E a banda dançou um filme
Stop Making Sense: os Talking Heads e a lente de Jonathan Demme, em 1984. Filme histórico, filme-acontecimento que regressa incólume ao grande ecrã no final de Agosto – antes disso, dançamo-lo no Lux Frágil no dia 24. Começamos já, à conversa com o baterista Chris Frantz.
Vemos o pescoço esguio e a cabeça pequena a emergir do fato de dimensões exageradas e ouvimos o vocalista da banda, é dele o pescoço e a cabeça, a responder a mais uma pergunta da senhora, caricatura de uma ingénua apresentadora de talk-shows. Ela questiona o cantor sobre aquilo que salta à vista. Porquê aquele fato daquele tamanho?. “Porque eu gosto de simetria e formas geométricas”, responde o vocalista muito sério, de olhos muito abertos, com um ar “clownesco” que, pela seriedade polvilhada de absurdo do que diz, torna tudo mais cómico. “Porque queria que a minha cabeça parecesse mais pequena, e a forma mais fácil de o conseguir era fazendo o meu corpo parecer maior. Porque a música é muito física e às vezes o corpo percebe-a primeiro que a cabeça”.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Vemos o pescoço esguio e a cabeça pequena a emergir do fato de dimensões exageradas e ouvimos o vocalista da banda, é dele o pescoço e a cabeça, a responder a mais uma pergunta da senhora, caricatura de uma ingénua apresentadora de talk-shows. Ela questiona o cantor sobre aquilo que salta à vista. Porquê aquele fato daquele tamanho?. “Porque eu gosto de simetria e formas geométricas”, responde o vocalista muito sério, de olhos muito abertos, com um ar “clownesco” que, pela seriedade polvilhada de absurdo do que diz, torna tudo mais cómico. “Porque queria que a minha cabeça parecesse mais pequena, e a forma mais fácil de o conseguir era fazendo o meu corpo parecer maior. Porque a música é muito física e às vezes o corpo percebe-a primeiro que a cabeça”.
O homem da cabeça pequena e do corpo grande é David Byrne, vocalista dos Talking Heads, vestindo a pele de uma das suas “personagens” mais conhecidas. Vemo-lo assim, insuflado, num dos momentos mais recordados de Stop Making Sense, filme que registou o espectáculo da digressão de Speaking in Tongues, o quinto álbum da banda nova-iorquina, o de Burning down the house ou This must be the place (naïve melody). “Não é exactamente um filme sobre a banda, é um filme sobre aquela performance”, como definiu Byrne à Rolling Stone, em 1999. “É como fazer o filme de uma peça, em vez de um documentário sobre a companhia de teatro”, comparou, assim ilustrando uma das características que tornou Stop Making Sense, realizado por Jonathan Demme em 1984, um pedaço único de cultura pop enquanto som e imagem. Vamos reencontrá-lo em sala, moderníssimo, a partir de 31 de Agosto – dia 7 de Setembro chega a edição em DVD e a distribuição televisiva por Video on demand.
Chris Frantz, o baterista que, vindo de Rhode Island, chegou com David Byrne e Tina Weymouth a Nova Iorque, em 1974 (são o trio fundador, a que se juntaria Jerry Harrison), acabando por se embranhar na cena musical e artística com o CBGBs como centro, diz ao Ípsilon que, “até aquela altura, os filmes concerto tinham cortes de plano muito rápidos e acabavam por ser uma salada visual”. O modelo, “aquele que era considerado então o melhor no género, era o Last Waltz [de Martin Scorsese, sobre a última actuação da The Band]”, recorda. “Era um óptimo filme, mas tem muitas entrevistas com os músicos nos camarins o que não só o torna mais moroso, como mais próximo do documentário. Quisemos evitar as conversas de bastidores, quisemos evitar os grandes planos nos dedos do guitarrista enquanto ele faz um solo. Quisemos que se conhecesse a personalidade e o temperamento de cada um dos músicos exclusivamente através do palco”. Para o conseguir, tinham Jonathan Demme.
O futuro realizador de Silêncio dos Inocentes viu os Talking Heads durante um dos primeiros concertos da digressão de Speaking in Tongues, em 1983. Viu-os, naquela ideia de actuação enquanto acontecimento, enquanto hipótese cenográfica irrepetível, e deparou-se com um filme à espera de ser feito. A banda, por sua vez, conta Chris Frantz, já se vira filmada – os concertos eram registados em vídeo para aperfeiçoar pormenores da apresentação e os Talking Heads sentiram que havia na apresentação uma ideia de narrativa e um dramatismo que poderiam resultar bem em cinema. Quando Demme os abordou, não tiveram dúvidas. “Ele não era muito conhecido na altura, mas tínhamos um visto um par de filmes dele, especialmente Melvin & Howard [a história de um dono de estação de serviço no Utah que se descobre herdeiro do milionário Howard Hughes], e admirávamos o seu entuasiasmo e o seu sentido estético”. Ainda para mais, a equipa que Demme reuniu incluía, por exemplo, Jordan Cronenweth, director de fotografia que trabalhara em Blade Runner, falecido em 1996 – “quando soubemos quem era exclamámos todos um sonoro 'sim, grande ideia!'”.
