Globalização, turismo e terrorismo na Península Ibérica
Porquê Espanha, porquê Barcelona? Uma das motivações que vem primeiro à mente é a revindicação do território do Al-Andalus-
1. Até ao atentado terrorista de 17/8 o Verão em Espanha tinha sido marcado por protestos contra os excessos de turismo — aquilo a que alguns chamavam já uma vaga de “turistofobia”. No caso Catalunha, a questão dos excessos do turismo, do seu impacto ambiental negativo e da descaracterização dos centros históricos das cidades, interligou-se com a questão da independência e identidade catalã e dos protestos contra o capitalismo e a globalização. Arran (literalmente, a raiz), um grupo da esquerda radical independentista da Catalunha, empreendeu várias acções de protesto, contra hotéis, restaurantes, autocarros, etc. em lugares turísticos. Em alguns casos foram misturadas com actos de vandalização. No fundamental, os protestos seguiram o padrão usual das manifestações de contestação à globalização — como, por exemplo, na última cimeira do G20 em Hamburgo, na Alemanha —, ainda que em pequena dimensão e sem confrontos nas ruas com a polícia. Foram replicados noutras partes de Espanha, como nas ilhas Baleares (Maiorca) e no País Basco (San Sebastian, através da Ernai, um movimento independentista basco). Mas tudo isto ocorreu dentro de um quadro usual de contestação político-ideológica no Ocidente e de manifestações de rua.
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1. Até ao atentado terrorista de 17/8 o Verão em Espanha tinha sido marcado por protestos contra os excessos de turismo — aquilo a que alguns chamavam já uma vaga de “turistofobia”. No caso Catalunha, a questão dos excessos do turismo, do seu impacto ambiental negativo e da descaracterização dos centros históricos das cidades, interligou-se com a questão da independência e identidade catalã e dos protestos contra o capitalismo e a globalização. Arran (literalmente, a raiz), um grupo da esquerda radical independentista da Catalunha, empreendeu várias acções de protesto, contra hotéis, restaurantes, autocarros, etc. em lugares turísticos. Em alguns casos foram misturadas com actos de vandalização. No fundamental, os protestos seguiram o padrão usual das manifestações de contestação à globalização — como, por exemplo, na última cimeira do G20 em Hamburgo, na Alemanha —, ainda que em pequena dimensão e sem confrontos nas ruas com a polícia. Foram replicados noutras partes de Espanha, como nas ilhas Baleares (Maiorca) e no País Basco (San Sebastian, através da Ernai, um movimento independentista basco). Mas tudo isto ocorreu dentro de um quadro usual de contestação político-ideológica no Ocidente e de manifestações de rua.
2. O atentado de 17/8 em Barcelona não resultou desse sentimento de “turistofobia”. Não estamos agora a falar de legítimos protestos contra o capitalismo, nem contra o impacto ambiental e a (in)sustentabilidade do turismo, enquanto actividade capitalista que externaliza custos para a sociedade. Não são essas as causas dos islamistas-jihadistas do Daesh e de outros grupos similares. Nem estamos, também, a falar de protestos na maioria pacíficos, ou de actos relativamente isolados de vandalismo contra bens materiais, como ocorreu nas já referidas manifestações do Arran. Estamos a falar de violência com o objectivo de provocar o maior número possível de mortes e terror na população civil. Um veículo automóvel foi deliberadamente usado no centro histórico da cidade, na Praça da Catalunha e na Rambla, usualmente locais de grande concentração na via pública de habitantes e turistas, para matar indiscriminadamente aqueles que aí circulavam. Provocou mais de uma dezena de mortos e de uma centena de feridos. Numa outra tentativa de acto terrorista, em Cambrils, próximo de Tarragona, a polícia abateu a tiro os presumíveis perpetradores quando estes tentavam galgar o passeio marítimo com uma carrinha.
3. Porquê Espanha, porquê Barcelona? Uma das motivações que vem primeiro à mente é a revindicação do território do Al-Andalus — o qual abrange também Portugal —, pelos grupos islamistas-jihadistas tipo Daesh ou Al-Qaeda. Na sua ideologia radical e violenta o Al-Andalus é um território perdido do Islão que tem de ser recuperado à força. Poderíamos juntar-lhe uma boa dose das justificações usuais. Vão desde as cruzadas até à invasão do Iraque (2003), passando pela intervenção ocidental no Afeganistão (2001) e na Líbia (2011), até às sucessivas derrotas militares e perdas territoriais que tem sofrido o Daesh na Síria e no Iraque. Justificações à parte, o risco em Espanha não é igual em todo o território. É maior nas grandes cidades, como Madrid, onde já ocorreram os mortíferos atentados de 2004 (quase duas centenas de mortos), ou em Barcelona. É também maior no Sul, na zona mediterrânica mais próxima do Norte de África e do mundo árabe islâmico. O Ministério do Interior espanhol usa um modelo probabilístico, para avaliar o risco de atentados, ponderando diversos factores entre os quais a radicalização. A Catalunha — e Barcelona em especial —, já estava no topo das preocupações dos serviços de segurança espanhóis. Em termos de risco, seguem-se a Andaluzia e a região de Valência. A Catalunha tem também a maior concentração de população muçulmana, a maioria com origem no Norte de África — Marrocos em particular —, mas também uma presença significativa de migrantes paquistaneses.
