Com empréstimos a Caracas, Moscovo vai tomando conta do petróleo da Venezuela

O Governo de Maduro só tem evitado o incumprimento no pagamento de obrigações com o dinheiro que recebe da Rússia, que está a reforçar a sua posição nos mercados energéticos da América.

Foto
Um trabalhador da PDVSA recolhe uma amostra de crude em Morichal EUTERS/Carlos Garcia Rawlins

O governo socialista da Venezuela, em risco de desmoronamento, vira-se cada vez mais para a aliada Rússia em busca do dinheiro e do crédito necessários à sua sobrevivência — e oferece em troca valiosos activos petrolíferos estatais, afirmam à Reuters fontes próximas das negociações.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

O governo socialista da Venezuela, em risco de desmoronamento, vira-se cada vez mais para a aliada Rússia em busca do dinheiro e do crédito necessários à sua sobrevivência — e oferece em troca valiosos activos petrolíferos estatais, afirmam à Reuters fontes próximas das negociações.

À medida que Caracas se vê em dificuldades para conter o colapso económico e os violentos protestos nas ruas, Moscovo usa a sua posição como credor de último recurso da Venezuela para obter mais controlo sobre as reservas de crude de país da OPEP, e que são as maiores do mundo.

A Petróleos de Venezuela (PDVSA), petrolífera estatal venezuelana, tem estado em negociações secretas com a maior petrolífera estatal russa, a Rosneft, desde o início deste ano, pelo menos. Em cima da mesa está a possibilidade da participação russa em nove dos projectos petrolíferos mais valiosos da Venezuela, segundo um alto funcionário do governo venezuelano e duas fontes da indústria que estão a par das conversações.

Moscovo detém um substancial ascendente nas negociações: o dinheiro russo, e nomeadamente da Rosneft, tem sido crucial para evitar que o depauperado Governo de Nicolás Maduro entre em incumprimento do serviço da dívida soberana ou seja alvo de um golpe de Estado.

Só em Abril, e em troca da promessa de futuras remessas de petróleo, a Rosneft depositou nos cofres da empresa estatal venezuelana mais de mil milhões de dólares. E em pelo menos duas ocasiões, o dinheiro vindo da Rússia permitiu ao Governo venezuelano evitar um iminente incumprimento no pagamento de obrigações, disse à Reuters um alto quadro da PDVSA.

A Rosneft também se tem posicionado como intermediária na venda do petróleo venezuelano um pouco por todo o mundo. Grande parte dele acaba nas refinarias dos Estados Unidos, não obstante as sanções impostas pelos EUA à Rússia, porque é vendido através de empresas de comércio petrolífero, de acordo com relatórios internos da PDVSA a que a Reuters e uma fonte da empresa tiveram acesso.

A PDVSA e o Governo da Venezuela não responderam aos pedidos de comentários sobre este assunto. O Governo russo também não quis comentar, encaminhando as questões para os ministérios das Finanças e da Defesa, que não responderam às perguntas da Reuters. Do mesmo modo, a Rosneft declinou fazer qualquer comentário.

O crescente poder da Rússia sobre o crude venezuelano fortalece a sua posição nos mercados energéticos das Américas. Actualmente, a Rosneft revende cerca de 225 mil barris por dia (bpd) de petróleo venezuelano – cerca de 13% do total de exportações do país, revelam os relatórios comerciais da PDVSA. Tal é suficiente para as necessidades diárias de um país do tamanho do Peru.

A maior parte desse petróleo é entregue pela Venezuela à Rosneft como pagamento de empréstimos de milhares de milhões de dólares que o Governo de Maduro já gastou. A braços com uma grave escassez de bens a nível nacional, a Administração precisa do dinheiro russo para financiar tudo, desde o pagamento de obrigações à importação de alimentos e medicamentos.

"Predador"

Os líderes da oposição venezuelana dizem que a Rússia se comporta mais como um predador do que um aliado. “Sem dúvida que a Rosneft se está a aproveitar da situação”, afirma Elias Matta, vice-presidente da comissão energética da Assembleia Nacional da Venezuela. “Sabem que temos um Governo fraco e desesperado por dinheiro – e eles são tubarões.”

