Um rapaz, uma rapariga e milhares de câmaras
Com Dragonfly Eyes, inteiramente montado a partir de imagens encontradas online, o chinês Xu Bing assina o grande filme da competição de Locarno.
“Viva a Europa, viva Locarno, viva o cinema jovem” — foram as palavras de Aleksandr Sokurov ao subir ao palco da Piazza Grande para dar os parabéns ao festival suíço, na pessoa do seu director, Carlo Chatrian. São palavras que contam num mundo onde muita gente (ainda) acha que o cinema morreu ou passou a ser ditado pelos contabilistas, num festival que se empenha em provar o contrário: antes de cada projecção, há um #movieofmylife em que, com maior ou menor arte mas com grande voluntarismo, muita gente, de cinéfilos anónimos a realizadores com carreira, evoca o “filme da sua vida”. Um deles é a prova perfeita de que não, o cinema não morreu – o pequeno e mágico momento em que o crítico e vídeo-ensaísta Kevin B. Lee filma Viagem a Tóquio de Ozu a passar numa loja de telemóveis em Taiwan, evocando o seu avô e terminando com esta frase: “O cinema não morreu, mas como com todas as pessoas de quem gostamos muito, não podemos tomá-los como certos.”
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
“Viva a Europa, viva Locarno, viva o cinema jovem” — foram as palavras de Aleksandr Sokurov ao subir ao palco da Piazza Grande para dar os parabéns ao festival suíço, na pessoa do seu director, Carlo Chatrian. São palavras que contam num mundo onde muita gente (ainda) acha que o cinema morreu ou passou a ser ditado pelos contabilistas, num festival que se empenha em provar o contrário: antes de cada projecção, há um #movieofmylife em que, com maior ou menor arte mas com grande voluntarismo, muita gente, de cinéfilos anónimos a realizadores com carreira, evoca o “filme da sua vida”. Um deles é a prova perfeita de que não, o cinema não morreu – o pequeno e mágico momento em que o crítico e vídeo-ensaísta Kevin B. Lee filma Viagem a Tóquio de Ozu a passar numa loja de telemóveis em Taiwan, evocando o seu avô e terminando com esta frase: “O cinema não morreu, mas como com todas as pessoas de quem gostamos muito, não podemos tomá-los como certos.”
Não por acaso, a melhor prova de que, não, o cinema não morreu está no Concurso Internacional de Locarno e é, desde já, o grande filme do festival – um daqueles objectos desarmantes que nos deixa estarrecidos longos minutos após a projecção terminar. Chama-se Dragonfly Eyes e é a primeira longa-metragem realizada pelo artista multimedia chinês Xu Bing. É uma história de amor na China de hoje, onde uma ex-noviça e um engenheiro navegam por questões de classe, privilégio e justiça numa sociedade que explodiu demasiado depressa. É um ensaio sobre o ser e o parecer, sobre a imagem que damos de nós aos outros e a realidade que escondemos por trás da fachada. E é um prodigioso feito técnico: um filme inteiramente montado a partir de imagens de câmaras de vigilância disponíveis online, usadas com a devida autorização de quem as colocou. Sim, o Big Brother existe e está a registar todos os nossos movimentos, como a libélula que dá título ao filme, ser que tem 28 mil olhos e vê o mundo de outra maneira. Ou, nas palavras do realizador na conferência de imprensa: “Uma história clássica entre um rapaz e uma rapariga que se passa no nosso mundo que é muito perigoso, onde os acidentes estão sempre a acontecer.”
Num momento em que tanto se fala do poder e do perigo da imagem colocada online, Xu Bing recoloca o conceito da manipulação da imagem no interior de uma abordagem artística. Ao longo de quatro anos de trabalho, milhares de horas de imagens registadas, transferidas, anotadas, arquivadas, “fragmentos da realidade”, foram sendo reunidas numa criação ficcional de 82 minutos que pinta um retrato à la minute do mundo em que vivemos – que é aqui a China tanto como qualquer outro país, já que a omnipresença dos smartphones e das redes sociais, o comportamento alheado ou violento dos indivíduos não é assim tão diferente de economia para economia.
Xu lança para as ruas das grandes cidades uma noviça que decide regressar à sociedade quando sabe que o templo onde reside vai ser alargado graças aos donativos de um mecenas e um engenheiro impulsivo e volátil. Ambos partilham uma sensibilidade mais frágil e um idealismo que ainda acredita na bondade e na justiça. Dois inocentes no meio da selva, dois seres à deriva, two drifters como no Moon River de Audrey Hepburn em Boneca de Luxo. O mundo não vai ser caridoso para com eles, como Qing Ting percebe às tantas: “Nesta sociedade, ou mudamos as nossas ideias, ou mudamos a nossa aparência. Se não o fizer, a vida que vivi não irá mais longe.”
Impossível há dez anos
Tome-se nota: Dragonfly Eyes é um filme que teria sido impossível há dez anos – e, na conferência de imprensa, Xu disse que foi a explosão de feeds de câmaras de vigilância colocados online que permitiu a sua existência. Mas essa modernidade técnica inscreve-se numa linhagem e percorre uma memória do cinema. Ao meu lado falava-se do Blow-Up de Antonioni, no modo como estas imagens iluminam uma alienação que resiste à busca da impossível perfeição revelam-se nos seus interstícios coisas que não se veriam à primeira. A relação entre Qing Ting e Ke Fan atinge um grau de obsessão próxima do Vertigo de Hitchcock, levado a limites transgressivos quase de transferência de personalidade de- palmiana (a cirurgia plástica é um ponto recorrente no filme, ao mesmo tempo que é, nas palavras de Xu Bing, “uma maneira de resolver o problema de ter vários rostos a representar a mesma personagem”). E tudo isto, recordemos, apenas dado pelas vozes de actores que se sobrepõem a imagens pré-existentes, descontextualizadas da sua origem e rearranjadas para servir esta história.
Claro que Dragonfly Eyes, conto que se pretende moral dos dias digitais que vivemos, levanta questões — éticas, morais, formais, narrativas, filosóficas. Talvez a maior, nestes dias em que tanto se fala de fake news, seja a questão da realidade — o que é verdade, o que é mentira, o que é invenção, o que é manipulação? O que podem as imagens fazer à realidade? Xu Bing esquiva-se à pergunta, mas diz que nestas imagens retiradas da Net, ao contrário do cinema, “o enquadramento não busca nenhuma beleza, nenhuma estética”. Ao juntá-las para contar esta história, não se quis substituir à realidade, apenas descobrir “uma outra realidade, uma outra verdade”. O cinema nunca quis contar outra coisa. E enquanto se fizerem filmes como este, o cinema não vai morrer.