"Este é o nosso melhor momento e temos de o aproveitar"
Há cinco anos, André Magalhães trocou a jaleca pela boina e abriu uma taberna no Chiado quando o Chiado piscava o olho às elites gastronómicas. Chamou-se a si mesmo taberneiro e trabalha para enaltecer a qualidade dos produtos e sabores tradicionais.
Numa aldeia do interior do país uma mulher canta enquanto descasca batatas. Quando termina a canção tem 14 batatas descascadas num alguidar prontas para o ensopado de cabrito que está ao lume. André Magalhães soube disto através de Tiago Pereira, o musicólogo que andou por Portugal a fazer uma recolha do cancioneiro popular. Os dois são amigos e juntaram os interesses de um e do outro para uma viagem conjunta pelo país. Alimentação e Antropologia são inseparáveis. A base das artes populares está na cozinha e na produção de alimentos, num quotidiano que o homem que abriu a Taberna da Rua das Flores há cinco anos estuda a fundo e põe em prática no seu restaurante. E também nas suas aulas de Antropologia da Alimentação, nas viagens pelo mundo, onde procura a génese e a explicação do que comemos. Angolano com família em Trás-os-Montes, foi criado numa fazenda africana, nas montanhas do Norte de Portugal, nas ruas de Lisboa e na viagem por todos os continentes. Optou por se chamar taberneiro em vez de chef e é um dos maiores conhecedores dos paladares das cozinhas que se fazem por Portugal. Uma recolha interminável que, se tudo correr bem, terá a próxima paragem no Largo do Camões, em Lisboa, já no próximo mês de Setembro. Chama-se Taberna Fina, a irmã mais nova da Taberna da Rua das Flores. A conversa começou na taberna, com dois copos de água e a falar de John Steinbeck e parou porque os clientes estavam a chegar.
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Numa aldeia do interior do país uma mulher canta enquanto descasca batatas. Quando termina a canção tem 14 batatas descascadas num alguidar prontas para o ensopado de cabrito que está ao lume. André Magalhães soube disto através de Tiago Pereira, o musicólogo que andou por Portugal a fazer uma recolha do cancioneiro popular. Os dois são amigos e juntaram os interesses de um e do outro para uma viagem conjunta pelo país. Alimentação e Antropologia são inseparáveis. A base das artes populares está na cozinha e na produção de alimentos, num quotidiano que o homem que abriu a Taberna da Rua das Flores há cinco anos estuda a fundo e põe em prática no seu restaurante. E também nas suas aulas de Antropologia da Alimentação, nas viagens pelo mundo, onde procura a génese e a explicação do que comemos. Angolano com família em Trás-os-Montes, foi criado numa fazenda africana, nas montanhas do Norte de Portugal, nas ruas de Lisboa e na viagem por todos os continentes. Optou por se chamar taberneiro em vez de chef e é um dos maiores conhecedores dos paladares das cozinhas que se fazem por Portugal. Uma recolha interminável que, se tudo correr bem, terá a próxima paragem no Largo do Camões, em Lisboa, já no próximo mês de Setembro. Chama-se Taberna Fina, a irmã mais nova da Taberna da Rua das Flores. A conversa começou na taberna, com dois copos de água e a falar de John Steinbeck e parou porque os clientes estavam a chegar.
A Taberna da Rua das Flores fez cinco anos. Muita coisa mudou aqui à volta na gastronomia.
Sim. Abrimos um bocadinho antes de o Chiado estar na moda, e passados estes anos isto tornou-se um dos hot spots da Península Ibérica em termos de gastronomia, com muitos restaurantes novos interessantes.
Os restaurantes que iam abrindo eram sobretudo de autor, o chamado fine dining. No seu caso, abriu uma taberna e recuperou uma linguagem que tentava desmistificar a comida popular.
