A morada como fator de desigualdade de oportunidades
Apenas a aplicação do mecanismo do sorteio pode estabelecer um sentimento de justiça junto dos que não obtenham vaga na escola pretendida.
Muitos cidadãos portugueses, normalmente bem informados, usam expedientes engenhosos e alguma informação privilegiada para colocarem os filhos nas escolas públicas que lhes interessam. Quando não são suficientes os “conhecimentos”, bem tolerados socialmente, utilizam-se “esquemas” que têm merecido censura na comunicação social: as falsas moradas, os locais de trabalho virtuais e os encarregados de educação fictícios.
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Muitos cidadãos portugueses, normalmente bem informados, usam expedientes engenhosos e alguma informação privilegiada para colocarem os filhos nas escolas públicas que lhes interessam. Quando não são suficientes os “conhecimentos”, bem tolerados socialmente, utilizam-se “esquemas” que têm merecido censura na comunicação social: as falsas moradas, os locais de trabalho virtuais e os encarregados de educação fictícios.
Os cidadãos utilizam estas habilidades, desde logo, porque perceberam ou calculam que as escolas públicas são diferentes umas das outras e, consequentemente, umas serão melhores que outras para a formação/educação que desejam para os seus filhos. Por outro lado, conhecendo as prioridades existentes para matrícula e renovação de matrícula nas escolas públicas, especialmente as que relevam da morada dos alunos e do local de trabalho dos encarregados de educação, alguns pais pressentiram que os seus filhos não teriam qualquer chance de ficarem nas escolas que consideram melhores.
Ou seja, aos olhos de muitos pais, a legislação atual impede (exclui) os seus filhos de acederem a determinadas escolas que julgam de melhor qualidade, apenas porque não residem nem trabalham nas proximidades dessas escolas. É daqui que nasce a irracionalidade que leva a que cidadãos esclarecidos prestem falsas declarações e alinhem em “esquemas” censuráveis aos olhos do cidadão comum.
Por que é que umas escolas públicas são melhores que outras, segundo os critérios dos pais? Por que é que as atuais prioridades de matrícula afastam alguns portugueses das escolas que pretendem frequentar? São estas as duas questões a que é necessário responder e perante as quais os responsáveis têm assobiado para o lado.
A primeira é a mais difícil porque, certamente, serão muitas as razões que justificam a diversidade e a diferença de qualidade entre escolas públicas. Diferença de qualidade aos olhos dos pais pois, na verdade e ao contrário do que defende a Administração Educativa e preveem os modelos teóricos de avaliação externa das escolas, a qualidade de uma escola, pública ou privada, é estabelecida pelas perceções e juízos que os pais dela fazem e da consequente procura que a mesma tem.
Uma escola pública pode não ter a qualidade desejada por uma determinada família e tê-la aos olhos de outra família. Pode a oferta curricular e extracurricular e o projeto educativo agradar a uns e não agradar a outros... Todavia, nenhuma escola pública sobreviverá se não tiver alunos interessados em frequentá-la.
E que ninguém se iluda: o Estado e a Administração Central são os primeiros a intervir no sistema educativo sem critério e sem equidade, promovendo umas escolas em desfavor de outras. Veja-se, por exemplo, como o Estado, através da Parque Escolar e de forma descaradamente inequitativa, promoveu, permitiu e permite que convivam no mesmo território nacional, instalações e equipamentos escolares de primeira, de segunda e de terceira categorias. Talvez estejam aqui as razões que explicam as falsas declarações e os “esquemas” utilizados pelos pais para ultrapassarem o obstáculo legal que os impede de matricular os filhos na escola que pretendem.
A esta luz, os “esquemas” e expedientes utilizados pelos pais são de alguma forma legitimados como a única arma de que dispõem para defender os filhos e evitar que os mesmos sejam negativamente discriminados pelo facto de residirem ou trabalharem num local não abrangido pela área de influência da escola pretendida. Os pais mais não fazem que lutar pacificamente pelos filhos contra um Estado que lhes pretende retirar direitos em função de residirem ou trabalharem nos locais “errados”.
Argumentar-se-á que uma escola poderá não ter capacidade para todos quantos a procuram. Mesmo assim, respeitadas as prioridades da continuidade de frequência, da existência de irmãos na mesma escola e das especificidades dos alunos com necessidades educativas especiais, apenas a aplicação do mecanismo do sorteio pode estabelecer um sentimento de justiça e compreensão junto dos que não obtenham vaga na escola pretendida.
E só assim se promoverá a igualdade de oportunidades e combaterá eficazmente o que Paulo Rangel designou de “mecanismo discreto de apartheid social” e Maria de Lurdes Rodrigues de “segregação residencial”.
O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico