O corpo é sempre político, para o melhor e para o pior

As muitas formas de considerar o corpo – da performance à auto-representação ou à instalação – é o grande tema da Bienal de Veneza. Esse corpo é sempre político, para o melhor e para o pior.

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O olhar do artista sobre o corpo, o seu próprio ou o dos outros, é sempre político. Em primeiro lugar, porque é impossível ao artista isolar-se do meio ambiente, do sistema económico, político e social onde vive, das suas expectativas ou desilusões quanto ao conteúdo de conceitos como “sucesso”, “fama”, “poder”. Mesmo quando esse corpo não é explicitamente referido, representado ou mencionado, estará sempre implícito na obra. Desde logo porque ela é realizada por alguém – o artista –, depois porque será vista, apreciada ou não, usada por outros corpos, os do público. Como demonstrou Foucault, um artista vai sempre tentar obter uma resposta explícita de quem interage com o seu trabalho. Dito de outra forma, vai sempre tentar manipular o espectador para obter uma reacção, e conseguir deste espectador um nível de docilidade plástica tal que os objectivos da obra que ele realizou sejam plenamente alcançados.

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O olhar do artista sobre o corpo, o seu próprio ou o dos outros, é sempre político. Em primeiro lugar, porque é impossível ao artista isolar-se do meio ambiente, do sistema económico, político e social onde vive, das suas expectativas ou desilusões quanto ao conteúdo de conceitos como “sucesso”, “fama”, “poder”. Mesmo quando esse corpo não é explicitamente referido, representado ou mencionado, estará sempre implícito na obra. Desde logo porque ela é realizada por alguém – o artista –, depois porque será vista, apreciada ou não, usada por outros corpos, os do público. Como demonstrou Foucault, um artista vai sempre tentar obter uma resposta explícita de quem interage com o seu trabalho. Dito de outra forma, vai sempre tentar manipular o espectador para obter uma reacção, e conseguir deste espectador um nível de docilidade plástica tal que os objectivos da obra que ele realizou sejam plenamente alcançados.

É por isso que toda a obra é política. É evidente que existem disciplinas artísticas que se prestam melhor a estes propósitos que outras, como seja o caso da performance, da instalação, da arquitectura. E, neste sentido, mesmo que o conteúdo da obra não inclua uma agenda propagandística, essa consciência de viver num tempo específico com inquietações particulares vai lá estar, em filigrana, a cruzar a apreciação do trabalho deste ou daquele artista. Na Bienal de Veneza, que decorre até Novembro, podemos afirmar que bom número de artistas se preocupou em dar a ver a presença desse conteúdo, por vezes com uma correcção política que roça a náusea. Nos pavilhões nacionais que se distribuem pelos Giardini, o da Alemanha, onde Anne Imhof levou de mão cheia o Leão de Ouro para a melhor participação nacional, efectua a abordagem exactamente oposta, e aquela que nos deixa sem fôlego de tão justa e certeira que é. Aborda a temática de uma Alemanha hipoteticamente fechada em si, impermeável à presença do emigrante, do refugiado e do estrangeiro. Mas, em vez de ter optado por uma tradução literal do tema, Imhof transformou o pavilhão edificado durante o Terceiro Reich num bunker, num abrigo guardado do lado de fora por dois autênticos dobermans, ameaçado no seu interior por performers que salientam a pureza, a educação, o nível social e cultural de quem visita.

Pode dizer-se que bem perto deste pavilhão estão outros dois onde as diferentes abordagens do corpo já mencionadas se exemplificam muito bem. No Reino Unido, Phyllida Barlow criou esculturas colossais e coloridas (as referências à importantíssima Pop inglesa não andaram longe) que disputam o espaço disponível, por vezes reduzido a quase fissuras, com quem visita o pavilhão. No Japão, Takahiro Iwasaki cria um mundo de maquetes de arquitectura tradicional suspenso e invertido, que pode ser visto através de um orifício aberto numa mezzanine. O resultado é que o espectador, que espreita através do chão, se transforma ele próprio em objecto de curiosidade. Finalmente, no pavilhão austríaco, Erwin Wurm (que expôs em Lisboa no Inverno passado) concebeu algumas das suas “esculturas de um minuto”, dando uma série de instruções básicas aos visitantes para que se colocassem em determinadas posições dentro das suas peças, que só são suportáveis durante alguns minutos. Um camião colocado em pé à porta do pavilhão, visitável através do chassis por meio de uma escada, completa a sua peça para a bienal.

Na exposição colectiva que decorre no Pavilhão Central dos Giardini e no Arsenale, a própria curadora, Christine Macel, diz que quis fazer uma “bienal feita com os artistas, pelos artistas e para os artistas, sobre as formas que eles propõem, as perguntas que fazem, as práticas que desenvolvem e os modos de vida que escolhem”. O resultado é uma exposição sem qualquer conceito, onde cada um parece ter feito o que quis, sem que a curadora assumisse o seu papel. Continuamos a encontrar muita gente a trabalhar a temática dos refugiados e de outros excluídos da sociedade, bem como, em certos casos, de uma identidade de género ou local por vezes de formas muito eficazes . Nos Giardini, Macel dividiu o espaço disponível em vários pequenos pavilhões, entre os quais um interessantíssimo “Pavilhão dos artistas e dos livros”, bem com um outro, das “Alegrias e dos Medos”; aqui, encontramos uma das melhores instalações de toda a bienal, assinada pela norte-americana Kiki Smith, uma artista que trabalha a identidade própria colocando em questão a própria técnica artística. No Arsenale, uma outra presença de grande qualidade é a de Franz Erhard Walter, que realizou fabulosas esculturas em tela colorida; também muito interessante é a obra do kosovar Petrit Halilaj, grandes animais fantásticos em tecido colorido que mereceram uma menção honrosa.

Ernesto Neto, também no Arsenale, não trabalha o tema dos refugiados, mas construiu uma espécie de tenda indígena onde colocou um conjunto de índios brasileiros, vindos propositadamente do Brasil, para executarem uma performance “com o público”. As associações que podemos fazer com os tempos coloniais e os regimes fascistas são muitas e todas pertinentes. Basta recordar que na Exposição do Mundo Português de 1940 se trouxeram autóctones de todas as colónias para desfilarem em Belém, qual parada de circo… o que se passa aqui não é diferente, embora os tempos sejam outros. Convém lembrar que Neto é um artista carioca, bem nascido em com todas as oportunidades comuns no seu meio social, e que os figurantes do seu espectáculo não podem ter (porque não têm condições nem económicas, nem sociais para tal) acesso à sofisticação artística da contemporaneidade. Nos Giardini, há um outro projecto igualmente penoso: nem mais, nem menos o de Olafur Eliasson, o mesmo que teve há tempos uma muito comentada e celebrada individual na Tate, que criou para Veneza um ambiente no qual colocou uma série de refugiados que aqui vivem a trabalhar. Perguntamo-nos se terão tido alguma possibilidade de se esquivarem a esta exposição pública. E ficamos sem resposta.