na ficção. O Ar.Co fazia 40 anos, encarei-o como uma pessoa de 40 anos; um indivíduo com uma personalidade. Demorou muito tempo. Nunca quis perder o tal pacto de verdade.
Ser biógrafo é uma profissão?
Eu esperava que sim. Em Portugal não me parece. Não gostava nada de ser só a biógrafa de... claro que sou a biógrafa do O’Neill; não me chateia nada que me chamem assim, mas agora vou começar outra biografia. Estou a precisar novamente de escrever biografia e de me evadir. Isto também é um bocadinho uma evasão.
Evadir para onde?
Agora é para o século XIX. Quero sair do meu tempo. E difícil, demora. Tenho de entrar na época. O que era ser mulher no século XIX, o quotidiano. A biografia tem personagens, a principal e as secundárias, tenho de perceber a teia das relações humanas.
O biografado está escolhido?
É o Cesário Verde.
Porquê?
Gosto da poesia dele. É uma poesia a que volto sempre. E é uma poesia maltratada. Além disso, a pessoa é bastante ignorada. Ele é conhecido, as pessoas estudam-no, mas estudam-no mal. Há uma série de chavões sobre ele. Pegam no Cesário e escrevem: a tísica, a relação campo-cidade, o precursor do modernismo. De tal maneira esquematizam que destroem a beleza da poesia. É uma enumeração de características, mas o Cesário é um grande poeta em si mesmo. E intriga-me muito aquele jovem que morre com 31 anos, tão loiro, tão fraco fisicamente, mas com uns sentimentos tão fortes. Acho aquilo muito mais retorcido e perverso, no bom sentido, do que o que pode caber num esquema de oposição campo-cidade. Ao contrário do O’Neill, Cesário está biografado. Vou pegar em toda a tradição biográfica e fazer um bocadinho a Lisboa do Cesário. Vou ter de ter alguma arte sem cair no kitsch. Não quero fazer uma coisa lindinha da Lisboa do Cesário.
Como acha que se vão escrever biografias sobre este tempo?
Vai ser um grande sarilho.
Porquê?
Por causa da verdade.
Nas redes sociais as pessoas editam-se mais do que nas cartas?
As cartas são um objecto fetiche do biógrafo, sugerem que estamos na intimidade, é a voz dele sem pose. No O’Neill há poucas cartas, mas, por exemplo, na correspondência de Mário de Sá-Carneiro há uma carta de Fernando Pessoa em que diz qualquer coisa como “Caro Fernando Pessoa, que novidade excitante a publicação das cartas entre Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa em 1970 editadas por...” Fernando Pessoa sabia que ia ser editado e a partir daí aquelas cartas estão inquinadas, eles estão a escrever para a posteridade também. Como o Camilo, a partir do momento em que é biografado aos 36 anos. Ele sabe que todas as cartas que escreve vão ser editadas e sabe que vai ser biografado novamente. Tudo aquilo é escrito para a posteridade. Mas com a Internet a noção de privacidade mudou completamente — o que querem e o que não querem. Há alguma ingenuidade. Imagine um biógrafo chegar ao Facebook ou ao Instagram do biografado! Nunca mais sai dali. Isto põe novos desafios e novas questões. Vai ter de se continuar a cruzar muitas fontes. É o essencial.
Qual acha que foi a primeira grande biografia escrita em Portugal?
Em relação ao Camilo, que é o grande biografado, a melhor é a do Aquilino e depois a do Mário Cláudio [Camilo Broca, D. Quixote, 2006], que entrou pela ficção. Acho que o Camilo tem de ser abordado pela ficção.
Porquê?
Porque ele próprio mistura os dados todos. É um romântico e os românticos não faziam diferença ente ficção e vida, vida e arte são a mesma coisa; sou herói de mim próprio. Por isso os biógrafos derraparam; tomaram como verdade o que era ficção. O Mário Cláudio fez um bom trabalho.
A nova edição da poesia de O’Neil traz inéditos. Alteraram alguma coisa à biografia, sentiu-se tentada a acrescentar ou mudar alguma coisa?
Não. Apenas acrescentaram o cânone literário dele. Mas tenho as cartas de uma namorada dele, norueguesa; são documentos que me chegaram depois da biografia. Isso, sim, é novidade biográfica.
O que vai fazer com elas?
Não sei. Não posso editar aquilo assim. A haver uma reedição da biografia entra como um acrescento.
Qual foi a primeira biografia que leu?
Acho que a da Madame Curie. Tinha uns nove anos. Foi quando larguei Os Cinco e Os Sete. Passei rapidamente pelas biografias e depois o meu pai pôs-me o Camilo na mão e pronto.
O que acha das biografias autorizadas?
Já me pediram uma e eu disse que não. Não se tem liberdade. É embaraçante, castrador. A Virginia Woolf tem um texto muito engraçado a falar das biografias victorianas: antigamente a viúva do biógrafo dizia: “O meu marido era uma peste, mandava com as botas à criada e bebia demais, mas era um género e, portanto, omita isso.” E o biógrafo obedecia. A biografia autorizada é isso. Qual é o limite? O que é a difamação? O limite é a barra do tribunal dizem os biógrafos cínicos.