A grande virtude de Demme foi transformar a relação habitual entre cinema e concerto. A norma era que a câmara preservasse algo que acontecia independentemente dela, tentando aproximar-se o mais possível do que se imaginava ser a realidade que irrompia no palco. Em Stop Making Sense, a música acontece com a câmara, a actuação musical é também acontecimento cinematográfico. Quanto à matéria prima, já estava criada. “Havia canções nos concertos que não estão no filme, mas, de resto, nada foi alterado. Aquela é a forma como foi encenada a digressão”, conta Chris Frantz.
A encenação e estrutura do concerto questionava conceitos de dramatização e genuinidade, reflexo do interesse recente de David Byrne pelas formas tradicionais do teatro japonês, feitas de gestos artificiais ao nosso olhar, e pela descoberta de performances rituais da ilha de Bali, onde o fervor religioso e a fruição mundana se confundem. “O ênfase Ocidental no pseudo-naturalismo e no culto da espontaneidade como um tipo de autenticidade era a única maneira de fazer as coisas em palco. Decidi que talvez fosse ok usar máscaras e montar um espectáculo. Não implicaria falta de sinceridade, de todo”, escreveu em How Music Works, livro que lançou em 2012 e em que utiliza o seu percurso artístico como centro para reflexões sobre a música e todas as realidades a que está ligada.
Moldados pela “polinização cruzada” vivida então em Nova Iorque – “estávamos sempre a encontrar pessoas como o Jim Jarmusch, então muito jovem, o Philip Glass e o Steve Reich, o Jean-Michel Basquiat ou escritores como o Glenn O'Brien” –, e vindos do trabalho revelador com Brian Eno no trio de álbuns More Songs About Buildings and Food (1978), Fear of Music (1979) e Remain in Light (1980), onde a experimentação sónica caminhava a par de uma nova tónica no ritmo e um apreço pela soul e pelo funk (vistos por olhos de “tipos brancos dos subúrbios, saídos de escolas de arte”, ressalva Chris Frantz), os Talking Heads ofereceram-se ao olhar de Demme.
Bernie Worrell, o mago dos sintetizadores dos Parliament/Funkadelic, Alex Weir, guitarrista da banda funk Brothers Johnson, o percussionista Steve Scales e as vocalistas Lynn Mabry e Ednah Holt, os músicos que acompanham os Talking Heads oficiais, transformaram-nos num portento de ritmo e groove bem medido (“fizeram com que nos soltássemos verdadeiramente”), sem que tal transformasse a presença carismática e desconcertante de Byrne (nunca vimos ninguém dançar assim, nem antes, nem depois) e o olhar e comentário que este lançava sobre uma América onde o surpreendente e o bizarro podem irromper do quotidiano mais corriqueiro. Virá daí a proximidade e a empatia com que Demme capta a banda, demorando-se nos rostos dos músicos, juntando-os em planos de conjunto (sombras crescendo em fundo no palco), destacando o sorriso luminoso de criança travessa de Weymouth ou mostrando Byrne como personagem, boné vermelho na cabeça, calças larguíssimas, que poderíamos encontrar num diner no deserto (o de Paris Texas, provavelmente).
Ver do melhor lugar da sala
A sequência da entrevista com que iniciámos este texto não pertence ao filme – nele só vemos banda e palco, sem mais (e não sentimos falta de nada). Trata-se de uma encenação em que Byrne é confrontado com o cliché de vários tipos de figuras televisivas – a apresentadora que debita banalidades, o rocker festeiro, o académico emproado. O humor e o nonsense daquele curto vídeo, e o simples facto de ter sido criado para apresentar, não um disco, mas um filme de um concerto, é ilustrativo do que eram os Talking Heads.
A banda gerada na cena punk nova-iorquina ao lado dos Ramones tinha essa matriz, mas não era “das ruas” e não se apresentava como contracultura clássica. Era banda que pretendia agir bem no coração da cultura de massas, subvertendo-a e procurando expandir o seu alcance enquanto evocava na sua expressão musical outras linguagens – a fotografia, as artes performativas, o design, o cinema.
Stop Making Sense, o filme que o Byrne insuflado do pescoço para baixo promovia no tal vídeo, ficou na história da banda activa entre 1975 e 1991 como um dos seus momentos mais relevantes, tão importante como os pontos altos da discografia e um marco na história da música em filme. Vê-lo 33 anos depois neste mundo submerso em imagens, quando há vídeos amadores e profissionais, para cinema e televisão, em 3-D e em 2-D e interactivos, dedicados a todas as bandas que algumas vez existiram no planeta, é perceber porquê .
