Minimalismo rasante ao solo
Ao fim de meio século, é reeditada a poesia de António Reis. Poemas com a engenhosa simplicidade de uma arte que recusa o ornato. Uma poesia da sobriedade formal, rigorosa, que se produz contrária ao derrame e ao desperdício expressivo.
Dois críticos que se situavam em pólos opostos teceram juízos naturalmente diversos, embora ambos certeiros, em relação à poesia de António Reis. Um desses oficiantes, João Gaspar Simões, teve não poucas vezes fraca pontaria; noutras, foi decerto inepto; mas não era raro que acertasse. Lendo os poemas de António Reis, falou de uma “cristalização ideal”. Uma proposta que importaria reter, perante uma poesia que, rejeitando embora qualquer “idealização”, se adequa, pelo contrário, plenamente à imagem de um cristal, no que este tem de apuro e geometria precisa. Eduardo Prado Coelho — essa figura multímoda capaz de convocar, com o mesmo furor, a exasperação e a lisonja (e que só com a posteridade parece ter reunido certa unanimidade) — abria o primeiro volume do seu diário com uma evocação de António Reis em que ressalvava os seus “poemas de uma extrema sensibilidade, rasantes ao solo, de uma sensibilidade minimalista” (Tudo o Que não Escrevi, Asa, 1992). A proximidade desta poesia ao chão do real concreto, o seu notável dom de sobriedade expressiva, ficavam sagazmente sintetizados naquela fórmula.
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Dois críticos que se situavam em pólos opostos teceram juízos naturalmente diversos, embora ambos certeiros, em relação à poesia de António Reis. Um desses oficiantes, João Gaspar Simões, teve não poucas vezes fraca pontaria; noutras, foi decerto inepto; mas não era raro que acertasse. Lendo os poemas de António Reis, falou de uma “cristalização ideal”. Uma proposta que importaria reter, perante uma poesia que, rejeitando embora qualquer “idealização”, se adequa, pelo contrário, plenamente à imagem de um cristal, no que este tem de apuro e geometria precisa. Eduardo Prado Coelho — essa figura multímoda capaz de convocar, com o mesmo furor, a exasperação e a lisonja (e que só com a posteridade parece ter reunido certa unanimidade) — abria o primeiro volume do seu diário com uma evocação de António Reis em que ressalvava os seus “poemas de uma extrema sensibilidade, rasantes ao solo, de uma sensibilidade minimalista” (Tudo o Que não Escrevi, Asa, 1992). A proximidade desta poesia ao chão do real concreto, o seu notável dom de sobriedade expressiva, ficavam sagazmente sintetizados naquela fórmula.
Na poesia de António Reis, a novidade com que se encaram os dados dos sentidos é análoga a essoutra novidade que os poemas pesquisam. Nos seus versos, o poeta dirigia-se a um aparecer, ao fenómeno dos próprios corpos, no seu trajecto mais material e terreno. São poemas “vividos” (p.10), como lembra o inteligente prefácio de Fernando J. B. Martinho, recuperando um princípio colhido na expressão da poesia de António Reis — “Estes poemas/ começavam/ a ser vividos” (p.22). Poemas Quotidianos tornará mesmo indissolúveis dualidades só aparentemente estanques como “a vida/ as imagens” (p.39), ou “o coração/ a lira” (p.61). Binómios que esta poesia funde, num projecto de identificação entre vida e escrita, experiência e discurso. A concretude fixada pelos poemas de Reis — “Oiço os teus conselhos/ se piso o chão descalço” (p.23) — adequa-se a uma formalização de que se ausentaram ornamentação, excesso expressional, deriva discursiva. Como numa superação do realismo de antanho, esta poesia — que, claramente, também se distanciou dos constrangimentos artísticos do neo-realismo de que partiu, e galgou os limites empobrecedores de muitos dos seus conflitos estéticos — habita a materialidade, não como mera fruição superficial, mas como alguma forma de alcançar o conhecimento sem abdicar do poder de expressividade da linguagem.
