Recolhem água da chuva, cultivam frutos e legumes, usam o sol para cozinhar
O engenheiro civil João Marcelino, a mulher e os três filhos vivem em Ílhavo numa casa com elevada eficiência energética, hídrica e alimentar. Quarta de uma série de cinco reportagens sobre famílias com estilos de vida mais sustentáveis
Atrás de um portão metálico de uma rua de Ílhavo está o que poderá ser o futuro ou, pelo menos, um certo futuro. Uma casa com humidade adequada, reduzida concentração de CO2, temperatura constante, entre um mínimo de 20 graus no Inverno e um máximo de 25 graus no Verão, com poupança energética de 75 a 90% nas necessidades de aquecimento e de arrefecimento.
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Atrás de um portão metálico de uma rua de Ílhavo está o que poderá ser o futuro ou, pelo menos, um certo futuro. Uma casa com humidade adequada, reduzida concentração de CO2, temperatura constante, entre um mínimo de 20 graus no Inverno e um máximo de 25 graus no Verão, com poupança energética de 75 a 90% nas necessidades de aquecimento e de arrefecimento.
Toca-se a campainha. Henrique, um dos gémeos da família Marcelino, abre o portão, que dá para o átrio.
Logo aí, avista-se um forno solar de caixa, de marca portuguesa. É nessa caixa, com fundo preto e tampa de vidro, que o pai, João Marcelino, mais gosta de fazer arroz. E um forno solar de tipo parabólico, de patente alemã e produção espanhola, que daqui a bocado há-de aquecer uma carne assada.
Lá nas aulas, sempre que o assunto é poluição, alterações climáticas, desenvolvimento sustentável, o nome dos gémeos vem à baila. “Os nossos colegas dão logo o exemplo da nossa casa”, assegura Henrique. “Isto para nós é uma coisa normal, porque estamos aqui todos os dias, mas quem vem de fora acha que isto é uma coisa mesmo grande”, diz Pedro, o outro gémeo, de 13 anos.
Este tipo de edifício, com um elevado padrão de eficiência energética, tem um nome vindo de fora: passivhaus, traduzível por “casa passiva”. O conceito surgiu na Alemanha na década de 80 do século passado. E as primeiras casas foram construídas em 1991 em Darmstadt, a sul de Frankfurt.
O engenheiro civil João Marcelino e um colega, o arquitecto João Gavião, trouxeram a ideia para Portugal e andam a propagá-la através da empresa Homegrid e da Associação Passivhaus Portugal. Participam em debates, colóquios e conferências, fazem oficinas, seminários e cursos. E dizem que o conceito está a pegar, ainda que devagarinho. Neste momento, a equipa, que integra outros elementos, está a fazer a consultoria de mais de 30 projectos de construção e reabilitação. Esta casa e a do lado, que é de uma família, foram as primeiras a serem certificadas.
Encontramos João Marcelino no pátio, à volta da horta. “Estamos a fazer muitas coisas”, entusiasma-se este homem, de 52 anos. “O princípio é este: tentar olhar para a natureza, aprender com ela, trabalhar com ela para que ela nos possa oferecer aquilo de que é capaz de forma gratuita.”
É uma casa grande (“314 metros quadrados”). Tem muitas janelas (“todas instaladas na camada de isolamento para evitar pontes térmicas no perímetro, que é o que dá grandes perdas de calor”) e varandas presas por uma estrutura metálica (“também para evitar pontes térmicas”).
Evitar pontes térmicas, explica, é um dos princípios da construção de “casa passiva”. Há outros. Os níveis de isolamento têm de ser apropriados. Tem de haver um sistema de ventilação com recuperação de calor.
O sistema de condutas nunca pára. Está sempre a ir buscar ar ao exterior para insuflar nos quartos e nas salas. Esse ar fresco cruza-se com o ar quente que está sempre a ser sugado da cozinha e das casas de banho. Em caso de necessidade, uma pequena bomba de calor entra em acção.
João Marcelino explica isto tudo com grande detalhe. Diz-se que o segredo é a alma do negócio, mas, pelo menos no que à casa diz respeito, não parece encontrar sentido no segredo. Quer partilhá-la o mais possível. “Acho que é por aqui que está o nosso equilíbrio e o equilíbrio do nosso planeta.”
Nasceu em Moçambique. Formou-se na Universidade de Coimbra. Foi nessa cidade que conheceu a mulher, uma engenheira química, que trabalha na Escola Superior Agrária, do Instituto Politécnico de Coimbra. Moraram muitos anos num apartamento, em Aveiro, antes de se instalarem nesta casa, em Ílhavo.