4. Para além de ser uma grande urbe e do simbolismo do Al-Andalus, terá sido a escolha de Barcelona motivada pelo facto de ser uma das cidades mais turísticas do mundo? Provavelmente sim. Uma das razões para o turismo ser um alvo procurado pelos islamistas-jihadistas é a amplificação do impacto psicológico dos atentados. O facto de provocar mortos de diversas nacionalidades projecta, ainda mais, o sentimento de medo, com repercussões em múltiplos países. Assim, um acto de terror que provoque a morte de turistas em número significativo permite amplificar o efeito na opinião pública internacional a fazer a ideologia islamista-jihadista expandir-se. Veja-se o impacto deste atentado em Portugal. Para além da proximidade geográfica — e de Portugal partilhar com Espanha, embora em menor grau, a herança do Al-Andalus —, houve vítimas mortais portuguesas. O "modus operandi" deste acto terrorista foi similar a outros — ao do passeio dos ingleses em Nice (2016), ao do mercado de Natal em Berlim (2016), ou ao ocorrido em Westminster / Londres (2017), entre vários actos de barbárie praticados em cidades europeias nos últimos tempos. Não foi o mais mortífero. Mas foi um atentado particularmente doloroso e assustador para quem vive na Península Ibérica.
5. Há um conflito de valores que a globalização — e o turismo —, com os seus fluxos de pessoas e ideias, tornaram mais visíveis, e, de alguma forma, intensificaram. Esse "choque" está na origem de um outro argumento importante, de tipo moral, para atacar locais onde há grande presença de turistas. Para o Daesh e os grupos islamistas-jihadistas em geral, o turismo é a actividade económica de massas que mais simboliza a decadência moral da Europa / Ocidente. Uma mulher que viaja sem o marido, pai ou irmão; a exposição do corpo feminino; a mistura dos sexos em locais públicos, como piscinas, praias ou outros espaços recreativos; o consumo público de álcool, entre outras coisas, são uma inadmissível corrupção de valores. Os propagandistas da sua ideologia incutem assim, naquilo a que chamam os seus "soldados" — jovens que, frequentemente, se radicalizam por exposição à sua propaganda, seja em contacto pessoal com mentores que os instigam no terreno, seja pela via das redes sociais —, a ideia de que os cidadãos-turistas são alvos "legítimos" para as suas acções de terror.
6. Em Espanha — em particular Barcelona, uma cidade que se vê, a si própria, na vanguarda das artes e liberal nos costumes — há uma cultura dominante cada vez mais secular e imbuída de valores pós-modernos. Não é a dos valores tradicionalistas da família, do casamento, da predominância masculina, etc., típicos das sociedades cristãs europeias no passado (e da generalidade das formas de vida tradicionais). Todavia, em paralelo, vivem aí, cada vez mais, populações tradicionalistas imbuídas de valores absolutos e transcendentais, oriundas de migrações não europeias. É um tradicionalismo fundamentalmente ligado ao Islão, pela proximidade do Sul do Mediterrâneo. Claro que as diferenças de valores, mesmo dos mais profundos, "per se", não implicam violência social e política, menos ainda terrorismo. No actual contexto político internacional, para além das intervenções militares desastrosas dos europeus /ocidentais em conflitos do mundo árabe-islâmico (Iraque, Líbia, etc.), uma ideologia (o islamismo radical), com as suas raízes no Islão, exacerba as diferenças culturais e religiosas, levando-as ao extremo. Procura dar uma causa a jovens, normalmente de ascendência árabe e/ou islâmica, virando o seu descontentamento contra as sociedades europeias onde vivem e das quais, frequentemente, são já nacionais.
7. Num mundo globalizado o turismo vai estar, cada vez mais, sobre pressão, seja pelas boas razões — a preservação ambiental e das formas de vida locais face à tentação capitalista de lucro fácil —, seja pelas más — um alvo do terrorismo. No espaço aberto da União Europeia os fluxos de pessoas, de ideias, etc. circulam com facilidade e rapidez. Até agora, Portugal tem passado ao lado do terrorismo islamista-jihadista, pelo menos no que se refere a atentados. Quanto à sustentabilidade e preservação das formas de vida das populações locais, começa a existir um necessário debate. Para além de ser um país "low cost", o aumento do turismo nos últimos anos pode ser explicado, em parte, pelo sentimento de insegurança que se instalou em países de destino de alguma forma concorrentes (Tunísia, Egipto, etc.), ou países de origem de turistas (como, por exemplo, a França). A tudo isto juntou-se ainda a crise dos refugiados, que teve o seu pico em 2015, e onde a rota do Mediterrâneo oriental e central foi a mais usada — afectou, sobretudo, a Turquia, a Grécia e a Itália. Levou os fluxos turísticos, ainda mais, para a Península Ibérica. Resta saber até quando a "Western Coast of Europe" — slogan de uma campanha turística de promoção internacional da imagem portuguesa —, continuará a ser a excepção de segurança.