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Ele toca o peito, a barriga, com ambas as mãos sente o colete à prova do que está fora, é um colete à prova de vida, conclui

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Filipa Godinho

O acordar do dia fura o estore pontilhado e estende a pauta das horas na parede. Ele sai da cama. Rasga o quarto de qualquer possibilidade de escrita morse com palavras que já não sabe ler. Abre a janela inteira — está sol.

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O acordar do dia fura o estore pontilhado e estende a pauta das horas na parede. Ele sai da cama. Rasga o quarto de qualquer possibilidade de escrita morse com palavras que já não sabe ler. Abre a janela inteira — está sol.

Na primeira gaveta encontra a camisola certa para enfrentar aquele dia com o peito à frente do resto do corpo. Veste-o com o mesmo comprometimento e coragem com que se vestem os coletes à prova de bala. O peito e as costas protegidas ao esbarrar de qualquer intempérie armada, daquelas que o mundo, de quando em quanto, faz escapar com todos os danos centrais e colaterais por filtrar. Não sabe o que vem mas vestiu-se, está pronto.

Ampliado pelo seu revestimento a algodão à prova de mundo, ele aproxima-se, enorme, do espelho. Observa o homem que o olha. Mantem a verticalidade, ascende, tronco em força para cima e copa simétrica erguida. Ergue os ramos e fletindo-os a 90 graus procura os bíceps em frente ao espelho. Faz músculo como um homem faz músculo: até à ereção bem visível da pele sobre o braço. Os ramos à prova de curvas saem-lhe do corpo como paisagens horizontais no espelho. São pequenas variações de planícies mornas que lembrando as oliveiras, vacas e porcos das tardes intemporais em que beijava o Alentejo. Zero músculos, zero triunfos senão na memória de outros braços, de outros tempos. Baixando as asas ele sai para a varanda culpando a gravidade, a idade já se tornou grave há muito. Já não importa travar lutas nem guerras com a gravidade hoje. Observa as asas de outros pássaros. Uns voam em redor de árvores e ninhos, outros voam para fora do retângulo que emoldura a varanda e ele sabe que não voltam já. Outros, ainda, batem muito as asas e passam na sua frente voando para trás. Não o espantam. Aves a voar para trás. Fascinam-no. Toca o abdómen como se tivesse útero e reconforta-se sentindo o colete à prova de voos sem direção. Sabe que o tempo dos jovens é esse: voos retro, como se recusar o que está na frente não fosse fruto do medo mas da moda. A moda do medo. Vê-os passar: bandos inteiros a voar para trás. Alguns de quando em quando voam em gaiolas. Ainda assim passam como pinturas do Magritte feitas quotidiano, absurdamente belos, belissimamente absurdos. Outros caem leves com a elegância das estrelas cadentes no céu de Agosto. Outros, ainda, sobem rumo à cota mais alta, como se pudessem ser promovidos a anjos pelo alto risco de não temerem a vertigem. Heróis do nada, do vácuo invertido. Observando-os parece-lhe às vezes que é a terra quem os cospe. Também não se espanta. Acha bonito… a terra a cuspir pássaros que disparam para o céu rumando a nenhures, focados apenas na velocidade da ascensão. Ele sorri, já se habituou à mutação dos tempos, à teimosia das aves raras - todas elas raras, sem exceção.

Na sua frente a cidade estende-se salpicada por cores que se movem pelo céu e pelo chão. Seres muito vivos de penas belas, belas, absolutamente belas, pensa. Perigosas apenas no excesso de vida, porque se movem sem rumo nem fim. Ele toca o peito, a barriga, com ambas as mãos sente o colete à prova do que está fora, é um colete à prova de vida, conclui. Sente o chamamento. A vontade enorme de se fundir com o céu e o chão em simultâneo, como uma lágrima que se viu livre de um corpo. Lentamente sobe para o parapeito da varanda e verticaliza-se feito bala pousada em pé. Sente o vento trazer-lhe o bater de outras asas, puxar-lhe o rosto. Sabe que pode ir, está protegido, não lhe entrará vida no peito outra vez. Quer a leveza, quer tanto a leveza de se fazer pena e subir. Quem sabe até poderá voar para trás, ou para cima como uma bala disparada aos céus numa celebração algures. Abre as asas desertificadas e, no momento em que fecha os olhos, sente um braço, outro, nos seus. Puxam-no para o quarto. Fecham-lhe a porta da varanda. Os estores fechados perfuram Alentejos vários paralelos pelo quarto. Suspendem-lhe o ar. Um copo de água. O bico no bebedouro. Nas mãos e nos pés uma anilha unida às grades da cama. Sorriem-lhe. Saem fora do retângulo da sua visão. Vão voltar.

Ele junta os lábios, segura-os em potência. Assobiaria se valesse a pena. Beijaria se valesse a pena. Não tem pena alguma. É um corpo sem penas e frágil, permanentemente demasiado frágil, permanentemente demasiado humano.

Entram no quarto e com a fita do estore anoitecem cada curva do seu corpo até ao fim. À volta o quarto protege-o. Vêm tratar dele, sossegá-lo, despi-lo dos coletes para que a vida lhe entre na noite até ao fundo. Ele acalma. Nas gaiolas protegem-se os frágeis em nome da beleza, pensa, da irredutível beleza de tudo durar tão pouco. É tão urgente. Tão urgente ser belo e frágil até ao fundo, do fim até ao princípio.