Isto também foi uma espécie de exorcismo pessoal, da minha experiência anterior. Antes estava no restaurante do Clube de Jornalistas onde tinha tentado brincar ao fine dining. Houve um movimento de jovens, como o José Avillez ou o [Henrique] Sá Pessoa, que tinham aberto os seus próprios restaurantes de fine dining e que, até então, eram coisas relativamente efémeras, o público ainda não estava muito educado para isso. Agarrei-me heroicamente ao restaurante do Clube, um barco difícil de navegar para mim. Aguentei sete anos. Foi muito importante, eu estava cheio de ideias e de imagens das viagens. Tinha andado a comer nos melhores restaurantes. Atirei-me de cabeça e acho que me tornei bom naquilo. Mas foi muito intenso, muito desgastante, no fim estava completamente exausto e tinha apanhado uma tareia financeira, tive de vender a casa para pagar dívidas, mas não tenho ressentimentos nem remorsos. Fez parte. Parei por cansaço, exaustão. A taberna serviu para encontrar outro rumo, acabei por optar por esta espécie de enunciado: há outras formas de cozinhar e outras formas de lidar com os nossos comensais. Quis propor-lhes uma coisa diferente e uma abordagem em ruptura com o que se estava a fazer. Havia alguns sítios que se chamavam tabernas, como a 2780, em Oeiras. Mas para mim este foi um exercício de libertação. Queria deixar as recordações amargas associadas ao que estava a fazer e até ao que uma certa crítica e um certo público esperavam.
E identificou-se como taberneiro. O que quis dizer com isso?
Um taberneiro é um anfitrião, mas informal. Poder estar atrás do balcão sem ter uma jaleca nem as pessoas virem chamar-me chef. Naqueles anos anteriores, tinha deixado de ouvir o meu nome. Toda a gente me chamava chef. Também tinha vontade de recuperar o meu eu. Ser taberneiro também é uma espécie de disfarce, mas é quase divertido.
Apresentou o seu espaço como uma taberna lisboeta. O que é uma taberna lisboeta?
A taberna é talvez a designação mais antiga porque vem do latim e do tempo dos romanos. Já havia tabernas na Roma Antiga. Eram sítios onde se vendia bebida, normalmente vinho. Em todos países latinos, até na Roménia, há tabernas que evoluíram a partir deste conceito. Eram sítios pequenos onde os homens iam beber alguma coisa por pouco dinheiro. Isso perpetua-se na cultura latina, ou na cultura mediterrânica, e está presente também na cultura portuguesa. Com a industrialização e o crescimento da cidade, com alguma migração também de gente do campo para a cidade começaram a aparecer em Lisboa pessoas das diferentes regiões portuguesas, mas também muitos galegos. Os galegos terão sido os responsáveis pela institucionalização da taberna na cidade. Do ponto de vista moralista e tradicional português, na aldeia uma taberna é o sítio onde param os bêbados. Numa aldeia, um homem de trabalho, um homem que se preze não tem tempo para ir à taberna porque está a trabalhar. Na taberna estão os ociosos, ou então aqueles que depois de trabalharem não são bons homens de família e vão-se emborrachar. Em Lisboa, com a Revolução Industrial, e as pessoas a passarem a ter horários, as tabernas que existiam nos bairros residenciais eram sítios onde os homens, quando voltavam das fábricas ou dos negócios paravam antes de subirem para casa, bebiam um copo, socializavam com as pessoas do bairro; era um agregador, o telefone árabe do bairro. Sabiam o que se passava e depois compravam uma garrafa de vinho para levarem para o jantar em casa. E como não havia gás, as pessoas levavam ainda da taberna sacos de carvão para alimentar o fogareiro.
Daí a tradição da taberna associada à carvoaria.