“Sempre me interessei pelo ambiente, pela relação com a natureza, pela questão da água”, conta. “Desde o início, em todos os projectos que fazia tentava trabalhar com a água, com a energia. Acho que isso é que é bonito”, prossegue. “Quando estávamos a construir estas casas, com a máxima eficiência energética a nível nacional, tomámos conhecimento da passivhaus. Eu fui logo à Conferência Internacional, em Innsbruck. Perguntei se era possível fazer a adaptação.”
Máxima eficiência
Os edifícios respondem por consumos consideráveis. O sistema de certificação energética, que atesta o desempenho numa escala de A+ a F, mostra o atraso do país. Exige-se que os novos edifícios tenham um bom desempenho (a partir de B), mas quando essa lei apareceu as casas já estavam quase todas de pé.
Segundo a Adene — Agência para a Energia, mais de metade dos edifícios de habitação com certificado energético têm classificação C e D. Nos certificados emitidos de acordo com a nova legislação, que entrou em vigor a 1 de Janeiro de 2016, quase 90% estavam nos níveis C,D,E,F. A mudança faz-se, pouco a pouco, nos novos edifícios e nos edifícios reabilitados.
O ciclo de financiamento comunitário Portugal 2020 representa um novo estímulo. O Governo candidatou-se a 100 milhões de euros para o programa Casa Eficiente. Os proprietários poderão aproveitar para, por exemplo, reforçar isolamento térmico ou instalar painéis solares ou fotovoltaicos.
João Marcelino adaptou a casa que estava a construir para a família e a casa que estava a construir para uma cunhada. A exposição solar não é a ideal — “75% do envidraçado está virado a poente”, melhor seria que estivesse virada para sul, para mais aproveitar a luz, mas “a câmara não autorizou.”
Há colectores solares térmicos para aquecer a água da cozinha e das casas de banho. E painéis fotovoltaicos capazes de produzir a electricidade de que precisam durante o dia. De dia, produzem mais do que precisam e entregam excedente à rede — “que não paga”. De noite, não produzem, recorrem à rede — e pagam.
Já existe uma bateria que daria para armazenar a energia que produzem durante dois dias, mas parece-lhe que ainda é demasiado cara para uso doméstico. Há uns meses, compraram um carro eléctrico. O plano é usá-lo como apoio à casa durante a noite. “O carro tem uma bateria de 29 kwatt, que carrega durante o dia. Esta casa durante a noite tem um consumo na ordem de três a três kwatts”, explica. Só por ora ainda não é possível pôr o carro a alimentar a casa.
Ao princípio do dia, João Marcelino, a mulher e os três filhos têm mesmo de recorrer à rede de electricidade. Nota-se um pico de consumo com a preparação do pequeno-almoço. À noite, voltam a fazer o mesmo. E há um pico de consumo com a preparação do jantar.
Segundo o Estudo de mercado sobre a Eficiência Energética na Habitação Particular, realizado no âmbito prévio à Campanha de Sensibilização e de Promoção da Eficiência Energética na Habitação, muitos outros portugueses estão preocupados com soluções de eficiência energética. A maior parte já usa lâmpadas com LED (68%), quase metade (43%) opta por electrodomésticos mais eficientes e grande parte (28%) por formas mais eficientes de obter água quente, mas só uma ínfima minoria (3%) recorre às energias renováveis de produção doméstica.
Eficiência hídrica e alimentar
Lá na Homegrid, a equipa procurou evoluir para um conceito WEFI building, isto é, para a ideia de edifício com elevado grau de autonomia energética, hídrica e alimentar. E isso também foi posto em prática nesta casa.
Só usam electrodomésticos com o máximo de eficiência e torneiras com caudais que limitam o consumo. Recolhem a água da chuva através da cobertura e das fachadas e armazenam-na num depósito subterrâneo, que serve para abastecer as sanitas e as torneiras de rega e lavagem. O resto da casa está ligado à rede pública de água potável.
O caudal de água foi uma das grandes alterações que João e a família sentiram quando se mudaram do apartamento para aqui. “Era muito maior”, recorda Henrique. “Primeiro, pensámos que era muito pouca água, mas já nos habituámos”, corrobora Pedro. “Os amigos que trazemos aqui é que notam que a água tem muito pouca pressão”, achega a irmã, Maria João, de 15 anos.