Vamos mesmo vê-lo e até apreciá-lo em verdadeiro ambiente de concerto. Dia 24 de Agosto, o filme será projectado no Lux Frágil, em Lisboa (23h30), e se, em 1984, a imprensa dava conta de que era habitual o público levantar-se para dançar nos corredores dos cinemas, neste caso já estaremos todos de pé, num clube onde a dança é de rigor, para mais facilmente sermos transportados pelos Talking Heads na sua fase banda funk, sempre cerebral, mas de abandono físico vincado. “Famous first images”: dois pés que caminham até ao centro do palco, depois David Byrne, uma guitarra acústica e um gravador de cassetes; “quero que ouçam isto”, diz ele, e o que se ouve é uma caixa de ritmos, os acordes de guitarra, fim David Byrne a interpretar Pycho killer sem ninguém a acompanhá-lo e com escadotes e paredes semi-pintadas como cenário de fundo. Concerto em construcção: artíficio montado, começávamos a mergulhar nele à medida que, canção após canção (Found a job, Burning down the house, Once in a lifetime, Girlfriend is better, de onde é extraído o título do filme) os músicos vão surgindo à vez num palco que, para espanto de quem assiste, é montado à vista desarmada. “O mágico iria mostrar como se faz o truque e depois faria o truque, e eu acreditava que essa transparência não fragilizaria a magia”, escreveu Byrne em How Music Works.
O truque é a dança em espasmos de Byrne – “deixei o meu corpo descobrir, pouco a pouco, a sua própria gramática de movimento” –, as coreografias aparentemente improvisadas entre os membros da banda, as projecções de frases e de fotografias que criam nova camada de significado, a sequência em que Byrne dança com um candeeiro de pé, qual Gene Kelly da new-wave, ou aquela em que parece um Buster Keaton a caricaturizar Fred Astaire, e o fato, aquele fato insuflado, inspirado no teatro Noh japonês, que se tornou imagem para sempre associada aos Talking Heads.
Não é por acaso que o público presente no Pantages Theater, em Hollywood, em Dezembro de 1983, é uma entidade ausente do nosso campo visual até aos momentos finais de Stop Making Sense. O ânimo do concerto foi alimentado pelos milhares no sala, mas eles estavam lá para servir a banda e para nos servirem a nós, futuros espectadores da obra filmada.
“Queríamos que o espectador sentisse que tinha o melhor lugar na sala. Não queríamos mostrar uma vasta plateia com algumas pessoas nas filas da frente e outras lá atrás. Queríamos criar essa ilusão – o melhor lugar, o melhor som – e nada poderia intrometer-se e quebrar essa ilusão”, explica Chris Frantz. A rodagem foi feita em três datas consecutivas – “a primeira foi um teste e sabíamos que íamos conseguir o melhor material na segunda, como acabou por acontecer; quanto à terceira, que também foi fantástica, foi acrescentada por segurança”. Chris Frantz continua orgulhoso do filme. “Hoje é muito difícil ser importante, porque há tanta música, porque há tantos vídeos, é um poço sem fundo, mas tenho a esperança que Stop Making Sense se mantenha no topo”. Passados todos estes anos, ainda tem uma espinha atravessada na garganta.
Fala connosco desde o Connecticut, onde vive com Tina Weymouth, baixista dos Talking Heads e sua mulher (mantêm os Tom Tom Club, que tiveram direito a uma canção em Stop Making Sense). Do lado de lá da janela da casa do baterista, está a paisagem de muitas árvores, o céu azul e os cães que começam a ladrar quando se aproxima o carteiro. Muito distante, portanto, da Nova Iorque a que se habituou nos primeiros tempos dos Talking Heads e da sua rotina desse tempo, entre camarins, estúdios, palcos, clubes ou galerias de arte. Já passou muito tempo, mas Frantz ainda não compreende uma coisa. “Nessa altura começávamos a ter alguns singles de sucesso, como o Burning down the house. Não era um sucesso como o de Michael Jackson, e nem sequer conseguimos chegar a ter um sucesso ao nível de uns Police, mas isso só não aconteceu porque o nosso vocalista, para o bem e para o mal, na minha opinião, para o mal, decidiu seguir uma carreira a solo. Fizemos álbuns depois de Stop Making Sense, mas essa foi a última digressão. Ainda hoje não estou feliz com essa decisão, mas o David é assim e aprendemos a viver com isso”.
David Byrne é assim: “Quando estivemos no Japão, uma designer contou-lhe que no teatro Noh tudo se fazia em grande, tudo era maior que a vida, o que era uma forma de enfatizar a importância da personagem e do actor. As personagens usavam grandes kimonos, com grandes chumaços nos ombros, e ele teve a ideia de fazer um grande fato de homem de negócios”, conta o baterista. “Mas disse-nos que devíamos todos vestir cores neutras, cinzentos, castanhos, verde escuros, para que nenhum membro da banda sobressaísse. Todos concordámos e fomos tratar das nossas roupas. E ele aparece com o maior fato branco que alguma vez vimos na vida. Novamente, é assim que ele é. Mas ainda bem que o fez, porque o fato é óptimo”.
David Byrne é, portanto, assim: “Não actuei ao vivo durante uns tempos depois [de Stop Making Sense]. Era difícil bater aquela experiência. Realizei um filme, casei-me, tive uma filha […]. Continuei a fazer discos e a lançar-me noutros projectos criativos, mas não actuei em palco”, confessa em How Music Works. Stop Making Sense tinha que ter qualquer coisa para provocar tal reacção. E tinha. Vê-lo é perceber que ainda tem.