Coreia do Norte colocou Guam na mira. Porquê?
Que interesse tem esta pequena ilha do Pacífico, que é parte do arquipélago das Marianas, e que conta com pouco mais de 160 mil habitantes? A sua importância estratégica levou a uma história sangrenta.
Nos últimos dias assistiu-se a uma escalada de tensão como há muito não se via nas já complicadas e conflituosas relações entre a Coreia do Norte e os Estados Unidos. Depois da reacção de Pyongyang às sanções da ONU, o Presidente norte-americano, Donald Trump, afirmou que se a Coreia do Norte voltar a ameaçar os EUA será brindada com “fogo e fúria como o mundo nunca viu”. Horas depois, o regime de Kim Jong-un respondeu, garantindo estar a preparar um plano para atacar Guam, a pequena ilha no Pacífico sob jurisdição norte-americana. A importância estratégica deste território, que serviu de base para uma história sangrenta, pode explicar o interesse e a razão pela qual é utilizada como ameaça por parte dos norte-coreanos.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Nos últimos dias assistiu-se a uma escalada de tensão como há muito não se via nas já complicadas e conflituosas relações entre a Coreia do Norte e os Estados Unidos. Depois da reacção de Pyongyang às sanções da ONU, o Presidente norte-americano, Donald Trump, afirmou que se a Coreia do Norte voltar a ameaçar os EUA será brindada com “fogo e fúria como o mundo nunca viu”. Horas depois, o regime de Kim Jong-un respondeu, garantindo estar a preparar um plano para atacar Guam, a pequena ilha no Pacífico sob jurisdição norte-americana. A importância estratégica deste território, que serviu de base para uma história sangrenta, pode explicar o interesse e a razão pela qual é utilizada como ameaça por parte dos norte-coreanos.
Olhando-se apenas para a geografia de Guam, é difícil de perceber porque é que, neste momento, esta ilha concita a maior preocupação na geopolítica internacional: situada na zona ocidental do oceano Pacífico, a sul das ilhas Marianas, a 3400 quilómetros da Coreia do Norte, Guam conta com pouco mais de 160 mil habitantes (pertencendo a sua maioria à população indígena dos chamorros) e com uma área total de cerca de 541 quilómetros quadrados.
No entanto, alberga seis mil militares norte-americanos, um número que pode aumentar para o dobro na próxima década. Com uma base militar norte-americana que aloja uma esquadra de submarinos, e uma base aérea, a ilha situa-se a meio caminho entre os EUA e a Coreia do Norte e o mar do Sul da China, ponto de tensão entre Pequim e os seus vizinhos, alguns dos quais aliados de Washington. Aliás, foi de Guam que partiram alguns dos meios militares norte-americanos que realizaram exercícios conjuntos com a Coreia do Sul e com o Japão e que serviram de resposta aos sucessivos testes balísticos feitos por Pyongyang.
Ilha importante desde o século XIX
A história de Guam, que se cruza, na sua origem, com Portugal, foi marcada ao longo dos anos pela guerra e pelo sangue aí derramado. Foi descoberta em 1521 pelo navegador português Fernão de Magalhães, quando estava ao serviço da coroa espanhola. Por isso mesmo, a ilha foi a primeira colónia de Espanha alguns anos depois, em 1668. E, como lembra o El País, a ilha tornou-se um importante ponto estratégico, sendo a porta de entrada para as rotas do comércio do império espanhol entre Manila e Acapulco, no México, e centralizava a sua rede comercial transpacífica.
Esteve sob domínio de Madrid mais de 200 anos até que estalou a guerra hispano-americana em 1898. Tendo Cuba como centro do conflito, devido à intervenção americana na guerra da independência cubana, as hostilidades rapidamente se alastraram a algumas das colónias espanholas no Pacífico, levando até, por exemplo, à revolução filipina.
Depois de seis meses de combates, no dia 1 de Outubro do mesmo ano, foi assinado o Tratado de Paris que tinha como objectivo terminar com a guerra. Este acordo colocou um ponto final no poderoso e extenso império espanhol nas Américas e deu lugar aos EUA como a potência colonial da região. Madrid abria mão de Cuba, Porto Rico, dos territórios sob domínio espanhol nas Índias Ocidentais, das Filipinas – neste caso, perante a resistência espanhola em abdicar do arquipélago, Washington acabou por aceitar desembolsar 20 milhões de dólares pela sua posse – e Guam.
Assim, às portas do século XX, os EUA ficavam com o domínio desta pequena ilha. E esse domínio continuou quase ininterruptamente até aos dias de hoje. A excepção são três anos, de 1941 a 1944, que marcaram o período mais sangrento da história deste pequeno território.
Algumas horas depois do ataque em Pearl Harbor, que assinalou a entrada dos EUA na II Guerra Mundial, o Japão começou a aplicar o seu plano de expansão pelo Pacífico – Guam foi um dos seus primeiros alvos. Depois de uma manhã de bombardeamentos, em Dezembro de 1941, as tropas nipónicas invadiram o território e em menos de 24 horas os militares norte-americanos aí presentes apresentaram a sua rendição. Depois, começaram a surgir os relatos da violência exercida pelos japoneses, incluindo tortura e decapitações, em grande parte contra a população indígena dos chamorros suspeitos de proteger americanos procurados pelas tropas do Japão.
Em Julho de 1944, Washington lançou a operação de recaptura dos territórios perdidos para o Japão no Pacífico. Depois de três dias de bombardeamentos sobre Guam, foi a vez de as tropas norte-americanas desembarcarem no território, iniciando uma batalha de mais de um mês e uma das mais sangrentas de toda a campanha. Confrontados com o clima tropical, a densa selva e as tácticas defensivas japonesas, cujos militares, durante a noite, e escondidos num sistema de túneis pelas montanhas da ilha, apareciam de surpresa, o Exército americano sofreu avultadas baixas.
A 10 de Agosto, a ilha foi dada como completamente recapturada. Mais de sete mil soldados nipónicos estavam a monte na ilha mesmo depois da derrota. No dia seguinte, o general japonês Hideyoshi Obata organizou um ritual suicida com praticamente todos os seus militares que tinham sobrevivido. Apesar disso, em 1972, foi encontrado um sargento que viveu 28 anos na selva de Guam ainda escondido do inimigo norte-americano.
Ameaça norte-coreana com dois alvos
“Não há nenhuma ameaça iminente de guerra”, afirmou o secretário de Estado norte-americano, Rex Tillerson, depois de aterrar em Guam, numa tentativa de serenar a população norte-americana e local mais receosa. “Os americanos devem dormir tranquilos à noite, sem preocupações com a retórica dos últimos dias”, disse Tillerson. “Nada do que vi ou sei me indica que a situação se tenha alterado drasticamente nas últimas 24 horas”, assegurou o governante.
Esta foi a primeira medida da Administração Trump depois da escalada de tensão dos últimos dias. E o objectivo foi o de acalmar as pessoas. Até porque, para além do alvo militar de um possível ataque de Pyongyang, cujo armamento tem já capacidade para chegar a Guam, a ameaça pode começar a ter já impacto na população local que teve desde sempre uma relação complicada com os EUA.
Como explica a revista Atlantic, os residentes de Guam são cidadãos norte-americanos, apesar de não votarem para escolher, por exemplo, o Presidente norte-americano. Mas a verdade é que grande parte da população é contra a presença militar dos EUA. Com a ameaça norte-coreana, o receio pode, naturalmente, aumentar e com ele a insatisfação em relação ao domínio norte-americano.