A poesia de Poemas Quotidianos define o seu horizonte de escrita mediante uma essencialidade que recusa a metafísica — bem e mal são “um espinho” (p.56) –, a inquirição da análise. Sem se quedar em qualquer futilidade epidérmica, esta poesia atém-se a fenómenos passíveis de captação empírica, visto que os sentidos e o corpo são o seu grande esteio. As manifestações dos sentidos ocorrem como sinais fundamentais que esta poesia como que sistematiza e posiciona numa grelha cantável. O poeta situa no seu próprio corpo um ponto focal onde se cruzam dimensões como vigília e sono — “Não é nas mãos/ que desespero.// As minhas mãos/ só trabalham/ e adormecem// esfriam/ ou aquecem// Não desmaiam/ nem têm rios// Têm ossos/ músculos/ e sangue” (p.68). Materializa nas mãos a abstracção do desespero, substitui-a, no curso dos versos, pela concretização do que é decidida biologia. O poeta surge como o contrário de um estatismo atávico; recusa desesperar. Faz ressalvar da realidade concreta do seu corpo um interior repleto de vida, resolutamente orgânico, onde palpita a movimentação de uma existência em pleno dinamismo. Esta poesia encontra nos lugares do corpo a afirmação da verdade que a procura. Os poemas captam gestos que corporizam certos universais atrás dos quais correm — o corpo como núcleo vivente da acção, os gestos que afirmam a física que a poesia vai criando.
Não se trata, na poesia de António Reis, de alçar a coloquialidade e a franqueza de dicção a nenhum patamar mais elevado do que o de uma fala vital — “É domingo hoje/ mas nós não saímos// é o único dia/ que não repetimos// e que dura menos// Mas põe o teu rouge/ que eu muo a camisa// não como quem/ de ilusão/ precisa// tomaremos chá/ leremos um pouco// e iremos à varanda/ absortos”. (p.73) O que estes poemas (e este foi citado na íntegra) realizam é uma acção de excisão sobre tais pormenores que tornariam penosa, boçal, ou desajustada a expressão poética, que se encaminha, contrariamente, para uma indispensabilidade quase geométrica que não extingue a energia criadora desse “fruto com cadência” (p.118) que é o coração.
Compare-se essa espécie de intenção remoída, em António Reis — “Hei-de entrar nas casas/ também// como o silêncio// A ver os retratos dos mortos/ nas paredes/ um bombeiro um menino” (p.35) –, com um poema de Álvaro de Campos que parece um parente genialmente remoto, repassado de ironia, quase até ficar tolhido, desapegado e arrefecido na sua deliberada falta de empatia — “Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros,/ Contente da minha anonimidade./ Domingo serei feliz — eles, eles... (…)/ Mas sempre haverá outros nas hortas e ao domingo!” Onde em Campos a distância entre o sujeito e os seus objectos cava, de parte a parte, fossos em terrenos de anonimato, Reis particulariza. Porque franqueia a entrada no domicílio imaginado pelo poema, onde contas em atraso e roupa que a penúria forçou a sucessivos arranjos, tornam realidade aquilo que seria sempre verbal, literário. A ironia dá lugar a um calafrio compassivo que encontra em divisões vazias, na penúria, uma metáfora revogável, que em breve se concretiza, rapidamente se tornando o próprio real que o poema busca.
Cinquenta anos depois da edição que reunia o que António Reis publicara em Poemas Quotidianos (1957) e Novos Poemas Quotidianos (1960), os poemas do autor voltam a estar disponíveis num volume que reproduz a recolha de 1967, prefaciada por Eduardo Prado Coelho. A edição da Tinta-da-China conta, além do excelente prefácio de Fernando J. B. Martinho, com um posfácio da autoria do cineasta Joaquim Sapinho, que evoca, de forma especialmente digna, não só o cineasta que António Reis também foi, mas a figura total do professor e do amigo.