A dependência da Administração Maduro relativamente a Moscovo tem-se acentuado nos dois últimos anos, à medida que a China tem reduzido o crédito à Venezuela devido a atrasos nos pagamentos e à corrupção e criminalidade que as empresas chinesas presentes no país enfrentam, dizem analistas da dívida venezuelana e duas fontes da indústria petrolífera.

Entretanto, devido à estagnação da economia do país e à crónica escassez de matérias-primas, muitas empresas multinacionais praticamente abandonaram as suas operações na Venezuela. A Rosneft está a fazer o oposto – os tempos difíceis da Venezuela são vistos como uma oportunidade para comprar activos petrolíferos que potencialmente terão grande valor a longo prazo.

“A Venezuela bateu no fundo, e os russos estão a agarrá-la”, afirma um diplomata ocidental com experiência em assuntos relacionados com a indústria do petróleo venezuelano.

Fontes próximas da Rosneft disseram à Reuters que enquanto as outras empresas fecham os seus negócios, a empresa russa está em expansão, tendo ocupado um novo piso na sua torre de escritórios e contratado mais pessoal, nomeadamente funcionários da PDVSA e executivos vindos da Rússia.

Tal expansão entra em claro contraste com o panorama actual da antigamente próspera zona empresarial de Caracas. Enquanto os funcionários da Rosneft trabalham em luxuosos escritórios, ao lado de cartazes do Presidente russo Vladimir Putin e de um busto do falecido líder venezuelano e ícone socialista Hugo Chávez, cá fora grupos de jovens arremessam frequentemente pedras e cocktails molotov nos crescentes protestos contra o sucessor de Chávez.

Democracia enfraquecida

A necessidade do dinheiro russo foi uma das principais razões que levaram os aliados de Maduro a uma jogada que, no início deste ano, desestabilizou ainda mais a já de si cambaleante democracia da Venezuela, asseverou à Reuters o alto funcionário do Governo.

Em Março, o Supremo Tribunal do país, cujos membros são leais a Maduro, assumiu os poderes da Assembleia Nacional, controlada pela oposição. A maioria dos deputados eleitos opunha-se a novos acordos petrolíferos com a Rússia e insistia em manter o poder para os vetar.

Dias depois – após intensos protestos por todo o país e apelos públicos de Maduro – o tribunal devolveu à Assembleia a maior parte dos poderes que lhe retirara, mas mantendo nas mãos do Presidente a autoridade legal para assinar novos acordos petrolíferos com a Rússia sem a aprovação do legislador.

O mesmo funcionário governamental afirmou à Reuters que Maduro precisava desse poder concentrado em si para abrir caminho à expansão da Rosneft.

Esse episódio foi central na escalada diária dos protestos nas ruas e nos confrontos com as autoridades que desde então já causaram mais de 120 mortes.

“A pressão da Rússia tem tido um papel importante nas decisões de Maduro”, continua o governante, falando sob condição de anonimato.

A Venezuela não revela todos os detalhes da suas dívidas à Rússia, mas a Rosneft declarou este mês ter emprestado à PDVSA um total de seis mil milhões de dólares. Desde 2006, e de acordo com as estimativas da Reuters, a Rússia e a Rosneft entregaram à Venezuela um total de pelo menos 17 mil milhões de dólares em empréstimos e linhas de crédito.

No fim de Julho, Maduro criou um novo órgão legislativo, a Assembleia Constituinte, por meio de uma eleição amplamente vista como uma farsa. Aliados do Partido Socialista Unido da Venezuela ocuparam todos os 545 lugares da nova assembleia, que tem o poder para reescrever a Constituição do país, dissolver instituições estatais – como o Congresso, controlado pela oposição – e exonerar funcionários públicos dissidentes.

A espiral

A economia venezuelana, assente na indústria petrolífera, entrou em colapso desde que a cotação internacional do barril caiu para um mínimo de 24 dólares no início de 2016, depois de em 2014 ter chegado a atingir mais de cem dólares por barril. O preço situa-se actualmente à volta dos 50 dólares, o que não tem chegado para tirar a Venezuela da crise.