Sim, muitas vezes funcionavam em associação. Isso foi definindo a identidade das tabernas lisboetas, sendo que algumas começaram a ter uma espécie de pratos do dia. Na estrutura da taberna, havia o taberneiro ou o taberneiro e o ajudante; e num fogareiro faziam uma comida de tacho. Normalmente havia só um prato e quem quisesse podia comer ali ao balcão. Contavam-se histórias que diziam que os talheres estavam presos às mesas com umas correntes para que não fossem roubados. Há todo este imaginário. Vivi muito tempo fora e quando voltei para Lisboa quase redescobri a cidade. Nesse percurso de descoberta reconheci muita coisa antiga, mas percebi que as coisas estavam a desaparecer e a fechar. Havia cada vez menos tabernas do que as da minha memória, quando era adolescente. Sempre gostei muito da petisqueira, de andar por aí, beber um copito aqui, comer um carapau, uns caracóis, um pastel de bacalhau. Gostava muito do Retiro do Quebra Bilhas, no Campo Grande [Lisboa]. Quando voltei tinha acabado. Fiquei chateado. Nessa altura estava ligado ao slow food e era um bocadinho militante e reactivo a essas coisas, e comecei a mapear, a ver o que ainda existia, o que estava a acabar. É um exercício que continuo a fazer hoje. Quando dou aulas tenho sempre um percurso com os meus alunos, um roteiro da baixa da cidade onde passamos pelos comércios tradicionais e inclui as tabernas e as ginjinhas. De 2010 até agora, todos os anos fecham mais coisas. Foi a partir do conhecimento deste universo que decidi que era importante ter esta abordagem, e ter a taberna.
A sua vida cruza uma série de áreas dentro do mesmo universo. Cozinha, dá aulas, viaja e nessas viagens explora as gastronomias e os produtos locais e tem este sítio onde faz experimentação do que traz desses lugares conjugado com a tradição portuguesa. Como é que alimenta este circuito ou ele o alimenta a si?
Eu é que me alimento dessas coisas todas. Preciso. É interdisciplinar. Tudo acaba por se cruzar e ter pontos de contacto. Tento que nessa interdisciplinaridade cada uma das áreas alimente e reforce as outras.
Como gere isso?
Não é fácil. As pessoas mais próximas dizem que ando sempre a arranjar lenha para me queimar e a fazer demasiadas coisas ao mesmo tempo. Preciso disso. Sinto uma urgência de preencher lacunas que acho que existem e faço disso um bocadinho uma missão. Não consigo estar quieto.
E continua a cozinhar.
Sim. Cozinho menos do que gostaria, mas tenho essa liberdade. Quando quero cozinhar posso ficar na cozinha uns dias e tento não pensar em mais nada, mas depois sou interrompido e perturbado por outras responsabilidades. Além de cozinhar e gerir a operação da taberna, dou aulas de Gastronomia e Produtos Tradicionais Portugueses no mestrado de Ciências Gastronómicas [Universidade de Lisboa], às vezes dou formação nas escolas de hotelaria. Aplico toda a pesquisa e todo o trabalho de campo que faço em Portugal. Faço consultoria e continuo a escrever sobre gastronomia e sobre vinhos. Tenho o [movimento] Slow Food e o Centro das Artes Culinárias [no mercado de Santa Clara, em Lisboa], e agora vamos abrir um outro restaurante que se vai chamar Taberna Fina.
Fina?
Sim. Uma coisa mais de fine dining, a brincadeira é um bocado essa. Vai ser no Largo de Camões e é um exercício um bocadinho ao contrário, voltar um pouco ao que tinha estado a fazer na cozinha, mas mantendo esta descontracção.
Que pratos pode fazer aqui e não lá?
A Taberna Fina vai ter um menu de degustação. Aqui temos uma ardósia e todos os dias uns 15 ou 16 pratos e petiscos para partilhar. Quando me pedem para fazer uma sequência, faço em função do número de pessoas e que seja abrangente do que estamos a propor no dia. Lá, vai ser diferente, as pessoas vão ter de experimentar um conjunto do que propomos e que seja um bocado o espelho do que fazemos. Vai se um bocadinho mais cosmopolita, mais aberta.
Maior?
Não vai ser muito maior, mas é mais aberta a outras influências.
