Em Veneza, a arquitectura desafia os escultores portugueses
Em locais diferentes, em contextos diversos, José Pedro Croft e Leonor Antunes são os dois portugueses presentes na Bienal de Veneza.
O Campo di Marte está hoje coberto por telões a indicar o início de obras próximas. Será desta feita, como foi anunciado, que Siza Vieira verá concretizar o projecto que para aqui fez há anos. Seguindo daqui para sul da ilha da Giudecca, na direcção oposta à do canal que a separa da cidade de Veneza, chegamos à Vila Hériot e à obra que José Pedro Croft concebeu para representar Portugal na 57ª Bienal de Veneza, a decorrer até Novembro.
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O Campo di Marte está hoje coberto por telões a indicar o início de obras próximas. Será desta feita, como foi anunciado, que Siza Vieira verá concretizar o projecto que para aqui fez há anos. Seguindo daqui para sul da ilha da Giudecca, na direcção oposta à do canal que a separa da cidade de Veneza, chegamos à Vila Hériot e à obra que José Pedro Croft concebeu para representar Portugal na 57ª Bienal de Veneza, a decorrer até Novembro.
A Villa Hériot é um edifício de proporções regulares rodeado por jardins, vagamente revivalista, a lembrar boa parte da arquitectura estival de começos do século XX que encontramos, por exemplo, na Côte d’Azur francesa, mas também na parte nobre da vizinha ilha do Lido. As peças de José Pedro Croft, com o título Medida Incerta e a curadoria de João Pinharanda, parecem dialogar intimamente com a estrutura paralelipipédica e rósea do edifício. Trata-se de seis grandes esculturas de aço, vidro e espelho que se distribuem pelo jardim da casa. Existe uma continuidade com o projecto imaginado por Siza para o Campo di Marte, que esteve em destaque na participação deste arquitecto na Bienal de Arquitectura de Veneza do ano passado. Continuidade essa que se irá manter: no piso térreo da casa, mostram-se maquetes de um outro trabalho feito conjuntamente por estes dois autores na Barragem do Alto Sabor, para a qual Croft imaginou uma instalação centrada no conceito de observação da paisagem, feita a partir de espelhos e de um promontório.
Na verdade, a relação entre esta Medida Incerta e as demais disciplinas artísticas não se esgota no diálogo com a arquitectura. Se a escala é dada pelo perfil superior dos edifícios da Giudecca – uma ilha que serve quase exclusivamente as necessidades de habitação da classe média baixa, sem atracções turísticas de monta, para além de um hotel de luxo escondido numa das suas extremidades -, já os rectângulos coloridos e os espelhos apontam para os dois vectores definidos pela história para a pintura, a saber, a janela sobre o mundo e a cor. Ao deambular no jardim, por entre os poucos visitantes que num dia quente de Julho visitam a exposição, somos capturados no jogo entre o reflexo e a transparência, o dar a ver e o ocultar, a ausência de volume da escultura e a compreensão que, afinal, o volume é dado por tudo o que existe no espaço: árvores, mobiliário de jardim, visitantes, casa.
O modo ideal de chegar a esta exposição não deveria ser pela paragem do vaporettto num dos cais da margem norte da Giudecca. Devia ser, sim, pelo mar que se encosta ao jardim da casa, único modo de poder ter uma perspectiva global e alargada sobre o conjunto da exposição. Só assim se poderia combinar a imersão no centro da instalação com a contemplação distante do conjunto. Mas nada disso é possível, e mesmo as hipóteses de encontrar o local de exposição sem ajuda de um mapa são escassas, assinalado como está por uma seta e um cartaz tímido junto a um dos cais de chegada. Não há qualquer tipo de promoção desta magnífica exposição. É como se nada se passasse. Pior, é como se houvesse uma vontade explícita de ignorar esta fantástica oportunidade de mostrar ao universo da arte contemporânea que de dois em dois anos se reúne em Veneza que Portugal é bem mais do que aquilo que o turismo de massas quer fazer acreditar.
O caso da segunda presença portuguesa nesta 57ª Bienal, Leonor Antunes, é bem diverso. Formada em escultura pelas Belas-Artes de Lisboa nos anos 90, instalou-se na Alemanha em 2004, desenvolvendo a partir daí uma carreira também aclamada internacionalmente, baseada numa escultura atenta aos pormenores do espaço construído, na linhagem de uma herança minimalista e cosmopolita onde o espectador assume um papel central no entendimento da obra de arte. A artista foi convidada pela curadora francesa da Bienal, Christine Macel, e apenas contou com o apoio das instituições privadas com que trabalha habitualmente para responder positivamente ao convite. Leonor Antunes, que vive em Berlim, não representa aqui Portugal, mas insere-se na grande colectiva que reune trabalhos de mais de 120 artistas no Pavilhão Central dos Giardini e em vários locais do Arsenale; neste último local, a sua peça está incluída num Pavilhão das Tradições que ocupa um dos tramos da antiga cordoaria. Para este trabalho, intitulado “And then I raised the terrain so I could put”, Leonor Antunes quis estabelecer também uma ligação com a arquitectura, mas neste caso com a obra de Carlo Scarpa e de Franco Albini, ambos arquitectos italianos ativos até às décadas de 60 e 70. Nestes, interessou-lhe sobretudo os projectos feitos para museus – Scarpa, por exemplo, é o autor da reformulação da Accademia em Veneza –, e alguns pormenores que podem ser convertidos para a escultura, como uma escada ou um elemento suspenso. “Visitámos exaustivamente tudo o que era possível visitar destes dois autores. Fiquei fascinada com o trabalho do Scarpa em vidro de Murano, por exemplo, que quis reinterpretar. Fui ver o túmulo que ele criou para a família Brion, em Treviso, perto de Veneza, e onde acabou por também ser enterrado. É uma obra extraordinária.”
De facto, este projecto de Scarpa consiste numa obra característica da arquitectura modernista da segunda metade do século XX, com raríssimos pormenores decorativos, e detalhes que convidam à observação demorada, contemplativa, do lugar. Leonor Antunes, na obra feita para a bienal, joga com materiais específicos – cortiça, latão, vidro, cabos eléctricos, lâmpadas incandescentes, couro, cabo de aço, com os quais reinterpreta elementos arquitectónicos e de design de base: a cortina, a lâmpada, o paralelepípedo de chão. Não se trata para ela de criar objectos tridimensionais como a escultura tradicionalmente o faz, mas perceber que “a tridimensionalidade é dada pelas pessoas”, como nos disse; e que é “o chão que autonomiza e faz a peça tomar corpo; é também ele que unifica todos os materiais usados”. Mas todos as formas foram pensadas ao pormenor, e realizadas, sempre que isso foi possível, em atelier. Quanto às lâmpadas de vidro, trata-se de vidro soprado por um dos últimos artesãos ainda a trabalhar em Murano. “Medem 70 cm cada uma porque essa é a medida que é possível dar pelo sopro ao tubo de vidro”, explica.
Leonor Antunes não considera que a Bienal de Veneza seja uma exposição extraordinária. “É mais uma colectiva como há outras”, afirma-nos, salientando que tem tido um ano cheio a nível internacional, com exposições um pouco por todo o lado, inclusive nos Estados Unidos. Em Viva Arte Viva, o nome que a curadora deu a esta colectiva, a peça de Leonor Antunes está particularmente bem situada, não muito longe das belíssimas esculturas de tecido colorido de Franz Erhard Walter – que ganhou o Leão de Ouro para o melhor artista na exposição –, nem dos animais moles, de grande formato, de Petrit Halilaj, também distinguido pelo júri com um dos prémios.