Quase todas as receitas de exportação do país vêm do petróleo, e a sua queda levou a que o Governo de Maduro não consiga financiar os generosos programas de subsídios de alimentos, medicamentos, combustíveis, energia e outros serviços públicos instituídos por Hugo Chávez. A erosão dos subsídios públicos conduziu a uma inflação galopante, que o Fundo Monetário Internacional prevê atingir 700% este ano. O bolívar, moeda da Venezuela, perdeu quase todo o seu valor.

Os cortes governamentais atingiram também os orçamentos para a manutenção dos campos petrolíferos, refinarias, portos e petroleiros, o que provocou que no primeiro semestre de 2017 a produção venezuelana de petróleo tenha caído para os valores mais baixos dos últimos 27 anos.

De acordo com os relatórios comerciais a que a Reuters teve acesso, a PDVSA está a pagar uma parte cada vez maior das suas dívidas crescentes à Rússia com petróleo, o que está a asfixiar a entrada de dinheiro fresco proveniente dos negócios regulares da empresa, criando assim a necessidade de novos empréstimos.

A espiral negativa do país colocou a Rosneft em posição de adquirir activos petrolíferos venezuelanos a preço de saldo. O volume crescente de crude recebido coloca a empresa russa como intermediária em negócios antes detidos exclusivamente pela PDVSA. No processo, a Rosneft apropriou-se de valiosos negócios de fornecimento internacional e de relações comerciais privilegiadas com parceiros tão distantes quanto a China, mostram os documentos da PDVSA.

Ao preço de hoje, o petróleo venezuelano que anualmente vai parar às mãos da Rosneft vale cerca de 3,6 mil milhões de dólares. E os relatórios internos da PDVSA revelam que é esperado que esse número aumente.

As mesmas fontes indicam que a maior parte é vendido para os Estados Unidos. Num futuro próximo, a Rosneft vai passar também a vender crude venezuelano à Essar, gigante indiano da indústria, ficando assim com o segundo maior cliente asiático da PDVSA.

“A Rússia está a ficar-lhes com tudo”, declara um negociante de petróleo que trabalha regularmente com a PDVSA.

As muitas ligações da PDVSA à indústria petrolífera dos EUA levantam também a questão da possibilidade dos acordos que estão agora a ser negociados irem contra as sanções económicas impostas à Rússia, e que a Venezuela também poderá sofrer.

Se o Governo venezuelano entrar em incumprimento nos pagamentos das dívidas – um cenário cada vez mais provável – a Rosneft será certamente um dos primeiros credores a bater à porta.

O negócio das armas

A Rosneft está envolvida na Venezuela desde que foi feito um negócio de quatro mil milhões de dólares que assentava na troca de armas por petróleo, assinado por Chávez e Putin em 2006 e que ajudou a cimentar a ligação entre os dois governos. O acordo foi firmado em Moscovo por Chávez, ele próprio um antigo militar.

Rejeitado pelos EUA, que desde 2006 se recusam a vender peças para a frota venezuelana de caças F-16 de fabrico americano, Chávez adquiriu a Putin caças russos Sukhoi, helicópteros, tanques e armas.

As negociações envolveram altos quadros da Rosneft e da PDVSA, uma vez que a Rosneft era a entidade russa que recebia os carregamentos de petróleo usados para pagar uma parte do armamento, afirmou à Reuters o governante venezuelano.

Nelas se incluiu o presidente da Rosneft, Igor Sechin, poderoso conselheiro e representante de Putin de longa data. Sechin é um experiente linguista que começou a carreira como intérprete militar e com uma paixão pela História dos revolucionários da América Latina. Era a ligação directa a Chávez até à morte deste em 2013 e mantém laços estreitos com Maduro, encontrando-se periodicamente com ele, diz a mesma fonte.

Sechin foi convidado de honra de Maduro na cerimónia de inauguração de uma estátua de Hugo Chávez na sua cidade-natal, Sabaneta, em Outubro passado. A estátua de granito, em honra do falecido Presidente, foi feita na Rússia. “Obrigado por confiarem em nós”, disse Sechin em espanhol, dirigindo-se à multidão e em directo na televisão estatal venezuelana. “Rússia e Venezuela, para sempre juntas!”

Reuters