Como nasceu o interesse pela gastronomia?
Acho que nasceu comigo. Nasci em Angola, cresci numa fazenda. Era o filho dos patrões e superprotegido naquele contexto. Tinha uma vida muito mais interessante e selvagem do que se podia ter aqui. Andar descalço pelos sítios onde andavam as cobras e os lagartos. Vivia com os meus pais numa casa muito grande e a minha mãe ou o cozinheiro estavam sempre na cozinha, que era num edifício ao lado da casa. Desde pequeno que para não me chatear fazia coisas na cozinha com eles.
Que tipo de comida?
Havia uma mistura, a comida do dia-a-dia, mais portuguesa, mas comíamos umas moambas, uns calulus, desde pequeno que convivi com isso. Do lado do meu pai tinha uma avó preta, e tínhamos essa influência africana. Sempre me habituei a comer uma comida e outra e a saber o que era o quê e de onde vinha. Lembro-me de com os meus amigos da escola ir matar passarinhos com fisgas. (Não se pode muito dizer isto agora) Depois íamos cozinhá-los. Tínhamos uma casa com um fogareiro. Assávamos batata-doce, mandioca e milho, sabia como arrancar uma cenoura da horta, como se agarrava um tomate e se comia. Sempre fui muito desenvolto a lidar com isso. Com oito ou nove anos conseguia cozinhar uma refeição sem problema.
Veio para Portugal com a descolonização?
Com 600 ou 700 mil portugueses na altura, nas pontes aéreas. Vim cá parar um bocadinho aos trambolhões. Quando saímos de Angola já não havia transporte e o meu pai teve de alugar um táxi aéreo, ir até à Serra Leoa e de lá apanhámos um avião. Aterrámos em Lisboa num caos, milhares de pessoas a dormir no aeroporto, nas ruas e nas pensões; tudo cheio de caixotes dos retornados. A nossa família estava em Trás-os-Montes e fomos lá parar. Fiz a quarta-classe numa aldeia chamada Carlão, no concelho de Alijó. As aldeias ainda não estavam desertificadas. Havia as crianças de lá e os filhos dos retornados da aldeia que tinham aterrado - era um choque cultural grande. Não percebia metade do que eles diziam e eles não me percebiam; fazia muito frio; em Angola, como eu era filho do patrão, não estava habituado a andar à tareia com os miúdos e fartei-me de apanhar; tive de aprender a andar à pedrada e à paulada. Foi rude. Depois, fui para as Caldinhas, em Santo Tirso, para um colégio jesuíta. A experiência marcou-me. Entretanto, os meus pais estavam a refazer a vida. O meu pai voltou a trabalhar em África e a minha mãe, que era professora da primária, teve colocação na margem Sul [do Tejo] e compraram uma casa lá. Fiz parte do liceu na margem Sul. A seguir fui para os Estados Unidos, para o Texas, fazer o 12.º ano. Quando voltei a Portugal, com a história do numerus clausus na universidade, não me apetecia ficar. Estava cheio de vontade de viajar e os EUA tinham-me dado outra perspectiva. Fui embora, fui viajar.
Como é que vivia?
Foi aí que comecei a tratar a comida mais a sério. Nunca estive dependente de que os meus pais me enviassem dinheiro e tinha de trabalhar e de me desenrascar. Fui aprendendo que quando arranjava trabalho em cozinhas ganhava mais e muitas vezes tinha alojamento. Isso permitia-me ir juntando dinheiro para mais uma etapa, sempre cozinhando. Às vezes ia parar a coisas que não tinham a ver com a cozinha e que na altura me interessavam mais. Fazia vela, comecei a trabalhar nos barcos. Fui parar às Caraíbas e ganhava dinheiro a cozinhar.
Não pensava na cozinha como profissão?