Há outras diferenças. “Se carregarmos num botão, a água já sai mais quente. Não precisamos de estar à espera que aqueça”, aponta Pedro. “A casa é mais quente do que a outra no Inverno e mais fresca do que a outra no Verão”, atalha Henrique. “Temos muito mais espaço para estar. Podemos relaxar nas redes ou assim”, torna Maria João. E quando querem lanchar é só ir ao pomar apanhar fruta.
Num lado e noutro do quintal, um renque de árvores de fruto. Um limoeiro, uma romãzeira, uma pereira, uma macieira, um pessegueiro, outra romãzeira... “O pessegueiro estava tão carregado, tão carregado... Veio o pulgão. Foi uma pena”, lamenta João Marcelino, olhando uma árvore atrofiada entre duas viçosas.
Ao fundo, a horta. Uma fileira de ervas aromáticas e logo um enleado de couves, couves-de-bruxelas, tomates, feijões, morangos, abóboras. Agricultura biológica, claro. O adubo sai da cozinha. “Tudo o que é lixo orgânico, enterro e as plantas ficam extremamente contentes”, orgulha-se o engenheiro.
Quando vê que os jardineiros da câmara andam a cortar a relva dos espaços públicos vai atrás deles com uns sacos. Evita desperdício e ganha adubo. “Faço esta pele”, explica, indicando a terra. “Esta protecção é importante. Sem ela, a terra vai secar. Assim, não perde tanta humidade.”
Tudo, ali, parece alegrá-lo. “Nunca pensei”, comenta, de olhos postos nas couves-de-bruxelas. “Isto dá centenas de couves pequeninas. É das melhores produções em termos de esforço e resultados. Não percebia nada disto e é agradável perceber que não é difícil. É não pisar, ter caminho, rodar. Há tabelas na Internet. E ver o que vem a seguir. As ervas aromáticas são importantes até para afastar as pragas.”
Grande parte dos alimentos disponíveis nos supermercados viaja centenas ou mesmo milhares de quilómetros, tem de ser climatizada, acondicionada. A horta corta tudo isso. “Este é o princípio”, diz. “Agradável”, também, é a interacção que tudo isto implica. “Eu ofereço amoras à minha vizinha e ela dá-me compotas.” E, ali dentro, todos emprestam os braços à horta. “Antes do sol se pôr ainda temos luz, mas não está muito calor. O pai chama-nos e nós vimos ajudar”, explica Pedro.
Tirar uma “fotografia energética”
João Marcelino está convencido de que “esta educação, esta partilha, é importante” para fazer dos filhos cidadãos conscientes, activos. “O ensinar, o conhecer, o querer fazer uma salada e ir à horta buscar alface ou tomate, o saborear uma alface ou um tomate que não tem nada a ver... Eles podem perceber que é possível ser quase independente em termos de energia, água, alimentação.”
“Ouvimos falar nas alterações climáticas, nos acordos que se fazem, no tratado rasgado pelo [Presidente dos Estados Unidos] Donald Trump. Acho que o que se faz aqui é um exemplo do que no futuro se poderá fazer em mais casas”, comenta Maria João, que vai agora para o 11.º ano e gostaria de estudar Engenharia Física ou Aeroespacial, porque sonha com a possibilidade de explorar o espaço.
Há uma ideia que gostaria de passar: “Nós temos de ter noção do país em que estamos, da realidade em que vivemos.” “Daquilo que usamos”, interrompe Pedro. “Vivemos na Europa, temos mais condições”, torna ela. “Se formos para África, não há tantas condições. Acho que temos de comparar realidades e ver o que podemos fazer no nosso meio. Se eu e os meus irmãos e os meus pais fizermos um bocadinho, já somos cinco. Se todos fizermos um bocadinho, conseguiremos melhorar o planeta.”
A mudança, acredita João Marcelino, está associada à reabilitação. “A reabilitação de uma casa não pode ser feita toda de uma vez. Isso fica caro e não estamos a utilizar os materiais na sua vida útil máxima. Estamos a criar desperdício, o que é um problema em termos de recursos para o planeta.” Tudo começa com uma fotografia energética da casa. “É preciso ver como está, verificar toda a envolvente”, diz. “A cobertura dura mais quantos anos? E a caixilharia? E o isolamento da parede? O melhor é fazer uma reabilitação passo a passo.” Não vai há muito, a tempestade destruiu muitos telhados na vizinhança, na Costa Nova. “Se tivermos um plano, podemos repor. Em vez de repor exactamente como estava, coloca-se mais isolamento. Tudo o resto — andaimes, pessoas — está lá.” No seu entender, este deve ser o novo paradigma.