Arrojo e provocação

A irlandesa Eimear McBride confirma o enorme talento em mais um romance que é um exercício original de descontrução da linguagem.

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Eimear McBride, de maneira quase épica, leva-nos através do “íntimo”

A irlandesa Eimear McBride (n. 1976) estreou-se na literatura com um romance que espantou a crítica anglo-saxónica, Uma Rapariga É Uma Coisa Inacabada (Elsinore, 2016) — houve quem lhe chamasse logo “um futuro clássico” — pelo arrojo de um primeiro romance que mostrava ‘desprezo’ pelas regras gramaticais e, talvez ainda mais do que isso, que ousava assumir a grande influência de “Ulisses”, da autoria do seu conterrâneo James Joyce. (Diga-se que esta influência acontece apenas ao nível da escrita, não da forma ou da técnica narrativa.) Neste seu segundo romance, agora publicado em português, McBride continua no mesmo registo de escrita, provocador e arriscado, não obedecendo às regras da pontuação nem a muitas outras; o que a princípio de leitura pode soar estranho, acaba por depressa deixar o leitor entrar e passar a entender aquele discurso de, por vezes, frases inacabadas ou apenas interrompidas para serem atravessadas por outras (que aparecem na mancha gráfica da página num corpo de letra menor). É um discurso que por vezes se pode assemelhar a pequenas cataratas de palavras, em que as ideias se cruzam, se entrechocam, embatem contra o discurso de outra personagem. “É só por estar sozinha neste corpo há tempo demais, devia arranjar alguém para estar nele comigo. E vou. Quero. Vou fazer alguma coisa. Quando? Oh por amor de Deus uma coisa de cada vez. Ela psssst de volta, uma cotovelada A pila dele é assim como aquela.”

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A irlandesa Eimear McBride (n. 1976) estreou-se na literatura com um romance que espantou a crítica anglo-saxónica, Uma Rapariga É Uma Coisa Inacabada (Elsinore, 2016) — houve quem lhe chamasse logo “um futuro clássico” — pelo arrojo de um primeiro romance que mostrava ‘desprezo’ pelas regras gramaticais e, talvez ainda mais do que isso, que ousava assumir a grande influência de “Ulisses”, da autoria do seu conterrâneo James Joyce. (Diga-se que esta influência acontece apenas ao nível da escrita, não da forma ou da técnica narrativa.) Neste seu segundo romance, agora publicado em português, McBride continua no mesmo registo de escrita, provocador e arriscado, não obedecendo às regras da pontuação nem a muitas outras; o que a princípio de leitura pode soar estranho, acaba por depressa deixar o leitor entrar e passar a entender aquele discurso de, por vezes, frases inacabadas ou apenas interrompidas para serem atravessadas por outras (que aparecem na mancha gráfica da página num corpo de letra menor). É um discurso que por vezes se pode assemelhar a pequenas cataratas de palavras, em que as ideias se cruzam, se entrechocam, embatem contra o discurso de outra personagem. “É só por estar sozinha neste corpo há tempo demais, devia arranjar alguém para estar nele comigo. E vou. Quero. Vou fazer alguma coisa. Quando? Oh por amor de Deus uma coisa de cada vez. Ela psssst de volta, uma cotovelada A pila dele é assim como aquela.”

Em Pequenos Boémios, a irlandesa Eimear McBride conta-nos a história de uma rapariga de dezoito anos recém chegada a Londres para estudar teatro. Corre o ano de 1994, e a rapariga depois de uma primeira audição na escola para exame, recebe meses depois a notícia da aprovação. Muda-se para Londres, onde não conhece ninguém. É tímida, insegura, sente que talvez não pertença ali, mas faz um esforço para que nada disso se note, pois sabe que só assim será aceite. Tenta desenvolver amizade com uma outra rapariga, bastante mais extrovertida, segura e livre. “Não pertenço a grupo nenhum. Sou a carta fora do baralho, mas intenções as melhores e não ligo muito porque Que se foda pertencer a grupos — mas não dizia que não a divertir-me mais. Ao menos estou aqui entrei, em vez de ficar à espera.” O ambiente da escola de teatro proporciona a que aos poucos ela se vá sentindo mais igual, mais integrada, acabando por conhecer novas pessoas, não sendo dispicienda a ajuda dada pelo álcool. “Umas boas demãos de cerveja na alma e já abro a boca sem medo para deixar sair merda que nem se acredita. E a rir-me muito, como se fosse tudo verdade. A juntar-me ao mundo talvez, acho eu. Espero eu. Sem dúvida que me dá descaramento e me prepara para o que vier. Verdade ou Consequência ‘bora?”

Pelas citações deixadas percebe-se o talentoso exercício de desconstrução da linguagem a que McBride se dedica ao longo de todo o romance. Ela parte de acontecimentos banais narrando-os de maneira a torná-los numa outra experiência, por vezes estranha, ou pelo menos vista de uma maneira menos usual, mas sempre com uma vitalidade que contagia o leitor e o faz prosseguir na leitura. Um discurso que a princípio pode bem parecer desconjuntado, por vezes quase informe, assume aos poucos uma coerência inesperada, mesmo quando se torna radical ao ser cruzado com outros discursos que ocorrem ao mesmo tempo na acção, como quando duas pessoas falam ao mesmo tempo quase sem se ouvirem uma à outra.

O discurso narrativo de McBride, ao contrário do que por vezes possa parecer em leitura rápida de parágrafos soltos, não é o do “fluxo de consciência” joyceano ou de outros; é outra coisa, mas que assume essa forma. McBride não narra a partir de “dentro” deixando-se levar pelo pensamento, parte antes de episódios bem reais, e descreve-os vistos de fora, sem julgamentos ou aprofundamentos maiores do que aquilo que deixa à vista. Se o romance anterior “pecava” pela desorganização sem propósito dos episódios, neste segundo a narrativa segue uma linha. E essa direcção é a da paixão da rapariga por um actor mais velho que conhece na escola. Ingénua e com muitas expectactivas envolve-se com ele, um homem acossado por fantasmas e com uma vida algo conturbada. Estão apaixonados e vivem essa paixão deixando-se consumir e aproximando-se do ponto de não retorno. Neste romance, Eimear McBride, por vezes de maneira quase épica, leva-nos através do “íntimo”, da ansiedade de crescer depressa, das transformações trazidas pelo conhecimento do amor.