Conscientemente nunca pensei que ia viver e trabalhar com a cozinha. Trabalhei em cinema em Paris, tive uma produtora e fizemos alguns conteúdos culinários. Fiz muitas reperages [pesquisa, pré-produção] pelo país e comecei a redescobrir coisas e a abrir os olhos outra vez para a cozinha. As tabernas das aldeias estavam a fechar. As coisas estavam a mudar e eu sentia que tinha alguma responsabilidade em mostrar isso. Desde Paris que me tinha ligado ao movimento slow food e comecei outra vez a militar por essas causas. Essa experiência foi o ponto de partida para isto.
Tem feito um trabalho de promoção dos produtos tradicionais portugueses e da importância de os servir na época em que naturalmente existem. Nestes anos, o que é que mudou no modo como os restaurantes e as pessoas em geral tratam os produtos?
Mudou muito e para melhor. Estou empolgado e contente que algumas coisas estejam a ressuscitar e outras a ressurgir, mas inspiradas em tradições que estavam a desaparecer. Há cada vez mais pessoas na cidade que começam a ganhar consciência da importância de se alimentarem bem e viverem com qualidade, e penso que já estão um bocadinho fartas das rotinas do centro comercial. Acho que a qualidade de vida agora é reconquistar tempo para podermos decidir o que queremos comer, onde queremos comprar e em consequência disso a oferta vai aumentando. Há novos produtores, novos agricultores que plantam espécies de vegetais que estavam a desaparecer. Tudo é possível a uma micro-escala. É um movimento de reacção contra a grande distribuição alimentar, a agro-indústria.
Fala muito da tentativa de recuperar paladares tradicionais... O que é que tem sido decisivo nesse trabalho?
O produto é que manda. E é muito mais complexo do que parece. Por exemplo, alguém diz que fez a receita da Dona Maria Francisca, a segunda condessa de Aviz, que cozinhava uma perdiz especial. Ok. As pessoas encontram o enunciado da receita e tentam fazer e dizem que está igualzinho. Mas, se a perdiz não for boa, não funciona. Depois, temos de nos transportar para a altura em que a receita foi escrita e perceber que não cozinhavam num fogão de vitrocerâmica, mas num fogão a lenha que tinha um poder de fogo completamente diferente. Os outros ingredientes também era muito diferentes. Os cem gramas de farinha eram de uma farinha diferente, a manteiga provavelmente era rançosa... É preciso pôr tudo no contexto temporal. A minha área nuclear e a que me permite fazer com que tudo isto faça sentido é a Antropologia da Alimentação.
Ou seja, quando está a ouvir uma receita faz imediatamente a tradução do tempo.
Tenho de fazer. Caso contrário o resultado final altera-se completamente. O manjar branco - que era uma receita da moda em toda a Europa, refinadíssima - para ser feito hoje tem de usar as ferramentas da época. O peito de frango que foi cozinhado e depois desfiado à mão e pisado num almofariz, se for posto numa Bimby não é a mesma coisa, nunca se irá ter a textura, a consistência, o sabor. É importantíssimo que o produto seja o ponto de partida do prato.
Quais foram os sabores mais difíceis de transpor para os dias de hoje?
Eu não me levo muito a sério, se não dá para fazer, não fazemos, ou então fazemos uma aproximação, de como podia ter sido. Desmonto. Não tento fazer reconstruções históricas das receitas, mas é muito importante saber do que estamos a falar, até para não cair numa fraude. Os mitos são consolidados pela repetição. Por exemplo, escrevi uma coisa chamada O cozido à portuguesa e de todas as outras maneiras, porque todos os países da Europa Ocidental têm a sua versão de um cozido. Mesmo em Portugal há imensas variações regionais.
A moda potencia esses mitos?
Vende-se muitas vezes gato por lebre. Não me interessa nada ler livros de receitas. Quando viajo vou aos alfarrabistas ou aos sebos, procuro livros antigos sobre Antropologia, História da Alimentação. Continuam-se a fazer extraordinários livros de receitas, é muito importante fixar os receituários. Se o [chef espanhol] Ferrán Adriá não tivesse publicado os excelentes livros de toda a produção do [restaurante] El Bulli, aquilo podia ter-se perdido. E importantíssimo documentar o trabalho que se faz e partilhá-lo. Mas isso são os bons livros de receitas. Gosto de os revisitar pelas referências, mas há muito lixo de livros e revistas de receitas. Entra tudo sob o chapéu de gastronomia, mas é culinariazinha. Há muita culinária de cordel. É a consequência disto estar na moda.
Tem um receituário da Taberna?
Tentamos ir fixando ou pelo menos manter uma memória do que fizemos. Temos alguns cadernos com notas, apontamos algumas receitas, fotografamos as ardósias para saber o que foi servido, mas confesso que este trabalho merecia mais cuidado e atenção. Não temos tempo e os recursos são limitados.
Já foi solicitado para fazer um livro de receitas da taberna?
Sim, mas não quero fazer um livrozinho. Quando fizer, quero fazer uma coisa bem feita.
Quais são as suas referências gastronómicas actuais?
Há várias pessoas que admiro e sigo e com quem tenho a sorte de poder dialogar. Intelectualmente gosto muito do Andoni Anduriz [chef do restaurante Mugaritz, San Sebastian]. Gosto do que pensa para lá da cozinha, abrangente. É talvez o grande pensador deste momento. Tecnicamente continuo a gostar muito dos grandes cozinheiros franceses.
Gosta da cozinha portuguesa?
Muitíssimo. Acho que é uma das cozinhas mais interessantes da Europa, mas digo sempre aos meus estudantes que a abordagem deve ser às cozinhas regionais. Temos belíssimas cozinhas regionais. Pô-las numa amálgama não é bom para a cozinha portuguesa, pode parecer que estamos à procura de um sucedâneo e de uma identidade feita de cataplanas e de bacalhau-à-braz. É preciso respeitar as identidades regionais, com isso mantemos vivos os produtos e a sazonalidade. Não devemos cozinhar a mesma coisa o ano inteiro, mas sim quando os ingredientes estão disponíveis naturalmente.
Gosta de ver Lisboa e o Porto cheios de gente e de restaurantes?
Estou empolgadíssimo e muito contente que isto esteja a acontecer, mas é preciso cuidado com a maneira como gerimos isso. Este excesso de procura faz com que muitas pessoas se aproveitem. Há restaurantes sem identidade. A Baixa [de Lisboa] está completamente selvagem. Mas este é o nosso melhor momento e temos de o aproveitar.
Como é à mesa?
Gosto imenso da mesa e de experimentar tudo e mais alguma coisa. Estão-me sempre a dizer que tenho mais olhos do que barriga. Mas é trabalho! Não gosto de desperdiçar, mas às vezes peço pratos a mais porque quero provar. Se estou num mercado em Hong Kong e só tenho três horas para estar ali antes de apanhar um avião tento provar o máximo. O mesmo numa tasca em Castro Verde, onde pedi seis pratos porque queria provar tudo. Gosto muito de comer.
Há alguma coisa que não goste?
Embirro solenemente com cenoura ralada. Adoro cenoura, gosto de a cozinhar, de a comer crua, mas ralada não. E quando estou a ensinar digo sempre para tirarem a porcaria da cenoura ralada. É a coisa mais parva que existe. A restauração gosta porque dá volume e cor ao prato, e todos os dias de manhã há alguém a encher um alguidar de cenoura ralada e depois aquilo fica ali a oxidar. Não serve para nada. As saladas portuguesas nunca tiveram cenoura ralada. Acho que já comi coisas mais estranhas do que o [crítico e chef Anthony] Bourdain. Já comi tudo.
E do que é que gosta mais?
De coisas do mar. Gosto de mariscar. Tirei uma licença de mariscador para apanhar percebes. Gosto dos bichos que se podem comer na orla rochosa, lapas, percebes, cracas dos Açores. São apenas produto, puros de essência.